Caetano Veloso: Retrato do artista quando jovem cinquentão
Entrevista para a Revista Rio Capital
Novembro de 1992
Por Christiane Ajuz
Foto: Lívio Campos
Se agora, por conta do cinqüentenário, Caetano Veloso diz se dar o luxo de estar "um pouco auto-referente e autocelebrativo", é verdade que nunca deixou de ser o mais generoso dos artistas: bateu cabeça para Cazuza e o Barão Vermelho; escancarou-se em elogios ao livro Estorvo, de Chico Buarque; adorou a peça O tiro que mudou a história, de Aderbal Freire Filho; encantou-se com a voz de Carlos Fernando, ex-vocalista do grupo paulista Nouvelle Cuisine; aplaudiu Marisa Monte como "uma cantora que já chegou pronta"; rasgou seda para as letras polêmicas dos Titãs; marcou presença na platéia do filme Stelinha, de Miguel Farias; deliciou-se com as pernas matinais de Xuxa na TV - enfim, apesar de um confessado xodó por Narciso, "um mito tão lindo", sempre soube dividir o palco e os spots de luz com outros artistas, sem mesquinharias.
Deve ser por isso - a ausência de inveja negativa, o desprendimento, a energia saudavelmente distribuída - que ele envelhece tão bem, mantendo o jeito de menino, a fala dengosa, o riso transparente, revelador. Quase não há rugas em seu rosto, o corpo é o mesmo da juventude, e ninguém diz que ele tem mais que o dobro da idade de Paula (é apenas um ano mais novo que o sogro, o criminalista Artur Lavigne). O estrangeiro que visse o casal passeando por Nova York com Zeca no carrinho - e dando gostosas gargalhadas com as caras e bocas que o bebê fazia diante da profusão de sons e imagens daquela louquíssima cidade - juraria que os dois eram da mesma geração. E não estaria muito longe da verdade: atestam os amigos mais chegados que muitas vezes Paula funciona como uma espécie de mãe-empresária-leoa-de-chacará do marido, dando limites quando Caetano, por timidez ou preguiça, não dá.
Amigo como ele, assim carinhoso, não tem - atestam Gilberto Gil e Gal Costa, Maria Bethânia e os irmãos menos famosos, a ex-mulher Dedé, a mãe e a tia que lhe transmitiram o prazer de cantar ainda na infância, os músicos que o acompanham. Vira e mexe briga com a imprensa, passa um tempo negando-se a dar entrevistas, mas consegue manter entre os jornalistas uma aura de charme e de respeito. Por conta dessa integridade, Caetano Veloso disse-me coisas em 1989 que continuam atualíssimas, como mostra a entrevista a seguir, parcialmente publicada no jornal O Dia, onde ele fala de Aids e morte, música e cinema, salário mínimo e violência urbana, política e televisão, e define pela primeira vez o que significa "brega". Como dizia o jornalista Tarso de Castro, "não podíamos dar azar em tudo. Caetano é uma das nossas sortes".
Caetano, que filmes e que músicas fizeram a sua cabeça?
CV: La Strada, de Fellini, me impressionou tanto que eu passei um dia todo chorando; depois, Rocco e seus irmãos, de Visconti, Cantando na Chuva, de Stanley Donen, Pacto sinistro, de Hitchcock, e todos os filmes de Godard. Já na música, quando menino, em Santo Amaro, eu curtia tudo que tocava no rádio. Conforme fui crescendo, veio Luís Gonzaga, um pouco mais de Dorival Caymmi e Noel Rosa, e a influência de minha mãe, que cantava canções feitas antes de eu nascer, muito lindas. Depois então, mais que tudo, aconteceu João Gilberto, que virou minha cabeça, e me deu uma idéia de modernidade, eu ainda em Santo Amaro, longe da cidade grande... Pra completar, o jazz americano - sobretudo Chet Baker, Miles Davis e Thelonius Monk. E com Beatles e Rolling Stones o rock 'n' roll e a música pop.
E Cole Porter, onde entra?
CV: Gosto muito de cantar as canções de Cole Porter, mas não chegaria a gravar um disco inteiro só de Cole Porter. O Guilherme Araújo cismou que eu tinha de gravar, mas fico brincando com ele, acho que não dá não. Eu sei cantar muitas coisas dele, tenho o songbook dele, gravei Get out of town, tenho até um livro sobre a vida de Cole Porter, com muitas fotografias. Neste livro é que há uma anotação dele sobre a Baía de Guanabara, ele ficou deslumbrado. Tem uma foto tirada por ele, a mulher e mais um amigo de dentro do iate, e ele escreveu como era lindo o anoitecer na Baía de Guanabara, quando as luzes ao redor iam se acendendo, que não havia coisa mais linda no mundo. Na música O estrangeiro eu ponho a Baía de Guanabara vista por um estrangeiro porque a baía é a bandeira brasileira extra-oficial.
