1972 - Transa - Caetano Veloso


Em 1971, quando veio temporariamente ao Brasil, Caetano Veloso foi interrogado pelos militares que tentaram convencê-lo a fazer uma música para a rodovia Transamazônica, à época em construção. Um ano depois, "Transa", segundo disco produzido em Londres, foi lançado no Brasil em março de 1972, dois meses após a volta definitiva do exílio. Caetano desembarcou com o show do disco já pronto, estreando dias depois no Teatro João Caetano, no Rio. É top 10 da lista dos maiores discos brasileiros feita pela Rolling Stone, traduzindo a assimilação por Caetano dos ritmos experimentados durante sua estadia na Inglaterra (como o rock e o reggae) misturada às raízes da música popular brasileira, numa espécie de "montagem com efeito rítmico de cinema", como disse o cantor. Por meio das suas composições em inglês, Caetano cita obras como “Maria moita" de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, "Água com areia" de Tom Jobim e Vinicius, "Consolação" de Baden Powell, "Sodade Meu Bem, Sodade" de Zé do Norte e "Reza" de Edu Lobo e Ruy Guerra, além da própria "Saudosismo", esta cantada por Gal Costa. É dela também os vocais em "You don't know me" e "Nostalgia" e a marcação do ritmo em "Nostalgia", ao tocar dois pedaços de madeira. Quem também faz participação especial é Angela Roro ao tocar gaita na faixa “Nostalgia”. O álbum inova também em seu conceito visual, trazendo a noção de "disco-objeto", mas esquece de incluir a ficha técnica. Tocaram no disco: Jards Macalé, Áureo Souza, Tuty Moreno e Moacyr Albuquerque. É visto por muitos como a obra-prima de sua discografia.

Em 2023, Caetano celebrou os 50 anos do disco num show especial com a presença dos integrantes originais da banda de Transa. 

Caetano: "Macalé tinha lançado uma canção em parceria com Capinan no festival da Globo no Rio (o tal Festival Internacional da Canção) chamada "Gotham City" em que ele revivia o clima das apresentações tropicalistas - e recebeu as vaias (e o acompanhamento  jornalístico) correspondentes. Escrevi convidando-o  para tocar comigo em Londres. Ele aceitou. Minha ideia era fazer um grupo que tocasse a partir do meu próprio modo de tocar violão. Tuti Moreno já estava morando em Londres e Áureo de Sousa tinha chegado para passar algum tempo. Juntamente com Tuti, ele se encarregaria da bateria e da percussão. Escrevi para a Bahia chamando Moacir Albuquerque, o belo e talentoso irmão de Perinho, para trazer "um contrabaixo baiano" para a minha banda. Ele também aceitou. Daí é que nasceu Transa, um dos meus discos preferidos. Não que eu o ponha hoje para ouvir (não faço isso com nenhum dos que fiz, a não ser que haja um motivo especial para isso, o que faço como trabalho pouco prazeroso), mas a simples lembrança de que ali se deu minha primeira tentativa de criar um som a partir das minhas próprias ideias me enche de alegria. Entreguei a direção musical a Macalé, que era um violonista de verdade, mas o que nós criamos juntos em nossos ensaios no Art's Lab só poderia ser criado para um trabalho meu. Gravamos o disco como se fosse um show, em duas ou três sessões. Mace ficou entusiasmado (até hoje se orgulha de tê-lo produzido), mas um telefonema de João Gilberto mudou o rumo da minha vida". (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997).

