Caetano Veloso: ‘Os malucos que fazem barulho no mundo agora não vão ganhar a partida’
Entrevista para o Estadão (28 de agosto de 2025)
Por Danilo Casaletti
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Quarenta anos separaram o rock Podres Poderes, feito por Caetano Veloso para o show álbum Velô, e o samba-reggae Um Baiana, canção mais recente do compositor, apresentada no show Caetano&Bethânia. Ambas estão no repertório da mini-turnê Festivais, que Caetano apresenta em São Paulo no dia 7 de setembro, dentro do Coala Festival. Na primeira canção, o compositor indaga se sua “estúpida retórica” contra “ridículos tiranos” terá que soar por “zil anos”. Na segunda, ao atestar que os malucos “da guerra” não desistem, pede “para abrir clareiras de paz”.
“Escolhi canções de enfrentamento”, diz Caetano, 83 anos, por e-mail, ao Estadão, sobre o roteiro do show. Nele, também está Divino, Maravilhoso, que fez com Gilberto Gil, no aparente longínquo ano de 1968, cujo refrão alerta sobre a necessidade de estar “atento e forte”. Tempos distintos, mas com um velho inimigo: o autoritarismo.
“O mundo passa por uma transformação imensa e que começa com o reacionarismo erguendo a cabeça de forma descomunal. Vejo uma transição que pode ser longa e dolorosa”, diz o cantor, sobre o caminho para um mundo mais justo e livre. “Na minha idade, não dá para pensar muito que eu verei o começo da vida digna”, aponta, em outro trecho da entrevista.
A violência do mundo atual descrita por Caetano também passa por algoritmos que não escolhemos - ou não entendemos. E pela força da inteligência artificial que pode, sem autorização, beber da fonte musical de artistas como Caetano para criar algo que não é de ninguém, mas de todos.
No entanto, assim como no show Festivais, que chega no samba para alcançar a possibilidade da alegria, Caetano também vê alegria e fala de amores: dos filhos e netos, do músico Lucas Nunes, seu diretor musical, Gal, Bethânia, Elis, Chico, Gil e dos jovens que lotam seus shows e cantam com ele músicas feitas há décadas.
“Isso também significa uma força profunda da história cultural brasileira. Não vamos pensar que o empobrecimento do espírito nacional que deseja a extrema direita venha a ser vitorioso com facilidade”, diz.
Leia a entrevista completa:
Você declarou que a turnê ‘Festivais’ traz um repertório de “enfrentamento”. Foi preciso seguir na ideia da canção ‘Não Vou Deixar’? Ou seja, o repertório do show, embora também se pareça de amor - amor romântico e ao próximo - também, de certa forma, é político?
Escolhi canções de enfrentamento. Não cantava Fora da Ordem ou Podres Poderes há muito tempo. E acho que nunca tinha cantado Divino, Maravilhoso em nenhum show meu. Branquinha abre o show para eu me apresentar diretamente. E, no final, dizer que ela é “meu igual neste mundo MAU”. As outras canções de amor são de conflito e término de relações importantes. A coisa só vira quando Desde Que o Samba é Samba anuncia que o samba é o “poder transformador”. Daí vêm as afirmações de alegria em É Hoje e Odara.
Pego emprestada uma frase de uma resposta que você deu sobre o Brasil a Márcia Fráguas, no livro ‘It ‘s a long way - o Exílio em Caetano Veloso’: “Não sei o quanto vamos ter de atravessar de dificuldades para chegar onde é nosso lugar certo. O preço pode ainda ser muito alto”. Qual o preço ainda a se pagar para termos um País mais justo e esperançoso a todos?
No momento, isso parece muito longe e muito difícil. O mundo passa por uma transformação imensa e que começa com o reacionarismo erguendo a cabeça de forma descomunal. Vejo uma transição que pode ser longa e dolorosa. Isso se os malucos não acabarem o mundo com as bombas totais.
Interessante você abrir o show ‘Festivais’ com uma música na qual se diz um “fulano” que “nada contra a maré”. Nadar contra a maré é uma sina ou uma escolha?