Como foi sua formação musical? Você aprendeu violão clássico?
CV: Não, nunca estudei com ninguém. A única coisa que eu fazia era olhar o Gil tocar, e perguntar como era isso e aquilo, e ia tocando um pouquinho, depois via as funções harmônicas, e me acostumei a tocar. Sou muito limitado, não sei ler música.
E canto, você estudou? Parece que sim, porque canta cada dia melhor.
CV: Nunca. Eu sempre gostei de cantar, e eu canto muito. Com o passar dos anos, de tanto cantar, eu desenvolvi o canto, fiquei com mais domínio de voz. E de outro lado eu sempre cantei muito melhor quando estava entre amigos, em casa, do que em público, porque me sentia inibido. Então eu me desinibi, e hoje dá pra mostrar um pouco mais o quanto eu posso cantar legal.
O Washington Olivetto (que em setembro de 92 estava na platéia do show Circuladô no Town Hall, em Nova York) disse uma vez que você daria um ótimo publicitário.
CV: Nunca fiz um jingle, nunca fiz um anúncio, sempre me recusei a fazer qualquer publicidade. Engraçado isso. Pedir, realmente pediram muito, mas eu nunca aceitei fazer. Para ser sincero, quando eu era garoto, quando comecei a namorar com Dedé em Salvador, meu primeiro emprego na vida foi numa agência de publicidade. Mas eu não escrevia nem cantava nada na época, eu só desenhava e pintava. A essa altura eu era muito mais um artista visual, gráfico, plástico, do que literário ou musical.
E se pintasse agora um novo convite?
CV. Eu recusaria mais uma vez. A Pepsi-Cola me chamou pra fazer aquele anúncio com a Tina Turner e eu não quis. Não sei se isso é preconceito. O Gil, por exemplo, faz jingles e anúncios desde que eu conheço ele, desde Salvador. Eu, pessoalmente, no princípio não me aconteceu fazer; depois eu fui vendo que não queria fazer, que era melhor não fazer, e não entrei nisso.
Vira e mexe você tem um entrevero com a imprensa. Como é que você encara a crítica?
CV: Eu encaro a crítica com humor. Acho que os piches ostensivos são em menor número que os elogios, e não tenho queixa da imprensa. Eu levo com humor, respondo quando preciso, tem coisas que acho horríveis, mas no geral sou muito conhecido e muito querido - não só por gente da imprensa - às vezes de maneira enviesada e complicada, mas no fim das contas a maioria é favorável, ou pretende ser favorável, tenta não ser mas acaba sendo (risos).
Você é um artista polêmico, Gilberto Gil também, Glauber Rocha era muito. É uma coisa de baiano, isso?
CV: Eu acho que é sim.
E como artista, baiano e polêmico, como você se sente em relação a Antonio Carlos Magalhães?
CV: O Glauber era fã dele, mas eu não sou muito não. Eu já estive com ele algumas vezes. Ele é bem baiano, cheio de charme, sexy, muito sexy. E quase um Dorival Caymmi, só que Caymmi é totalmente do bem e o Antonio Carlos Magalhães é do mal. Mas ele tem aquela coisa baiana, sensual, interessante. Ele é gostosérrimo. Só que eu acho ele arcaico como político. Não é nem uma questão moralista, de que ele é mau, não é isso não. Ele é arcaico, ele representa uma porção de coisas de que a Bahia devia se livrar.
Você já pensou em entrar pra política?
CV: Não, nunca, nem quero pensar. Quando o Gil escolheu esse caminho eu conversei muito com ele. "Gil, é isso mesmo que você quer?". Ele estava tão decidido... Conversamos legal, ele é muito claro comigo, amoroso, límpido, transparente. Então apoiei totalmente, porque ele tinha todo o direito de fazer aquilo. Você não pode exigir de uma pessoa: "seja o artista que a gente quer". No meu caso, não sei se a política atrapalha o artista porque não tenho nem nunca tive a menor vontade de fazer política. Talvez seja uma coisa interessante para a velhice a política, para pessoas que já têm o hábito da vida pública. Mas eu não, eu sou irrecuperavelmente um artista.
Como você imagina que se possa viver com o salário mínimo brasileiro?