"Gravado ainda em Londres, esse disco teve a capa criada por Álvaro Guimarães, ator e diretor de teatro, baiano, muito meu amigo e que nunca tinha feito capa de discos. Alvinho Guimarães é o responsável por eu estar fazendo música até hoje. Ele queria que eu fizesse músicas para uma peça de teatro que estava dirigindo, apesar de que jamais me vira tocar nem cantar. Apenas conhecia minhas opiniões sobre música popular e achava que eu deveria compor. Terminei fazendo as músicas para a peça, depois musiquei também um documentário que ele fez, em 1963, sobre meninos de rua, e fui em frente. Influenciou também o começo da carreira de Bethânia, que queria ser atriz e ele a colocou em peça cantando, ela impressionou todo mundo e começou a cantar. Eu estava ainda em Londres, quando o Álvaro apresentou à Phonogram esse projeto de capa, ousado, com esse vermelho e preto e essas letras grandes, esse "Cai" (curiosamente com "i" e não com "e", Cae, como me chamam os amigos) para baixo, com as setas para cima. Ficou engraçada e eu a acho muito bonita. Faltam nesse disco, que é um de meus favoritos, informações sobre os músicos. A banda que tocou comigo definia muito a força do disco: Jards Macalé (violão e arranjos), Áureo de Souza, Tutty Moreno (todos dois bateristas) e Moacyr Albuquerque (contrabaixista) irmão do arranjador Perinho Albuquerque, e já falecido. Foi gravado em pouco tempo, produzido pelo Morris Hills. Ensaiamos, entramos em estúdio e fomos gravando, com muita espontaneidade. Ensaiamos tanto para as gravações, que quando o disco ficou pronto, o show estava pronto também. Tocamos em Londres, fizemos um show muito bonito no Queen Elizabeth Hall, e depois viemos para o Brasil. Os produtores ficaram muito chateados, fizeram tudo para que eu não deixasse Londres. Mas havia a chance de voltar, não pensei duas vezes. Foi o tempo de fazer as malas e voltar. Então, Transa nem foi lançado lá. As matrizes foram enviadas para a gravadora aqui, que o lançou. Esse disco marca a minha volta ao Brasil. Cheguei aqui num dia e no outro já estava fazendo o show Transa, no Teatro João Caetano, que foi um grande sucesso. Fizemos durante uma semana no Rio, depois fizemos em São Paulo (no Tuca), Recife e Salvador. Chegamos aqui com tudo ensaiado. O show chamou a atenção pela qualidade dos arranjos e do som, realmente superior ao que se fazia em apresentações por aqui, naquela época. Era um show muito provocativo também. Eu cantava Quero que vá tudo pro inferno, do Roberto Carlos, num andamento mais lento, e repetia o refrão inúmeras vezes. Eu ficava seis, sete, oito minutos repetindo: "que tudo mais vá pro inferno...". As pessoas iam ficando irritadas e em muitos lugares algumas se levantavam e iam embora. Em São Paulo, muita gente saía. Também cantava O que é que a baiana tem?, fazendo uns gestos minimalizados da Carmem Miranda. Para mim, Transa é um grande disco. Algumas pessoas, depois de ouvi-lo, me disseram o seguinte: "Caetano, você ficou mais brasileiro porque estava fora, com saudade. Se tivesse continuado aqui, teria ficado mais rock'n'roll." Pode ser, não sei. Talvez se eu tivesse ficado aqui, não tivesse sido preso, nem deixado o país, a tendência seria mais o experimentalismo. Com certeza teria feito um disco mais próximo do que vieram a fazer Walter Franco (já naquela época) e Arnaldo Antunes (até hoje): letras com poucas palavras, tendência que abraço no disco Araçá azul." (Caetano Veloso. Livro "Tantas Canções" do box "Todo Caetano". Universal Music, 2002).

"Chamei os amigos para gravar em Londres. Os arranjos são de Jards Macalé, Tutty Moreno, Moacir Albuquerque e Áureo de Sousa. Não saíram na ficha técnica e eu tive a maior briga com meu amigo que fez a capa. Como é que bota essa bobagem de dobra e desdobra, parece que vai fazer um abajur com a capa, e não bota a ficha técnica? Era importantíssimo. Era um trabalho orgânico, espontâneo, e meu primeiro disco de grupo, gravado quase como um show ao vivo. Foi Transa que me deu coragem de fazer os trabalhos com A Outra Banda da Terra. Tem a Nine out of Ten, a minha melhor música em inglês. É histórica. É a primeira vez que uma música brasileira toca alguns compassos de reggae, uma vinheta no começo e no fim. Muito antes de John Lennon, de Mick Jagger e até de Paul McCartney. Eu e o Péricles Cavalcanti descobrimos o reggae em Portobelo Road e me encantou logo. Bob Marley & The Wailers foram a melhor coisa dos anos 70. Gosto do disco todo. Como gravação, a melhor é Triste Bahia. Tem o Mora na Filosofia, que é um grande samba, uma grande letra e o Monsueto é um gênio. Me orgulho imensamente deste som que a gente tirou em grupo." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1991).

"Transa é um dos melhores discos que eu fiz. Sempre achei. Embora seja um disco com canções escritas em inglês, que não é a minha língua, mas eu usei tantas citações de músicas brasileiras e gravei "Mora na filosofia". Eu gosto muito dos arranjos e do estilo que a gente chegou ali. É muito original, diferente. Não tem nada a ver com rock psicodélico dos Mutantes, do primeiro período do tropicalismo, mas não é MPB no sentido chato da palavra. E também não é rock inglês da época, não se reduz a nada, é algo que existe em si mesmo e tem sua originalidade, talvez não tantas qualidades assim, mas ele existe. Eu gosto e gostei muito de reunir Macalé, Tuti Moreno, Áureo de Sousa e Moacir Albuquerque porque a gente tocando junto dava uma sensação de banda, o negócio acontecia musicalmente. Eu acho que Transa é um disco que encontra eco nas pessoas que são jovens hoje." (Caetano Veloso em entrevista para seus 70 anos, 2012).

