O maluco sou eu (22/09/2013)

Uma moça me escreveu que dizer “eu sou velho” é alimentar preconceito contra a velhice. E falar nos doidos das cartas à redação, reforçar discriminação da loucura. Sempre senti certo mal-estar com o “Samba do crioulo doido”, cujos título e versos paródicos me transformavam num crítico quase tão politicamente correto quanto minha missivista. Mas estou no polo oposto e vou parodiar o estilo Sérgio Porto. Sempre adorei a frase de Paulo Francis sobre cartas à redação. Ele escreveu também que Porto não via com olhos muito otimistas a presença de pretos nas praias que eles às vezes frequentavam na Zona Sul. Cito Francis, não apesar de ele ter escrito contra mim. Ele estava mentindo e por isso reagi duro, mas a parte negativa da caracterização não era “bicha”: era “travada”, e com isso expliquei que eu é que fora insultado e respondia com crítica cultural. A parte quente do texto dele era sobre eu propagar ideias de amor sem limite. Mas isso era só um aceno aos esquerdistas que ele estava por abandonar. Fui seu fã na adolescência. Mas descobri por mim mesmo, antes dele, a força dos argumentos liberais contra o terror que o comunismo urdia. Nem li Aron contra Sartre (só li Sartre): bastaram-me três ou quatro palavras ditas como comentário cético por Artur Guimarães aos discursos de Mautner em Londres 71. A combinação de tais discursos, que uniam Jovem Guarda e Guarda Vermelha, com o riso de Artur (“Não acredito em sociedade de um livro só”) me fez pensar três vezes. O nietzschianismo de esquerda de Mautner era acompanhado pela frase curta de Artur: “Sou cristão”. Eles foram colegas de escola. Cicero tinha chegado e ainda era um tanto althusseriano: todo mundo buscava ter coragem de olhar o mundo de frente.

Hoje Mautner esplende quando grita o nome de Jesus de Nazaré e deixa Nietzsche amargar a fama de protonazista. E Cicero faz a mais bela recuperação do paganismo que se pode fazer. Mangabeira combate o paganismo como doença europeia, coisa com que os EUA e o Brasil não afinam. Mas Mautner resume: Jesus de Nazaré e os tambores do candomblé. Outro paganismo, do Sul contra o do Norte, com o Brasil no centro. Mautner com Dilma e Lula. Olavo de Carvalho escreveu aquele livro eloquente contra Epicuro. O ganhador do Pulitzer Stephen Greenblatt, em “A virada”, localiza o nascimento da modernidade justamente no momento da recuperação de “De Rerum Natura”, o poema epicurista de Lucrécio no século XV. Thomas More, quando escreve a “Utopia”, já no XVII, partindo das descrições de Vespúcio (que Greenblatt relaciona ao Brasil), compensa a adoção da busca do prazer com a exigência da crença na imortalidade da alma e na Providência. Mangabeira quer encarar a mortalidade da alma sem ilusões, mas não vê a modernidade sem o cristianismo — e mostra que as grandes religiões formam mais o mundo do que as vãs filosofias. Para ele a modernidade não é pagã e clássica mas romântica e cristã. Olavo fala como se toda a academia fosse negação iluminista da Idade Média e mitificação da Renascença. Mangabeira não tem nada disso. Desembaraça-se de modo original e rigoroso, diferençando sua própria interpretação da Era Axial da que serviu a Jaspers para reafirmar as Luzes. Ama filosofia medieval. Propõe aprofundamento da democracia, superação do trabalho assalariado como única forma de trabalho “livre”. Mas no “Jardim das Aflições” Olavo reprova os pragmatistas.

Se chego até a pôr o nome de Azevedo neste espaço (quase ponho o do anêmico Constantino) é porque respeito o credo liberal (Mangabeira ama Mills). Também tenho olhado mais esses da direita (mas é pouco: dois posts do Azevedo que me mandaram por e-mail: não busco nada, já notaram?, tudo me cai nas mãos, como a maravilhosa camisa preta dos BBs). Moça, sou eu o maluco. E não se pense que o silêncio sobre Lobão é resguardo. Apenas não achei o livro nem tive tempo de volta a procurar. Sou velho e atarefado. Quando ler, falo. Se interessar. Mas deve: gosto de Lobão. Ele tem razão na canção de amor que escreveu para mim (me faz chorar). Li Zé Miguel a respeito. Mas minhas ambições para o Brasil deviam ser observadas com um pouco mais de coragem intelectual por parte de Roberto Schwarz. Defender a aprovação juvenil das posições já empedernidas não vale. Safatle fala em autocrítica: lembro as retratações sob Stalin. Gosto da “Fevereiro” de Fausto. Snowden mandou pra Greenwald e se exilou na Rússia (!). O mundo está fora dos eixos. Dilma esnoba Obama. Noel foi classista e racista em “Feitiço da Vila”. Amo Noel. Apenas consigo não odiar o samba do Stanislaw. É meu miolo mole. Azevedo me atribuiu verso de Orestes. E Olavo, de Lupicínio. Brigado.

Caetano Veloso.

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