Acrilírico (Letra: Caetano Veloso, Música: Rogério Duprat)

Olhar colírico
Lirios plásticos do campo e do contracampo
Telástico cinemascope teu sorriso tudo isso
Tudo ido e lido e lindo e vindo do vivido
Na minha adolescidade
Idade de pedra e paz

Teu sorriso quieto no meu canto

Ainda canto o ido o tido o dito
O dado o consumido
O consumado
Ato
Do amor morto motor da saudade

Diluído na grandicidade
Idade de pedra ainda
Canto quieto o que conheço
Quero o que não mereço
O começo
Quero canto de vinda
Divindade do duro totem futuro total
Tal qual quero canto
Por enquanto apenas mino o campo ver-te
Acre e lírico o sorvete
Acrilíco Santo Amargo da Putrificação

© 1969 Ed. Gapa/Saturno - Álbum Caetano Veloso - Caetano Veloso.

Comentário do autor: "É um caso raro de texto que escrevi sem ser para letra de música. Também não sabia se era prosa ou poesia. O meu interesse era pelas palavras inventadas, pela mistura que eu podia fazer com elas, conforme eu tinha visto na revista dos poetas concretos, sobretudo na “Invenção”, que Augusto de Campos me deu de presente. Eu achei aquilo tudo muito próximo do que me interessava, e escrevi o “Acrilírico”. O acrílico era um material muito novo, tinha justo aparecido, e como o texto tem várias reminiscências, a palavra acrilírico dava uma espécie de nó no tempo. Eu tinha acabado de sair da prisão e estava confinado na Bahia quando gravei a canção. Durante a gravação, o Rogério Duarte insistiu comigo para que eu mudasse o verso final: “Acrílico Santo Amargo da Putrificação”. Ele fez uma campanha danada para eu não colocar “putrificação”, dando àquilo um caráter meio religioso mas também com argumentos muito bem pensados, que acabaram me impressionando, e que não eram diretamente religiosos. Ele dizia assim: “É o nome da santa padroeira da sua cidade, isso é uma carga muito pesada, as pessoas da sua família, seu pai, sua mãe, vão ouvir...”. Eu nunca me preocupava muito com as pessoas da minha família porque eles não se melindravam com nada, mas a argumentação do Rogério era forte, no geral, e sugeria um quadro capaz de desencadear forças negativas. Bem, era 69.
Algum tempo depois, Augusto de Campos me pediu permissão para se referir ao verso, porque ele se lembrava do uso da palavra “putrificação” na versão original e isso o remeteu ao dear dirty Dublin, de Joyce. Eu contei toda a história ao Augusto e disse que não me opunha absolutamente a ele citar a imagem original e lhe expliquei que só a retirara durante a gravação por causa das preocupações de Rogério Duarte. O mais engraçado porém é que, nessa ocasião, quando falei sobre o caso com o Rogério, ele me disse: “Ah, mas você sabe quem foi que me vendeu aquele grilo? Foi o André Midani”. O Midani era o presidente da Polygram, a gravadora! Eu acho que, do ponto de vista do texto, é importante a manutenção de “Acrílico Santo Amargo da Putrificação”, que é muito mais forte e mais bonito. Também seria demagógico evitar a imagem, porque eu adoro Santo Amaro e, hoje em dia, embora não seja religioso nem queira ser, sou devoto de Nossa Senhora da Purificação. E “putrificação” dizia e diz muita coisa sobre a cidade, que vem apresentando muitos sinais de degeneração urbana e social, sobretudo de deterioração do ambiente, por causa da poluição química, violentíssima nessas décadas de intensa industrialização.
Penso que há muita verdade no termo “putrificação”, que, para além da referência a Santo Amaro, é radicalmente contra uma imagem idílica das cidades do interior do Brasil, sobretudo das do Nordeste. E acho que Nossa Senhora da Purificação me faz mais forte por eu ter coragem de manter essa visão crítica, inconformada e algo que revoltada, que reconhece as nossas mazelas. A vida brasileira é muito problemática e é ruim querer esconder isso.
Quanto à primeira parte da imagem, “amaro” é “amargo” em italiano. Existe esse nome, Amargo, como nome de homem na Espanha, pelo menos em algumas peças e poemas de Lorca, assim como há para mulheres nomes como Martírios e Dolores. Em A casa de Bernarda Alba, de Lorca, uma das moças se chama Angústias. Então, eu julgava que Amaro fosse um nome italiano de homem que significava mesmo “amargo”, como para os espanhóis. Mas terminei por descobrir que, na verdade, Santo Amaro é São Mauro e que teria havido uma corruptela do nome. As biografias dos santos registram Santo Amaro ou São Mauro. E Mauro quer dizer mouro. O interessante é que lá em Santo Amaro se cultiva cana-de-açúcar desde sempre. É por isso que em outra canção, “Trilhos urbanos”, falo: “Cana doce, santo amaro”. Ao lado do doce, outra vez, o amargo." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003).

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