A Bossa Nova É Foda (Caetano Veloso)
O bruxo de Juazeiro numa caverna do louro francês
(Quem terá tido essa fazenda de areais?)
Fitas-cassete, uma ergométrica, uns restos de rabada
Lá fora o mundo ainda se torce para encarar a equação
Pura-invenção
Dança-da-moda
A bossa nova é foda
O magno instrumento grego antigo
Diz que quando chegares aqui
Que é um dom que muito homem não tem
Que é influência do jazz
E tanto faz se o bardo judeu
Romântico de Minessota
Porqueiro Eumeu
O reconhece de volta a Ítaca:
A nossa vida nunca mais será igual
Samba-de-roda, neo-carnaval, rio São Francisco
Rio de Janeiro, canavial
A bossa nova é foda
O tom de tudo
Comanda as ondas do mar
Ondas sonoras
Com que colore no espacial
Homem cruel
Destruidor, de brilho intenso, monumental
Deu ao poeta, velho profeta,
A chave da casa
De munição
O velho transformou o mito
Das raças tristes
Em Minotauros, Junior Cigano,
Em José Aldo, Lyoto Machida,
Vítor Belfort, Anderson Silva
E a coisa toda:
A bossa nova é foda
© 2012 Uns Produções (Warner Chappell) - Álbum Abraçaço - Caetano Veloso.
Comentário do autor: "Canções com letras que parecem indecifráveis têm muito apelo, têm atração forte. Na língua inglesa é uma tradição de décadas, você praticamente não entende nada e, no entanto, as pessoas gostam daquelas canções. São sugestivas porque têm palavras escolhidas que calham bem naquela melodia. Estou lendo o livro do David Byrne, "How Music Works", em que ele conta como decidia as palavras que usava nas melodias. E elas muitas vezes partiam do som. Aquilo é sugestivo, não explícito, não mastigado. Qualquer Coisa foi um grande sucesso, mas é quase um texto abstrato. A Bossa Nova É Foda, do disco novo, é quase um jogo de palavras cruzadas, uma charada, mas o importante é o essencial. E o essencial é que a bossa nova é foda. Ali há outras referências. Ao ouvir "o bruxo de Juazeiro", não é possível que uma pessoa não saiba a quem estou me referindo. E mesmo que "o magno instrumento grego antigo" seja uma maluquice, como se fosse outro desafio de palavras cruzadas, em seguida você ouve que "diz que quando chegares aqui que é um dom que muito homem não tem que é influência do jazz". Não é possível que não perceba que eu estou falando de Carlos Lyra. Quando chegares aqui é o dom que muito homem não tem, da música Maria Ninguém, e a influência do jazz! São momentos-chave na história da composição de Carlos Lyra. E aí você pensa em magno, associa com Carlos. E instrumento grego antigo? Lyra. É uma brincadeira, mas não precisa a pessoa fazer isso. Eu faço, acho bacana." (Caetano Veloso para O Estado de S. Paulo, 2012).
"Ele [João Gilberto] era louco por boxe. Caracterizou o estilo dele de ataque dos acordes e de escolha das divisões como um golpe de caratê, quando voltou dos EUA, numa entrevista ao Tárik de Souza. E gostava de ver boxe, era fã de Mike Tyson e seguramente assiste MMA. Mas isso é o fato. Disso eu já gosto. O que eu acho também é que o MMA foi uma criação muito brasileira, porque é uma mistura de lutas, de tipos de luta que nasceu com os Gracie, em Belém do Pará. É mistura criada a partir do Brasil, entendeu? Então nesse ponto tem um paralelo com a bossa nova. E tem um desejo em toda a canção de fazer um retrato da bossa nova como gesto histórico e estético agressivo. Não o clichê da coisa doce e suave. Mas não é nenhuma novidade, é apenas uma maneira de dizer. Essa canção é outra maneira de dizer algo que vem sendo dito por mim, pelo Tom Zé, pelo Gil, por diversas pessoas há muito tempo. Tom Zé tem um disco todo sobre isso, e tem muitas falas dele em que ele apresenta a bossa nova como gesto histórico de grande violência. E eu gosto de dizer assim. Acho que também porque eu leio muito uns jornalistas americanos, ingleses, que falam como se a bossa nova fosse um negócio mole, doce. Eles estão errados." (Caetano Veloso para a Folha de S. Paulo, 2012).
"É mesmo verdade que escrever A Bossa Nova É Foda me deu um imenso prazer. É a canção de que mais gosto em todo o disco. As palavras aparecem como numa charada. Quem conhece música, percebe logo que "o bruxo de Juazeiro" é João Gilberto (o que remete a Machado de Assis, conhecido como "o bruxo do Cosme Velho"). Mas quase ninguém reconheceu Carlos Lyra debaixo das palavras "o Magno instrumento grego antigo" – que parece um conceito para se adivinhar num jogo de palavras cruzadas. É muito abuso, mas nesse caso é legítimo que seja assim: o tema e o tratamento já liberam a mente pra qualquer maluquice, o que não é o caso com O Império da Lei ou Um Comunista. E a banda faz tudo se ligar ao Cê. Aliás, essa canção foi a única do Abraçaço que levei aos elementos da banda com o esboço do arranjo todo estruturado, como fiz com as canções do Cê. A menção aos lutadores de MMA é complementação da homenagem a João, que gosta dessas lutas – e da presença cultural brasileira, inventiva e misturadora, que está na bossa nova e no nascedouro do UFC." (Caetano Veloso para o jornal Público, 2014).
"Moreno produz os discos desde que comecei a tocar com a bandaCê. Zeca e Tom são as primeiras pessoas a ouvirem todas as músicas novas que faço. E comentam, influem. Por exemplo, os nomes dos lutadores de MMA, o Tom e o Zeca que me ajudaram a escolher e pôr em ordem." (Caetano Veloso para a Revista Gol, 2013).