"Agora, as coisas vão sair mais de dentro de mim. Quase tudo será novo, vou fazê-lo num outro mundo, improvisando, inventando. O primeiro disco foi legal, mas eu achei muito profissional, meio frio, exceto por Asa Branca e Maria Bethânia. O que posso dizer de novidade é isso. O que virá depois, ainda não sei". (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 1971).

"Há 49 anos, em janeiro de 1972 lançávamos Transa. Chamei os amigos para gravar em Londres. Os arranjos são meus e de Jards Macalé, Tutti Moreno, Moacyr Albuquerque e Áureo de Sousa. Gravamos o disco em quatro sessões. Foi quase ao vivo no estúdio. E as citações de canções brasileiras mais antigas me consolavam da falta que sentia do Brasil. Eu gostei dele quando o fiz. Mas o achei mais satisfatório com o passar do tempo. Adorava Triste Bahia e Mora na Filosofia, mas acho que é porque eram as duas cantadas só em português." (Caetano Veloso nas redes sociais, 2021).

"Transa é um disco cheio de História e estórias. Broken English, exílio, aceitação de Londres, saudade do Brasil. Não sei se acho Transa merecedor da posição em que a Rolling Stone brasileira o colocou. Só tenho certeza de que Jards Macalé, Tutty Moreno, Áureo de Souza e a memória de Moacyr Albuquerque merecem a honraria – e mais amor de nossa parte. Ralph Mace foi um carinhoso produtor, mas o fato de eu ter voltado pro Brasil logo depois de concluí-lo fez com que ele não tivesse mais interesse em forçar a gravadora a lançá-lo na Inglaterra e no resto do mundo. Virou um disco brasileiro, amado por muitos brasileiros, mas quase inexistente para o mundo anglófono. Faz anos que não ouço esse disco. Prometi aos músicos do Meu Coco que estudaria faixa a faixa, mas acho que só vou fazer isso agora, depois de responder a suas perguntas. Tomara que eu consiga. Meu inglês problemático deve ter me afastado dele. Acho que os acenos em português, citando canções divinas de Edu Lobo, Vinícius de Moraes, Baden Powell, Onildo Almeida e do folclore brasileiro são a força do disco aos meus ouvidos, além do jeito de os músicos tocarem. Mesmo assim, acho que “It’s A Long Way” é a melhor em minha lembrança." (Caetano Veloso para o Portal MaisPB, 2023). 

"Eu não conseguia gostar nada de estar fora do Brasil. Depois de fazer o primeiro disco lá (o que tem meu nome como título e "London, London" como canção marcante), decidi chamar meus amigos e grandes músicos Jards Macalé, Tutty Moreno, Moacyr Albuquerque e Áureo de Souza. Tutty e Áureo já estavam em Londres. Macau e Moacyr, no Brasil. Ambos foram. Começamos a ensaiar numa igreja que ficava perto de minha casa no norte da cidade. Depois fomos para um espaço de ensaios num bairro mais animado. As canções me saíam com facilidade. Eu estava me sentindo quase fluente em inglês. E aprendi a gostar fisicamente de coisas para as quais nem dava atenção antes: os gramados dos parques, os bancos de madeira que havia em todos eles, a graça das ruas curvas, chamadas "crescents", os táxis confortáveis. Fiz as canções num inglês troncho, mas que eu via como metalinguístico. O produtor Ralph Mace (que tinha recusado "Lost in the Paradise" e "Empty Boat") achou as canções novas que fiz (ouvindo conselhos dele e de meu amigo americano David Linger, para corrigir defeitos gramaticais ou outros) boas. Ele já tinha aprovado "London, London", "Maria Bethânia" e outras que gravei no primeiro disco inglês. Mas achou as novas mais fluidas. Fiz chamados emocionados ao Brasil, roubando trechos de canções de Edu Lobo, de Vinícius, de Baden, de Zé do Norte, do folclore nacional... E, mal completei o LP, soube, através da sobrenaturalidade de João Gilberto, que poderia voltar à minha terra. Vim logo. E deixei pra trás quaisquer planos que Mace tivesse para o disco ou para mim. O disco nunca foi lançado na Inglaterra (ou, que eu saiba, em nenhum outro lugar que não o Brasil) mas os brasileiros parecem adorá-lo. Eu gosto. Foi tudo gravado ostensivamente sem clic. Macalé construiu com a banda os arranjos que eu sugeria. Eu me sentia bem. Mas acho gozadas minha linguagem e minha pronúncia. Quando gravei "A Foreign Sound", décadas depois, o site Pitchfork elogiou tudo (menos a gravação da música de Dylan, da qual tirei o título do álbum). Mas Transa nunca teve sequer sua existência registrada no mundo anglófono. Não que eu saiba. Tudo isso me interessa e me intriga. Acho óbvio que aglófonos não liguem pra esse disco, embora alguns liguem um pouco pra mim. E me comove que brasileiros o cultuem. Algo me é sugerido aí. O que será?" (Caetano Veloso para a Folha de S.Paulo, 2023).

