Parafuso (02/02/2014)

Edward Snowden é uma figura forte. Sua presença pública tem o sabor das entradas individuais que desencadeiam coisas grandes na cena do mundo. Jovem, ele parece um pouco o garoto que, em “E la nave va”, deflagra, com um único gesto, a Primeira Guerra Mundial. Falo do personagem do filme e não do homem real que matou o arquiduque da Áustria porque é a captação poética do tipo de agente histórico que me interessa evocar. Snowden é a mostra de que vivemos um tempo cheio de presságios, esperanças, ameaças. O presidente do seu país de origem, Barack Obama, um mulato que é o primeiro negro eleito para o posto e que representa, não apenas por isso, todo um mundo de ideias opostas às forças conservadoras, diz sobre ele o mesmo que diria um representante dessas forças: tendo optado por fazer do que descobriu uma denúncia pública, em vez de uma queixa interna, Snowden pôs a segurança dos Estado Unidos em xeque. Mas não há no mundo quem não pense que só a denúncia externa seria eficiente contra o que Snowden achou moralmente inaceitável. Por uma volta caprichosa do parafuso da História, ele foi encontrar guarida num país em que o respeito às individualidades é oficialmente (e desde sempre) muito menos respeitado do que nos EUA: a Rússia. Não deixa de ser significativo — e, em grande medida, honroso — para nós que, vendo o tempo de refúgio temporário se esvair e querendo encontrar-se em ambiente mais confortável, ele tenha pensado no Brasil, começando a namorar-nos num texto vago, aparentemente escrito para sondar a reação das nossas autoridades, que poderá se traduzir em pedido oficial de asilo político caso exibamos simpatia. (Antes de conseguir o asilo temporário que a Rússia lhe concedeu, Snowden expediu pedido para 21 países, o Brasil entre eles, tendo sido atendido apenas por Bolívia, Venezuela e Nicarágua.)

No dia 5 de fevereiro, na sede da Anistia Internacional, no Rio, haverá uma reunião para abrir o debate sobre a possibilidade de o Brasil finalmente dar asilo ao americano. Glenn Greenwald, o jornalista a quem primeiro Snowden falou sobre os supergrampos da NSA, já disse que nosso país é sua escolha preferencial. E David Miranda, o namorado de Greenwald, é o autor da petição na Avaaz para que o governo brasileiro conceda o asilo a Snowden. Emocionalmente, é-me quase irresistível aderir à campanha de Miranda (que ficou horas preso no antipático aeroporto londrino de Heathrow sob suspeita de “terrorismo”). Não estou no Rio e não estarei lá no dia 5. Se estivesse, iria à Anistia para ouvir o debate e me sentir mais seguro para assinar a petição na Avaaz.

Falta-me sobretudo pesar racionalmente a questão. No coração, desejo que Snowden venha morar no Rio e fique muito mais apaixonado pelo Brasil do que Ronald Biggs. Vivo num mundo de sonhos cor-de-rosa e ficaria feliz se um cara como o jovem americano se ligasse mais ao Jardim Botânico do que Brigitte Bardot se ligou a Búzios. Seja como for, sinto, sem piada, que seria um gesto bonito acolher Snowden. Claro que quero que as relações entre o Brasil e os Estados Unidos possam melhorar e não sou tão desinteressado assim do assento brasileiro no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Preferiria nada arriscar a perder oportunidades para o Brasil. Sou amalucadamente patriota. Mas é porque quero que se invente algo bom tendo o Brasil como pretexto. Claro que, num mundo ideal, eu teria meu Brasil acumulando poderes para redimensionar os valores por trás do Poder. Dessa perspectiva irrealista é que o asilo a Snowden me parece totalmente desejável. Mas não só. Há mil situações realistas entrelaçadas em diferentes instâncias dessa minha visão irreal. Faz uma semana, escrevi aqui uma série de maluquices sob a palavra “superstição”. Sou esse tipo de cara. Eu mesmo não estou certo de onde começa e onde acaba a ironia em minha ideias e em minhas frases. Deve ser o hábito da letra de música, coisa tão próxima à poesia. Basta-me que algumas palavras confusas cheguem a ser sugestivas. Aliás, nem é muito preciso dizer que isso me basta: não é que me baste, é que suponho que assim vou mais longe do que iria se me ativesse à prosa explicativa. Sonho que, se nós chegássemos a persuadir a presidente Dilma a conceder o asilo a Snowden, uma luz nova se insinuaria na Terra. Isso é vivido agora de modo um tanto supersticioso: se chegarmos a convencer o nosso governo, é porque as forças inexplicáveis estarão sinalizando que algo quase maravilhoso vai dar pé. Vejam aonde um convite para ir à sede da Anistia Internacional me trouxe. E um convite a que nem posso atender.

Caetano Veloso.

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