É uma sina. Mas acolho a proposta.
"O mundo passa por uma transformação imensa e que começa com o reacionarismo erguendo a cabeça de forma descomunal"
Talvez a maior prova que você teve de enfrentar contra essa maré foi o período de ditadura no Brasil, sobretudo o exílio. Em algum momento, achou que não sobreviveria a ele?
Com a prisão e o exílio, muitas vezes me senti destruído. Mas quando pude voltar a viver no Brasil - graças a um milagre de João Gilberto - achei muito bom crer que poderia seguir vivendo - e não fiz tantas canções de enfrentamento, como Chico fez. Graças ao Espírito Santo, tivemos Chico ali, daquele jeito. Tive canções censuradas. Uma delas foi cortada no estúdio em que tinha sido gravada por [Maria] Bethânia sem que ela ou eu soubéssemos de antemão [Caetano, provavelmente, se refere à canção Negror dos Tempos, gravada no Estúdio Eldorado, em 1972]. Quando cheguei de Londres, o censor, na Bahia, queria retirar a palavra “reggae” [de Nine Out of Ten] (e a canção que a portava) por, não tendo sido encontrada em dicionários, poder ser subversiva. O censor que me fez diretamente essas exigências tinha sido meu professor na faculdade de filosofia da UFBA.
Ter sobrevivido é a esperança de que sobreviveremos, agora, a uma nova ameaça global do autoritarismo?
Acho que podemos sobreviver. Na minha idade, não dá para pensar muito que eu verei o começo da vida digna. Mas, posso vê-la no futuro. Tenho netos. Uma de 19, um de 16 e um de 5 anos. Olho pra eles e penso que os malucos que fazem barulho no mundo agora não vão ganhar a partida.
O show comemorativo de ‘Transa’, de 2023, agradou muito ao público. Não sei a você, no sentido de ter revivido todas as questões que esse disco traz. Foi, de alguma maneira, incômodo reencontrar aquele repertório?
Fiquei feliz de tocar de novo aquele repertório com Jards Macalé, Tutty Moreno, Áureo de Souza e a saudade de Moacir Albuquerque [baixista, morto em 2000]. Me intriga a adoração desse disco pelos brasileiros. Suponho que nos países de língua inglesa ele nem seja levado em conta. Bem, outro dia me disseram que há, sim, uma nuvem de culto a Transa entre certos críticos e ouvintes ingleses e americanos. Mas não me mostraram nada ainda.
Seu mais recente álbum de inéditas, ‘Meu Coco’, de 2021, falou sobre o mundo naquele momento. De lá para cá, embora um um curto período, esse mundo já é outro, mudou rapidamente com o avanço da inteligência artificial, com os novos conflitos mundiais e, mais recentemente, com o novo mandato de Donald Trump e como o presidente americano foi capaz de interferir no Brasil. Como seria uma possível novo, em relação aos temas e sonoridade? ‘Um Baiana’ talvez nos dê alguma pista, pois já vem carregada de uma demonstração de paz em meio ao conflito…
Achei que o gesto multitudinário e metafórico que se faz no carnaval de Salvador sob a liderança do Baiana System deveria ser cantado por Bethânia e por mim. Mas, por razões de saúde, não pude completar a canção antes da semana final [da turnê que ele e Bethânia fizeram juntos]. Anjos Tronchos fala mais da tensão de hoje em dia do que Um Baiana: fala do horror que representam esses bilionários das big techs. O do Meta, que era um garoto estudante (que, aliás, criou o Facebook junto com um brasileiro), além de manter a resistência a qualquer regulação, diz coisas absurdas. Um Baiana sugere um estilo e se opõe ao clima de guerra que se percebe hoje. Mas tudo o que me vem à cabeça agora para compor parece muito diferente sonoramente daquilo.
Você pensa em um novo álbum? Ainda faz sentido lançá-los em um mundo fragmentado?
Penso. Penso em canções a serem gravadas. Esboço algumas. Não me proponho: vêm-me à mente. Mas com streaming etc., tudo mudou. Penso em “álbum”, mas não vejo um em minhas mãos. Fiquei feliz ao saber que Mundo Paralelo, o novo de meu filho Moreno, saiu agora em vinil.