Caetano Veloso em 1972.

Com Jards Macalé e Moacyr Albuquerque em Londres. Foto: Pedro Paulo Koellreutter. 

Jards Macalé, Caetano Veloso, Tutty Moreno e Aureo de Souza em 2012. Foto: Leonardo Aversa.

Show do disco Transa (Jornal do Brasil)






Show Transa em Recife - Mais fotos aqui

O show contou com Perinho Albuquerque, Tuzé de Abreu, Perna Fróes, Moacyr Albuquerque, Tutty Moreno e Jards Macalé. Foto: Cafi.

Transa: o disco-objeto.

Entrevista: Caetano fala sobre "Transa" (Jornal Zero Hora, 2012)

Zero Hora — Você já disse que considera Transa um de seus melhores discos. Como foi sua relação com o álbum no correr dos anos?

Caetano Veloso — Eu gostei dele quando o fiz. Mas o achei mais satisfatório com o passar do tempo. Mas o fato é que não ouço meus discos quase nunca. Então, não sei direito.

ZH — Você tem carinho especial por alguma canção do disco?

Caetano — Adorava Triste Bahia Mora na Filosofia, mas acho que é porque eram as duas cantadas só em português. Outro dia, vendo o filme Coração Vagabundo, de Fernando Gronstein Andrade, ouvi um som genial e moderno. Fiquei me perguntando: que banda incrível é essa? Depois de um tempo, reconheci: era Neolithic Man.

ZH — A opção de misturar inglês e português nos discos gravados em Londres pode ser interpretada como a necessidade de um exilado ser cidadão de dois mundos?

Caetano — Pode. Mas não necessariamente. Eu me sentia um cidadão do Brasil. Não me imaginava vivendo e trabalhando na Inglaterra.

ZH — Em relação a seu disco anterior gravado em Londres, Transa representa uma evolução em experimentação. Como foi o processo de elaboração de Transa num intervalo curto entre um disco e outro?

Caetano — Em primeiro lugar, nesse segundo ano na Inglaterra, já começava a gostar de lá, e a depressão pelo exílio ia me deixando. Depois, chamei Macalé, Tutty, Áureo e Moacyr. Com essa banda, dava para testar ideias, experimentar tipos livres de arranjos. No primeiro disco, eu tinha ficado passivo, seguindo as orientações dos produtores (Lou Reizner e Ralph Mace), mesmo que essas orientações fossem no sentido de ser mais eu mesmo. Por exemplo: só então gravei tocando eu mesmo o violão. Mas, com Transa, começamos desde os ensaios no Arts Lab. Gravamos o disco em quatro sessões. Foi quase ao vivo no estúdio. E as citações de canções brasileiras mais antigas me consolavam da falta que sentia do Brasil.

ZH — Apesar de você assinar sozinho a maioria das faixas, percebe-se que os músicos da banda contribuem com solos e texturas rítmicas e melódicas. Como se deu o processo de composição?

Caetano — As composições eram minhas. Eu as levava de casa para o estúdio de ensaio com as ideias de intercalação de trechos de outras canções já desenvolvidas. Também as ideias de arranjo eram basicamente minhas. Mas é claro que a qualidade e a inspiração dos músicos que tocavam comigo definiram o som a que chegamos. E Macalé tinha a responsabilidade de orientar o jeito da banda pôr em prática essas minhas ideias.

ZH — Qual foi a importância de Jards Macalé em Transa?

Caetano — Macalé tinha intimidade comigo havia anos. Assim, eu me sentia desinibido para me comunicar. Além disso, ele tem um estilo muito pessoal de tocar violão, e eu já o convidei (e tive ideias para arranjos) pensando nisso. Pedi que ele dirigisse nossa banda, e tudo fluiu com muita naturalidade.

