Dolores e Eric (24/03/2013)
Fiquei surpreso com o artigo de Angela de Almeida publicado aqui ao lado na quarta-feira. O título era “Em defesa de Dolores Duran” mas, apesar da redação sóbria, não se entende de que a articulista está defendendo a cantora. Pela citação direta de comentário feito aqui nesta coluna, pareceria que ela quer defender Dolores de mim. Ela acha mesmo que diminuí Dolores ao reconhecer que “Por causa de você” é uma canção de amor afirmativa e que “Estrada do sol” resplandece de contraste com o pessimismo amoroso dos sambas-canções dos anos 1950? Angela reclama de eu ter dito que a figura vital e engraçada que aparece na biografia escrita por Rodrigo Faour não me surpreende. Mas por que diabos isso estaria na contramão da admiração pela personalidade artística da compositora que exponho no parágrafo precedente? Na verdade, toda a angustiante história da cardiopatia que acabou matando nossa adorada artista está narrada no livro de Faour. Se Angela tem críticas a fazer ao livro desse autor, que as faça. Mas essa velada acusação não procede: Faour não omite, nega ou desmente a tensão que acompanhou Dolores por toda a sua curta vida.
De minha parte, sempre tive e tenho a sensação nítida de que Dolores não era uma moça triste, nem mesmo uma autora especialmente pra baixo dentre os fazedores de baladas brasileiras daqueles tempos. Eu a vi de perto no auditório da Rádio Nacional e senti uma simpatia imediata, passando a achar que a conhecia. Deplorarei sempre não ter podido encontrá-la quando finalmente vim para o Rio. Lendo o livro de Faour, eu me encontrei com a pessoa que intuía a partir da aparência, da voz e das músicas. As canções de Dolores são as mais convincentes, sinceras e diretas que se podem escrever. Todas as referências ao “tempo passando” e à certeza terrível da mortalidade entrelaçada com a sede sem fim de ser amada que aparecem em suas composições são registradas por Faour. Pode-se não gostar (eu não gosto) do tom demasiado jocoso e do coloquialismo extravagante do autor, mas a pesquisa sobre quem foi a mulher que ganhou o nome Dolores Duran é abrangente e honesta. Dolores aparece como uma menina excepcionalmente inteligente, que gostava de curtir a vida e que sentia alegria com a própria inteligência. O jeito de ela cantar os baiões engraçados de Chico Anysio e os não menos engraçados sambas de Billy Blanco mostra bem que tipo de piadista ela era. As lembranças dos seus ex-amantes coincidem em descrever uma mulher apaixonada e sensual, com grande culto do amor físico. A irmã e as amigas descrevem uma pessoa reconhecível. Uma personagem vívida sai das páginas do livro. Nenhum dos seus próximos desmente as características da personalidade brincalhona. Faour sempre parece perfeitamente honesto na transcrição dos depoimentos. Se Angela está escrevendo uma biografia mais aprofundada da compositora, ótimo. Que ela a publique o quanto antes. Mas não venha ralhar comigo pelo que eu não fiz.
.Dolores é o máximo. Sem ela eu não estaria tão firme contra Marco Feliciano na presidência da Comissão de Direitos Humanos; eu não teria entendido nem um décimo do que entendo da linguagem da canção popular; o Brasil não seria o que, a duras penas, consegue ser. Dolores é uma glória da língua portuguesa, sem a qual o samba não existiria.
Estou escrevendo quase sem usar a cabeça. Em meio aos preparativos para a estreia do show “Abraçaço” (quando este artigo sair, já terei feito três dos quatro shows que anunciei fazer no Circo Voador), só tenho na mente as palavras e as notas embaralhadas de “Um comunista”, “Alexandre” (que vou ler, pois nunca a cantei em público, já que não decorei a letra) e “Funk melódico” (que gravei lendo e nunca mais cantei). Gosto de música popular. Sempre gostei. Há algo aí. Quando, em suas análises da formação social do jazz, Eric Hobsbawm fala com desprezo de Tin Pan Alley (a rua que deu nome à produção de canções americanas nos anos 1920, 30 e 40), ou seja, de Irvin Berlin, George Gershwin e Cole Porter, eu me sinto mal. Não é que eu queira a aprovação dele para a canção pop (como ele já chama o tipo de música feita por essa gente): é que eu acho que há algo errado em não se captar a grandeza desse gênero. Hobsbawm é que fica sem minha aprovação. Sou mais Dolores.
É simpático que Hobsbawm não embarque no ódio ao jazz que Adorno nutria. Apesar da crítica do capitalismo (Hobsbawm também era marxista), ele não desqualifica uma forma de expressão complexa como o jazz. (Embora eu ache que têm graça algumas arengas de Adorno: ele entendia mais de música do que Hobsbawm.) Mas nada de “Night and day”, “The man I love” ou “Por causa de você” com ele.
Caetano Veloso.
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