Te assusta a ideia que a IA pode criar uma canção a partir de um conjunto de canções que você fez ao longo desses 60 anos, que alimentam um banco de dados? Dizem até que a IA poderá criar não apenas uma canção, mas o músico em si… Um algoritmo que toque como João Gilberto, por exemplo?
Um algoritmo que toque como João? Nem consigo pensar nisso. Na verdade, nem sei ao certo o que é um algoritmo. Me assusta muito o que vejo na atualidade. Uma situação complexa em que as empresas de IA estão usando as criações artísticas para seu “aprendizado”, revertendo esse conhecimento em resultado financeiro, sem reconhecer a autoria e descontar os direitos autorais. É grave. Acredito que o Congresso Nacional precisa aprovar uma regulamentação sobre direitos autorais que proteja os criadores e garanta condições éticas do uso da inteligência artificial no Brasil. Considero um tema central nesse momento.
Os festivais costumam reunir um público jovem - a turnê Bethânia&Caetano também foi assim. Nando Reis, que também se apresentará no Coala, disse não saber o que é a geração Z e que não crê em “música geracional”. Você conhece e sabe o que quer a geração Z? Ela, de alguma maneira, pode influenciar a escolha do repertório de um show seu, a feitura de uma composição ou a escolha de uma sonoridade (Lucas Nunes, por exemplo, é um geração Z)?
Lucas Nunes é amigo e colega de escola e de música do meu filho mais novo, Tom. Durante a pandemia, conhecendo a capacidade musical de Lucas, fizemos Meu Coco, com ele em isolamento domiciliar aqui em casa. Entendo os gostos da turma deles. O disco de Dora Morelenbaum é muito rico e belo. Os que eles fizeram coletivamente, nem sei se foram lançados - não estou falando do Bala Desejo. Falo da [banda] Dônica [que tem Tom e Nunes como integrantes]. Faço canções desde a adolescência. Continuo fazendo. Naturalmente músicos mais jovens vêm para perto e termino trabalhando com eles. O que não tenho é uma aprovação irrestrita da velocidade do desenvolvimento tecnológico.
"Não vamos pensar que o empobrecimento do espírito nacional que deseja a extrema direita venha a ser vitorioso com facilidade"
Ainda por falar nesse público mais jovem, ele parece disposto não só a ouvir nomes como Caetano, Gil, Bethânia, Tom Zé, Paulinho da Viola, mas também deseja entender e decifrar suas canções. Saber o que é “ficar Odara”, estar “pra lá de Marrakesh”, dar “um jeito de corpo” ou saber quem são os “caretas” que merecem a chuva de “leite mau”. O que diz aos jovens sobre a obra de Caetano?
Que ouçam e me ajudem a entender. Vejo multidões cantando canções que fiz bem antes de grande parte dos que estão ali ter nascido. É uma experiência interessante. As canções que fizemos há décadas são coisa atual para muita gente jovem. Isso também significa uma força profunda da história cultural brasileira. Não vamos pensar que o empobrecimento do espírito nacional que deseja a extrema direita venha a ser vitorioso com facilidade. E as resistências mudam a estrutura do resultado final.
No show ‘Festivais’, você segue homenageando Gal. Gil faz o mesmo em sua turnê ‘Tempo Rei’. Imagino que Bethânia também o fará na turnê 60 anos. Considerando a ‘santíssima trindade’ das cantoras brasileiras - Gal, Elis e Bethânia -, como Gal se situa em importância entre uma das principais intérpretes de sua obra? E mais: como ela se situa em importância dentro da música popular brasileira moderna, em relação a Elis e Bethânia?