ZH — Em Triste Bahia, você retoma um poema de Gregório de Mattos, aproximando percepções sobre a terra natal — críticas, mas também líricas e saudosas —, separadas por séculos e unidas pelo trauma comum do exílio forçado. Como foi a composição desta canção?

Caetano — Esse poema me impressionava muito. Gozado é que, na edição das obras dele que eu tinha, um verso estava transcrito errado. Em vez de “rica te vi eu já”, tinha “Rica te vejo eu já”, repetindo o verbo no presente. Gravei com esse erro (que, sem saber que era erro de impressão, me pareceu até rico poeticamente). Me lembro de ter pensado em fazer uma base à moda dos cantos de capoeira – e de sugerir que Tutty tocasse o berimbau em três afinações diferentes, superpondo-os para formar um acorde na abertura. O jeito de tocar ia sendo burilado nos ensaios. A ordem das citações era fixa. Fiquei muito feliz com o resultado quando a peça foi ficando pronta. A aceleração do andamento aconteceu espontaneamente, e a gente a adotou e frisou. Tudo ficou bonito.

ZH — Nine Out of Ten faz referência aos primeiros acordes do reggae ouvidos fora da Jamaica, em Portobello Road, que você incorporou ao disco de forma pioneira. Como foi esse contato com o reggae?

Caetano — Eu me apaixonei pelo reggae, junto com Péricles Cavalcanti, que gostava de passear comigo por Portobello. Nem sabíamos ainda o nome do novo ritmo. Quando aprendemos, passamos a repeti-lo em conversas com muita excitação. Quando compus a música (a que, para mim, tem a melhor das letras em inglês que escrevi), pedi a Moacyr Albuquerque, o baixista, que tentasse reproduzir a linha de baixo dos reggaes que ouvíamos. E ele foi perfeito nessa pioneira entrada do reggae na música brasileira. Ouvir a música dos jamaicanos naquela rua me fazia gostar de viver, ajudava a superar a saudade do Brasil. Compor e cantar era conseguir resistir.

ZH — It’s a Long Way cita os Beatles. Que importância eles tiveram em sua trajetória?

Caetano — Os Beatles tinham sido essenciais no nascedouro do tropicalismo. O Gil me chamou a atenção para a inventividade do grupo em 1966. Um ano antes, Marília Medalha tinha observado que Eleanor Rigby era uma canção linda. Mas o grupo de Liverpool ainda não era aceito nos meios sérios da MPB. Eu os adorava. Quando chegamos a Londres, Abbey Road estava para ser lançado, e o grupo se desfazia. Os Rolling Stones estavam na crista da onda, com um rock mais rock e sem riscos de desaparecer. Eu adorava Beggar’s Banquet. E, claro, Satisfaction tinha sido hit no Brasil antes de sairmos. Mas só vim a adorá-los quando os vi no palco. Nossos preferidos, antes de irmos para Londres, eram os Beatles, Jimi Hendrix, Janis Joplin e The Mothers of Invention. Também James Brown e figuras do blues, como John Lee Hooker. Mas já conhecíamos Pink Floyd e The Who. Lá, conhecemos Led Zeppelin, T-Rex (que eu adorava), Faces, Bowie (que eu não gostei quando vi). Eu adorava uma banda chamada Incredible String Band. Fui reouvir outro dia e fiquei encantado.

ZH — No começo dos anos 1970, Londres vivia a ressaca da efervescência hippie, da psicodelia, do fim dos Beatles. O que o levou a escolher essa cidade e qual foram suas impressões ao chegar lá?

Caetano — Saímos daqui enxotados. A Polícia Federal me pôs no assento do avião. Fomos para Lisboa, onde encontramos nosso empresário, Guilherme Araújo, que tinha ficado lá desde que, tendo ido para preparar a apresentação de Gil no festival Midem, soube de nossa prisão e distribuiu um panfleto de protesto contra a ação das forças de repressão brasileiras. Ele ficou uns 10 dias conosco em Portugal, mas sabíamos que lá não íamos ficar: o país ainda estava sob a ditadura salazarista, embora Salazar já tivesse morrido. De lá, fomos para Paris, onde ficamos um tempo. Guilherme achava que devíamos ir para Londres, por ser mais pacífica e por ter uma cena musical rica. Paris, que não tinha um pop moderno forte, estava na ressaca do maio de 68: a polícia pedia seus documentos a cada esquina. Londres era a escolha mais sensata. Mas eu apenas me resignei. Gostei do clima sem medo e da grama verde. Mas estava muito triste por dentro. Não tinha projetos nem desejos. Aí Ralph Mace apareceu propondo que gravássemos discos.

