Leminski! (28/04/2013)

Vim de Petrolina para Porto Alegre com uma escala prolongada em Salvador e outra relâmpago no Rio. Daqui sigo para Belo Horizonte. Estou em aeroportos e hotéis, além de palcos, quase o tempo todo. Mas uma conversa rápida com Jorge Furtado aqui na quinta à noite me pôs um pensamento na cabeça que é muito apaixonante. Ele me disse que o livro de poesias reunidas de Leminski está entre os mais vendidos. Na verdade, ele afirmou que esse livro chegou a passar à frente do mais vendido das listas. Ouvir dizer que um livro de poemas está vendendo assim no Brasil é escândalo. Tínhamos aprendido que poesia não vende. Exceto talvez na Rússia. No Brasil então… Mas Leminski!... Fico pensando no significado desse fenômeno, mas sobretudo me vêm as lembranças dos encontros com o poeta. Saber disso aqui no Sul do país torna tudo mais vívido.

A primeira vez em que estive com Leminski foi em sua Curitiba natal. Aliás, por muito tempo eu o encontrava lá. Ele vivia com Alice Ruiz numa casa de madeira sem aquecimento. Eu aguentava o frio das altas horas depois dos shows empacotado em casacos grossos, camisetas sob as camisas de manga comprida, ceroulas, meias de lã e, às vezes, luvas. Acho que já não bebia nada. Ou talvez ainda bebesse um pouco nas primeiras vezes. Leminski bebia muito. Mas o que aquecia o ambiente eram suas palavras, seus olhares de profundo carinho desconfiado, sua risada rouca e o milagre de algumas canções que ele compunha com parcos acordes de violão. A primeira vez que ouvi “Verdura” (“De repente me lembro do verde/ A cor verde, a mais verde que existe/ A cor mais alegre, a cor mais triste/ O verde que vestes, o verde que vestiste/ No dia em que te vi, no dia em que me viste./ De repente vendi meus filhos/ A uma família americana/ Eles têm carro, eles têm grana/ Eles têm casa e a grama é bacana/ Só assim eles podem voltar e tomar um sol em Copacabana”) senti a força da poesia a um tempo como piada e fundo lamento virando canção caipira urbana. Resolvi gravá-la — e até hoje, se me lembro dela, me dá um nó na garganta. Mas era muito mais intenso e muito mais bonito ouvi-la cantada pelo autor numa casa de madeira sem lareira.

Leminski foi um menino prodígio do concretismo (os concretos o publicaram na revista “Invenção”, depois de um encontro literário em Belo Horizonte onde Haroldo de Campos o conheceu, ele ainda adolescente), entusiasta dos beatniks, personagem autoirônico da contracultura. Ele lutava caratê. Tinha uma cara de Europa Oriental. Mais oriental do que Europa. Tinha lido muito e continuava lendo muito. Era culto e apaixonado pelas letras. Creio que quando o conheci ele estava escrevendo o “Catatau”, uma aventura literária joyciana em que Descartes vem com Maurício de Nassau (coisa que poderia ter acontecido) para Pernambuco e entra em contato com a luz dos trópicos, os bichos e árvores exóticos — e os psicotrópicos naturais. Ele o tinha como a obra central de sua vida literária. Desde a escolha do título até o modo como ele se referia ao livro, sentia-se que ele o via fisicamente maior do que era. Esta é uma observação curiosa, meio maluca. Mas é o que sempre me vinha à cabeça. O tamanho do objeto “Catatau” parecia desmentir a imagem que Leminski tinha na cabeça quando se referia a ele. Sua força literária é outra história. Leminski gostava de repetir que um criador tem apenas uma ideia — e que a dele tinha sido o “Catatau”, Descartes no Brasil e a subversão da lógica cartesiana. As primeiras páginas empolgam pela inventividade vocabular e pelo sentido de ritmo. É um livro que, depois de ler as poesias reunidas, que são outra onda, preciso voltar a ler. Preciso também assistir ao filme “Ex-isto” (grande título!), em que João Miguel faz Descartes.

Depois, um tanto decepcionado com o destino do “Catatau”, Leminski escreveu um romance mais convencional, chamado “Agora é que são elas”, sobre o qual conversei muito com Boris Schneiderman, ficando com a impressão de que esse grande tradutor e eu éramos os únicos a admirar essa incursão do poeta curitibano pela prosa propriamente narrativa e pela fabulação tipo novela policial.

Mas a poesia! Leminski sempre atraiu jovens leitores para a poesia. Jovens de várias gerações. Reunida, sua obra poética parece ter juntado toda essa vontade de poesia que estava enrustida há décadas. Nem quero falar sobre os versos, os poemas curtos, os hai-kais, o tom de eterna circunstância de suas tiradas poéticas. Só depois de reler tudo junto e misturado. Por ora, basta celebrar a virada de jogo que representa essa boa nova. Que poesia volte a vender livros no Brasil é uma revolução. Que esta esteja sendo feita por Leminski é sinal de que ela é profunda.

Caetano Veloso.

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