Gal era uma menina que amava e entendia a bossa nova. Sem precisar pensar muito. Aquela emissão luminosa e suave veio desse amor solitário e sempre aprofundado. Beta não era bossanovista. A expressão dramática sempre a interessou mais. Já Elis é um fenômeno de musicalidade. Sem partir da bossa nova propriamente dita, mas do samba-jazz do Beco das Garrafas, tendo passado antes por uma tentativa comercial de nível crítico fraco (os discos que ela fez antes de ser a figura que veio a conduzir o Fino da Bossa na TV Record e que sumiram do mapa), ela teve uma vida artística cheia de tumultos. Mas eu via todos os shows que ela apresentava no Rio durante o período pós-Fino. Gal tinha, como eu, a paixão total pela música de João Gilberto. Por isso foi capaz de cantar a tropicalista Divino, Maravilhoso, minha e de Gil. Bethânia deu conselhos úteis a nós, tropicalistas, mas não queria entrar como parte do movimento. Gal entrava sem nem precisar pensar.
"Bethânia deu conselhos úteis a nós, tropicalistas, mas não queria entrar como parte do movimento. Gal entrava sem nem precisar pensar"
Gostaria de aproveitar e perguntar sobre Elis. Sempre que citam Elis e Caetano falam de um suposto conflito, talvez por críticas pontuais que você fez ao trabalho e às posições dela. Há um áudio de um show de Elis, de 1968, que permanece inédito, no qual ela diz que sobre você, antes de cantar ‘Superbacana’: “músicas, algumas; letras, todas”. Para você, o que ficou dessa relação?
Elis foi a mais musical de todas as cantoras-estrelas da geração. Não me lembro de nada dito por ela sobre músicas e letras. Essa frase que você cita me soa bem justa. O único conflito que tive com Elis foi quando, num show [Transversal do Tempo, de 1978] escrito e dirigido por Aldir Blanc e Maurício Tapajós, ela debochava de minha música Gente, cantando parte dela num estilo meio caricato de travesti à frente de um telão luminoso em que se lia BEBA GENTE [slogan da Coca-Cola à época]. Vi o show sozinho. Eu via todos os shows de Elis sozinho: as pessoas que eu conhecia de perto não gostavam do estilo dela. Eu tinha enorme admiração. Anos depois, fui a São Paulo assistir ao último show que ela fez [Trem Azul, em 1981]. Fui com Gil. Elis mandou bilhetes para Gil e para mim. O meu era mais longo, quase uma carta, e nele ela pedia desculpas por ter feito aquela cena agressiva contra minha canção (que hoje é a segunda do meu show Festivais e a plateia ovaciona). Ela atribuía a responsabilidade aos diretores do espetáculo. Fui falar com ela e ela estava animada demais no camarim. Nunca deixei de reconhecer o valor de Elis. Cantora de música. Outro dia alguém de Porto Alegre me mandou um vídeo dela falando de mim com respeito, admiração, carinho e compreensão do que pode haver de bom em minha obra. Fiquei emocionado.
"Opino se achar que tenho o que dizer. Ou se algo me arrebatar e eu sentir necessidade de falar"
Repito a você uma pergunta que fiz a Gil, quando ele anunciou essa turnê ‘Tempo Rei’, a última grandiosa que pretende fazer: Você, assim como ele, sempre foi instigado e procurado para dar opiniões sobre questões como política, cultura, meio ambiente e outros assuntos que lhe são caros. Você também diminuiu o ritmo de shows este ano. Pretende, da mesma maneira, diminuir a esse apelo de opinar?
Tenho que diminuir o número de shows que faço. Já diminuí. Festivais não são como uma turnê. É um show por mês em média. Quanto a opinar, opino se achar que tenho o que dizer. Ou se algo me arrebatar e eu sentir necessidade de falar.
Recorro a Gil novamente. Ele disse, ao anunciar essa última grande turnê, que já não é o “artista da vez”, em relação ao mercado, embora a prorrogação de datas de sua turnê mostre o contrário. Para Caetano, leonino, como é essa questão?
Apenas vejo que o fenômeno sertanejo, o fenômeno gospel, o funk, o rap e o trap são grandes novidades, mas não apagam o histórico da música popular brasileira. Há promotores que creem nisso, e nós somos chamados. Principalmente, ouço jovens cantarem as letras conosco. Vejo isso como um aspecto relevante da história da cultura brasileira, algo que precisa ser levado em conta por quem quer que pense no destino do Brasil.