ZH — Como foi a reação do público inglês nas apresentações de Transa em Londres?

Caetano — Fizemos um show do Transa no Queen Elisabeth Hall impecável. Os amigos ingleses que fizemos ficaram bem impressionados, e os curiosos, que foram para ver o que era, ficaram surpresos. Havia nossos amigos brasileiros e alguns outros que pintaram para ver (não havia esse grande número de brasileiros que há hoje lá). Ralph Mace ficou muito animado, achando que uma carreira minha lá se iniciava. Mas, logo que eu soube que podia voltar para o Brasil, nem pensei duas vezes. Não me arrependo.

ZH — Existe a possibilidade de um show com a íntegra de Transa?

Caetano — Não creio. Estou ensaiando canções novas para gravar novo álbum. Quando fizer um show, canções de Transa vão estar presentes.

ZH — O clima de Transa sugere um ambiente de extrema criatividade e experimentação. Vocês tiveram contato com drogas lisérgicas que, naquela época, eram comum no universo da música pop?

Caetano — Tomei ayahuasca em São Paulo, em 1968. Tive uma viagem de visões bonitas, mas, depois de umas horas, fiquei angustiado. Pensei que estava louco para sempre. Nunca mais tomei nada desse tipo. Fumei maconha em 1967, mas tampouco fiquei feliz com a experiência. Era como se estivesse bem de saúde e tivesse, de repente, ficado com uma febre que fazia o coração bater e a cabeça ficar à beira do delírio. A sensação de que não media a duração do tempo era opressiva. Desisti. Bebia, mas nunca fiz disso um hábito. Parei de beber porque a ressaca é cada vez pior, e simplesmente não vale a pena. Sou perfeitamente careta no que diz respeito a drogas.

ZH — É verdade que o produtor Ralph Mace quis promover um encontro de você com David Bowie?

Caetano — Mace promoveu um encontro entre mim e Bowie. Fomos junto à Round House vê-lo no palco. Mas não gostei. No final, Mace me apresentou a ele. Apenas nos cumprimentamos cordialmente. Mace achava que eu poderia colaborar com Bowie em composições e ideias. Queria que eu fosse passar um tempo na casa dele, disse que eu adoraria Angela, a mulher de Bowie então. Dizem que é pra ela que Jagger fez Angie. Depois que ela e Bowie se separaram, Angela foi a um programa de TV nos EUA e contou que encontrou Jagger e Bowie na cama. Não pensei “escapei de uma boa”. Achei graça. Mas nunca fui fã do estilo de Bowie. Gosto dele como figura histórica, acho que é bom ator (Jagger, no cinema, é péssimo), e as gravações do período em que Brian Eno tocava com ele são bonitas. Mas sempre há algo cafona, falsamente chique naquele lance dele. Mas respeito. Ele produziu Walk on the Wild Side para Lou Reed, não foi?


Gravações do disco "Transa" (1971).

Lista de Músicas

Lado 1

1 - You don't know me
(Caetano Veloso)

2 - Nine out of ten
(Caetano Veloso)

3 - Triste Bahia
(Caetano Veloso, Gregório de Mattos)

Lado 2

4 - It's a long way
(Caetano Veloso)

5 - Mora na filosofia
(Monsueto Menezes, Arnaldo Passos)

6 - Neolithic man
(Caetano Veloso)

7 - Nostalgia (That’s what rock’n’roll is all about)
(Caetano Veloso)

Vamos às Letras.

1 - You don't know me (Caetano Veloso)

You don't know me
Bet you'll never get to know me
You don't know me at all

Feel so lonely
The world is spinning round slowly
There's nothing you can show me
From behind the wall

Nasci lá na Bahia 
De mucama com feitor
O meu pai dormia em cama
Minha mãe no pisador 

Laia, ladaia, sabadana Ave-Maria
Laia, ladaia, sabadana Ave-Maria

You don't know me
Bet you'll never get to know me
You don't know me at all

Feel so lonely
The world is spinning round slowly
There's nothing you can show me
From behind the wall

Eu agradeço ao povo brasileiro
Norte, Centro, Sul, inteiro
Onde reinou o baião

Comentário do autor: ""You don't know me" é uma canção muito bonita, muito bacana. Meio balada, mas ela tem uma pegada que não é enjoada." (Caetano Veloso em entrevista para um especial sobre seus 70 anos, 2012). 

Foto: Carlos Mesquita.