CV: Eu não sei como as pessoas, a maioria da população, podem fazer um planejamento de vida no Brasil. Não sei realmente como as pessoas se viram, com família, com filhos, sobretudo numa cidade grande. Sou de uma cidade muito pequena, sou de baixa classe média, e convivi com gente muito pobre, mas todo mundo comia em Santo Amaro - na pior das hipóteses, tinha caranguejo no mangue pra pegar. E é uma região fértil, não havia chance de alguém morrer de fome. Então ali eu via como as pessoas se viram. Mas na cidade grande, com salário mínimo, acho surpreendente que elas consigam organizar suas vidas.
E a violência urbana?
CV: É um negócio danado. É muito difícil de resolver, e parece que aqui no Rio há um recorde de violência urbana. Acho muito desequilibrada a situação brasileira. Violência sempre acontece quando há desníveis sociais, e o grande desequilíbrio social no Brasil beira o insuportável. Agora você não mais distingue a ação da polícia da ação criminal, esse é que é o maior problema: ter uma sociedade em que não se pode diferenciar a criminalidade da polícia porque já entrou numa degradação comportamental terrível. Essas coisas é que têm de mudar no Brasil de algum modo, ou seja, tem-se que resolver questões econômicas que conduzam a alguma coisa mais razoável. E também tem que haver uma inteligência na organização da segurança policial - um modo de pensar a segurança e um modo de pensar o diálogo com as populações de baixa renda.
E Nova York, como é sua relação com ela?
CV: Adoro Nova York, me sinto em casa, muito mais do que em qualquer cidade grande da Europa. Me sinto no Rio de Janeiro e em São Paulo ao mesmo tempo, sem as desvantagens. É uma cidade fácil, muito simpática, a gente não tem como se perder, as pessoas são muito comunicativas. Nova York é uma coisa que só podia acontecer na América, não é uma coisa européia. Aquela possibilidade de mil coisas rolarem, aquela largueza de horizonte, aquela confusão...
Como foi que rolou aquela foto sua com a Brooke Shields em Nova York?
CV: Eu e a Paulinha fomos a uma festa onde, entre outros famosos, estava a Brooke Shields, e me apresentaram a ela, e conversamos um pouco. Estava lá também o Barishnikov, que depois ficou horas conversando com a Brooke Shields, cantando ela, dando em cima dela. Tinha aquele monte de gente rica, os Trump, e tinha também uma pessoa que eu adorei ver, o Gregory Peck. Fiquei emocionadérrimo, isso sim que eu adorei. Já a Brooke Shields eu adorava quando apareceu bem menina, em Pretty baby - ela era deslumbrante. Mas ficou perua, tem uma cara enorme, ela é toda enorme, com uma queixada de americana hiper-alimentada. E eu disse pra Paulinha: "Ela tá uma vaca holandesa". Daí que eu não quis botar essa foto com ela no meu songbook, porque era uma coisa absolutamente casual, só conversamos três minutos.
Na canção Santa Clara padroeira da televisão, você faz uma bela homenagem à própria. O que acha da televisão, no Brasil e no mundo?
CV: A brasileira é das melhores do mundo. Foi a TV Globo que fez essa subida danada, mas sem dúvida ela tem um tom monopolista... quer dizer, eu não gosto desse tom monopolista, e dessa impressão de que quem está na Globo tem um certo tipo de poder, de que pode mandar e desmandar. A Globo chega na rua pra gravar e manda fechar a janela do vizinho, e as pessoas aceitam. Há qualquer coisa na Globo com relação a poder no Brasil que eu acho desmedida, que não deveria acontecer. Mas também acho que sem essa agressividade eles não teriam feito essa coisa bacana que fizeram.
Você considera a Globo melhor que a TV americana?
CV: Sob certos aspectos, sim. A TV Globo tem mais bom gosto, a coisa americana é mais vulgar na TV, mas lá existe maior variedade de programação. Agora, aqui há essa marca visual do Hans Donner que influenciou as outras TVs do mundo, e nisso nenhuma é tão bacana quanto a Globo. Chegam a fazer coisas mais sofisticadas, como a série Grande sertão: veredas, que foi ambiciosa, feita com uma radicalidade que o próprio cinema brasileiro deveria tomar emprestado.
Foi boa a experiência na TV Globo? Você gostou de fazer o programa Chico & Caetano?
CV: Gostei. É sempre ótimo estar com Chico, as pessoas são legais conosco, não tinha esse lance de poder da Globo. O Chico é uma companhia maravilhosa, foi uma honra pra mim. Mas eu não gosto muito de fazer música em televisão, é difícil ficar legal, perde-se muito com as repetições, aquele clima de gravação... E a idéia de que aquilo depois vai ser visto por milhões de pessoas cria um ambiente diferente. A gente termina não cantando bem.
Caetano, você sabe definir o que é brega?
CV: Brega quer dizer puteiro na Bahia, é uma palavra chula que significa prostíbulo, zona de prostituição, bordel. É um substantivo. Apareceu pela primeira vez no resto do Brasil ainda nos tempos da ditadura, numa canção de Antonio Carlos e Jocafi - que eu acho até que era abertura de uma novela da Globo - que dizia assim: "Fui parar naquele brega / E nunca mais saí de lá" (risos). A gente na Bahia morria de ir porque os censores não podaram: não sendo baianos, eles não sabiam que a palavra tinha tal conotação. E era um palavrão, na Bahia não se dizia isso em casa. Mas, por causa dessa música, como no Rio não foi proibido, brega acabou virando adjetivo aqui no Sul, e como adjetivo ficou sendo sinônimo de cafona, ou kitsch, ou popularesco, ou country. No princípio, música brega era música de puteiro, música "de brega". Agora é mais um desses rótulos para frisar as diferenças e os preconceitos sociais no Brasil. Não gosto de usar essas coisas. É preconceituoso.
Qual é a sua visão sobre a Aids?
CV: Eu acho que a Aids é cruel, é terrível, mudou a vida das pessoas, o mundo ficou realmente diferente com isso. Porque pega na sexualidade: ela é sexualmente transmissível, e através do esperma - então os homens são mais portadores e vítimas. Isso levou a um panorama entristecedor, tirou a sensualidade, as pessoas ficam com medo de fantasiar muito, preferem não pensar mais em fantasias. É terrível. Agora, não é a primeira doença que a humanidade conhece, não é a primeira doença sexualmente transmissível, nem sequer é a primeira doença mortal sexualmente transmissível - a sífilis matou muita gente. Então é um tipo de coisa com a qual a humanidade vez por outra tem de lidar. Deve ser tratada como doença, e deve-se pensar não só na cura mas nas melhores maneiras de tratar. O pessoal fica querendo o absoluto - "Viva, acabou a Aids, não existe mais!" - como se buscasse um milagre. Vamos pensar também no relativo, fazer tudo como se faz com todas as doenças.
Como é a sua relação com a morte? Você pensa muito nisso?
CV: Eu tenho medo da morte. Antigamente eu era quase obcecado por esse medo. Hoje tenho menos obsessão. Não gosto de acreditar em vida após a morte, não sou atraído. Quando vejo aquele homem na TV pintando com os pés, e dizem que é Renoir, e aí sai um quadro que não é nem de longe bom como os de Renoir, mas ao mesmo tempo a gente não entende como aquilo acontece, e alguém diz: "Ah, é Renoir tentando se comunicar com o mundo"... Meu Deus, coitado! Um pintor faz coisas tão lindas pra depois de morto ficar perdido num lugar escuro, tentando se comunicar... Eu acho isso o pior pesadelo que se pode ter. Eu não gosto, acho mais bonito o "morreu, é nada, acabou". Não gosto da idéia de reencarnação e sobretudo não gosto dessa idéia de alma, de ficar em outra dimensão, em outro mundo. Tenho medo disso.
Então você rejeita a idéia de imortalidade?
CV: Meu pai morreu e era uma pessoa que eu idolatrava, e merecia esse amor, uma pessoa que não decepcionava nunca. Fiz questão de enterrá-lo fisicamente - segurei o caixão, botei dentro da terra, e achei que ele não existe mais mesmo. Agora, ele deixou a mensagem dele nos filhos, no modo como educou a gente, no que nos falou, no que fez. Deixou uma marca na cidade porque foi pessoa importantíssima na formação do caráter da população de Santo Amaro. Enfim, acho que o homem é imortal dessa maneira: o que ele produz continua. Mas não preciso pensar que meu pai é ainda meu pai e está com saudade da gente em algum lugar.
Você foi criado na religião católica?
CV: Minha formação é católica, fiz comunhão, ia à missa todo domingo. Mas tenho também muita ligação com o candomblé porque na Bahia isso faz parte da nossa cultura. Eu respeito a visão de mundo do candomblé. No início eu tinha medo, depois passei a ter admiração cultural, e também respeito. Acho que pode me dar força. Mas não tenho certeza. Aliás, eu não tenho certeza a respeito de nada.