2 - Nine out of ten (Caetano Veloso)

I walk down Portobello road to the sound of reggae
I'm alive
The age of gold, yes the age of old
The age of gold
The age of music is past
I hear them talk as I walk yes I hear them talk
I hear they say
"Expect the final blast"
I walk down Portobello road to the sound of reggae
I'm alive

I'm alive, vivo muito vivo feel the sound of music
Banging in my belly
Know that one day I must die
I'm alive
And I know that one day I must die
I'm alive
Yes I know that one day I must die

I'm alive vivo muito vivo
In the Electric Cinema or on the telly
Nine out of ten movie stars make me cry
I'm alive
And nine out of ten movie stars make me cry
I'm alive

Comentário do autor: ""Nine out of ten" tem uma coisa importantíssima que é a primeira vez que se fala em reggae numa música brasileira, primeira vez que um brasileiro se refere ao reggae. Ainda era novo o reggae, ninguém conhecia. E a gente fez uma citação do ritmo que a gente aprendeu ouvindo em Portoblello, que a gente andava e tinha aqueles grupos de jamaicanos tocando discos de reggae. Péricles Cavalcanti e eu adorávamos aquele ritmo que a gente ouvia naquela rua e eu fiz a música pensando nisso. E Nine out of ten era por causa de um anúncio de sabonete: "nine out of ten movies stars use Lux" e eu botei "nine out of ten movies stars make me cry"". (Caetano Veloso em entrevista para um especial sobre seus 70 anos, 2012). 

Foto Caetano: Demócrito.

3 - Triste Bahia (Caetano Veloso, Gregório de Mattos)

Triste Bahia! Ó quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado,
Rica te vejo eu já, tu a mim abundante.
Triste Bahia! Ó quão dessemelhante
A ti tocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim vem me trocando, e tem trocado,
Tanto negócio e tanto negociante.

Triste, ó quão dessemelhante, triste...
Pastinha já foi à África,
Pastinha já foi à África
Pra mostrar capoeira do Brasil.
Eu já vivo tão cansado
De viver aqui na Terra.

Minha mãe, eu vou pra Lua
Eu mais a minha mulher.
Vamo fazer um ranchinho,
Todo feito de sapê,
Minha mãe eu vou pra Lua
E seja o que Deus quiser.

Triste, ó quão dessemelhante,
Triiiiii... Ê, galo cantô
Ê galo cantou, camará
Ê, cocorocô, ô cocorocô, camará
Ê, vamo-nos embora,
Ê vamo-nos embora camará
Ê, pelo mundo afora,
Ê pelo mundo afora camará
Ê, triste Bahia,
Ê triste Bahia, camará
Bandeira branca enfiada em pau forte...

Bandeira branca
Bandeira branca enfiada em pau forte

Afoxé leí, leí, leô...

Bandeira branca,
Bandeira branca enfiada em pau forte...

O vapor da cachoeira não navega mais no mar...

Triste recôncavo, ó quão dessemelhante

Triste...

Maria pé no mato é hora,
Maria pé no mato é hora,
Arriba a saia e vamo-nos embora
Arriba a saia e vamo-nos embora
Maria pé no mato é hora,
Arriba a saia e vamo-nos embora
Arriba a saia e vamo-nos embora
Maria pé no mato é hora,
Arriba a saia e vamo-nos embora
Arriba a saia e vamo-nos embora
Arriba a saia e vamo-nos embora

Pé dentro, pé fora, quem tiver pé pequeno vai embora...

Oh, virgem mãe puríssima...

Bandeira branca enfiada em pau forte,
Bandeira branca enfiada em pau forte,
Trago no peito a estrela do norte,
Bandeira branca enfiada em pau forte...

Trago no peito a estrela do norte... 
Bandeira branca enfiada em pau forte...

Bandeira...

Comentário do autor: "Triste Bahia talvez seja a faixa mais bonita do disco em termos de energia da banda soar. Ela tem um 'crescendo' de andamento por causa do entusiasmo, mas é um correr bonito. Quando é bonito quando uma banda corre, é porque tem vida. Quis fazer com aqueles berimbaus, com a banda fazendo uma levada de berimbau. Começa com Tuti Moreno fazendo três berimbaus afinados em terças. E depois a gente entra com a banda. É meio misturado, música de capoeira com a poesia barroca do Gregório de Mattos. Fica bonito, é uma faixa empolgante. E não é em inglês, é tudo em português." (Caetano Veloso em entrevista para um especial sobre seus 70 anos, 2012). 

Foto: Universal Music.

4 - It's a long way (Caetano Veloso)

Woke up this morning
Singing an old, old Beatles song
We're not that strong, my Lord
You know we ain't that strong

I hear my voice among others
In the break of day
Hey, brothers
Say, brothers

It's a long, long, long, long way
It's a long way
It's a long, it's a long, long, long
It's a long way

Os olhos da cobra verde
Hoje foi que arreparei
Se arreparasse a mais tempo
Não amava quem amei

It's a long, long, long, long way
It's a long way
It's a long, it's a long, long, long
It's a long way

Arrenego de quem diz
Que o nosso amor se acabou
Ele agora está mais firme
Do que quando começou

It's a long road
It's a long, it's a long road
It's a long and winding road

It's a long and winding road
It's a long and winding road
It's a long and winding, long and winding road

A água com areia brinca na beira do mar
A água passa e a areia fica no lugar

It's a hard, it's a hard
It's a hard, hard long way

E se não tivesse o amor
E se não tivesse essa dor
E se não tivesse o sofrer
E se não tivesse o chorar (ah, o amor)
E se não tivesse o amor

No Abaeté tem uma lagoa escura
Arrodeada de areia branca

Comentário do autor: ""It's a long way" era a que mais marcava na época em que o disco saiu, fora "Mora na Filosofia" que foi sucesso no Brasil, na rádio. Mas para quem ouvia o disco e ia pro show, "It's a long way" era a que mais marcava, é uma canção muito bonita." (Caetano Veloso em entrevista para um especial sobre seus 70 anos, 2012). 

Caetano e Macalé.

5 - Mora na filosofia (Monsueto Menezes, Arnaldo Passos)

Eu vou lhe dar a decisão
Botei na balança e você não pesou
Botei na peneira e você não passou
Mora na filosofia pra quê rimar amor e dor
Mora na filosofia pra quê rimar amor e dor

Se seu corpo ficasse marcado
Por lábios ou mãos carinhosas
Eu saberia ora, vai mulher
A quantos você pertencia
Não vou me preocupar em ver
Seu caso não é de ver pra crer
Tá na cara!

Gal, Caetano e Sandra Gadelha.

6 - Neolithic man (Caetano Veloso)

I’m the silence that’s suddenly heard
After the passing of a car
I’m the silence that’s suddenly heard
After the passing of a car
I’m the silence that’s suddenly heard
After the passing of a car
Spaces grow wide about me
Spaces grow wide about me
If you look from your window at the morning star
You won’t see me
You’ll only see
That you can’t see very far
God spoke to me
You’re my son
And my eyes swept the horizon
Away

Que tem vovó pelanca só
Que tem vovó pelanca

You won’t see me
Spaces grow wide about me

Comentário do autor: "É a faixa [do disco] que eu mais gosto hoje em dia." (Caetano Veloso em entrevista para um especial sobre seus 70 anos, 2012). 

Áureo de Souza, Maurice Hughes, Jards Macalé, Caetano e Moacyr Albuquerque, 1971. Foto: Antonio Guerreiro.

7 - Nostalgia (That’s what rock’n’roll is all about) (Caetano Veloso)

You sing about waking up in the morning
But you're never up before noon
You look completely different from those straights
Who walked around on the moon
The clothes you wear
Would suit an old times baloon
You're allways nowhere
But you'll realize pretty soon
That's all that you care
Isn't worth a twelve bar tune

You won't believe you're just one more flower
Among so many flowers that sprout
You just feel faintly pround when you hear they shout
Very loud: "you're not allowed in here, get out"
That's what rock'n'roll is all about
That's what rock'n'roll is all about
I mean, that's what rock'n'roll was all about

Comentário do autor: ""Nostalgia" é uma piada com esse negócio de que muitos blues começam com "woke up this morning" e eu vivia nesse ambiente em que todo mundo acordava de tarde. Uma coisa interessante sobre "Nostalgia" é que quem toca gaita é Angela Ro ro." (Caetano Veloso em entrevista para um especial sobre seus 70 anos, 2012).

Foto: Alcyr Cavalcanti.

Foto: Alcyr Cavalcanti.

Foto: Carlos Mesquita.

Foto: Carlos Mesquita.

Foto: Alcyr Cavalcanti.

Foto: Demócrito.

Foto: Demócrito.


Ficha Técnica

Gravação: Chappells Studios, London
Direção musical e guitarra: Jards Macalé
Guitarra baixo: Áureo Souza e Tuti Moreno
Participação especial: Gal Costa
Gaita: Angela Ro Ro (em "Nostalgia")
Produzido por: Ralph Mace
Criação do Discobjeto: Álvaro Guimarães (Verbo)
Planejamento Gráfico: Aldo Luiz
Fotos: Deca / Ricardo Lisboa / Juca Gonçalves


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