1973 - Araçá Azul - Caetano Veloso


Araçá Azul é o quinto disco solo da carreira de Caetano Veloso e o primeiro feito depois do exílio. Em Londres, Caetano sentiu-se muito passivo em relação à sua carreira. Isto aliado com a própria tristeza por estar obrigado a viver em outro país, acabou levando-o a sentir vontade de parar com a música. Araçá Azul representou a liberdade do experimentalismo anticomercial necessária para seguir: "se eu não fizesse isso, não teria continuado". O início deu-se a partir do filme São Bernardo (1972), onde o diretor Leon Hirszman chamou Caetano para fazer a trilha sonora. Mas havia um problema: Graciliano Ramos (autor do livro homônimo que inspirava o filme) não gostava de música. Por isso, Caetano produziu a 'não-música' como trilha a partir dos grunhidos típicos de Asa Branca e Maria Bethânia. Como produtor do disco Rosa dos Ventos (1971) de Bethânia, Caetano ficou muito tempo em estúdio e isto aguçou mais ainda sua vontade de experimentação. Tudo isso culminou em Araçá Azul, produzido em 1972 e lançado em janeiro de 1973. Nele, Caetano quis "ver o que conseguiria fazer dentro do estúdio": violão, superposição de vozes, piano, grunhidos, assovios, percussão "sobre a pele e os ossos", além de captação de barulhos e silêncios das ruas de São Paulo. Não era para vender e não vendeu mesmo. E mais: foi recorde de devolução na gravadora. Viola, meu bem traz o samba do recôncavo no ir e vir da faca estalando no prato de Dona Edith. Quero essa mulher assim mesmo, de Monsueto (mesmo autor de Mora na filosofia), é samba em ritmo de rock. Há referências ao mestre João Gilberto e um clamor à alegria de Milton Nascimento. Sugar cane fields forever é uma colagem-viagem de trem de Salvador até Santo Amaro da Purificação e seu nome brinca com a canção dos Beatles. Julia/Moreno anuncia a chegada do primeiro filho ou filha. Araçá Blue nasce de um sonho-segredo. Gilberto Misterioso se relaciona com Sousândrade e com os irmãos Campos. Em Épico, Caetano diz a Rogério Duprat: "faça o que você quiser". O interior do LP já dava o tom: "um disco para entendidos". A banda do show feito a partir do disco Araçá Azul reuniu os músicos Perinho Albuquerque, Tuzé de Abreu, Perna Fróes, Moacyr Albuquerque e Tutty Moreno. Em outras aparesentações, também tocaram Eneas Costa e Ubirajara Silva.

Caetano: "Araçá Azul foi gravado em São Paulo, em apenas uma semana, sem que nem uma composição estivesse pronta (ou mesmo esboçada) antes de se iniciarem as sessões. Hospedei-me num hotel colado ao estúdio Eldorado - o único do Brasil que, então, tinha oito canais - e comecei a improvisar peças muito livremente concebidas. André Midani, o presidente da PolyGram Brasil, sempre inacreditavelmente inteligente (e chique) para um homem na sua função, concordara em deixar-me sozinho com o técnico e seu assistente, sem nem sequer receber visitas de quem quer que fosse da gravadora. [...] A reação do público foi veemente: o disco bateu recordes de devolução. Transa tinha tido boa acolhida (sobretudo por causa da regravação do velho samba de Monsueto Menezes "Mora na filosofia") e o fato de eu estar de volta ao Brasil ainda era notícia. Além disso, eu fizera um show ao lado de Chico Buarque no Teatro Castro Alves, em Salvador, com imenso sucesso, e esse show (uma comoção resultante do esforço amadorístico de um conhecido comum a nós dois, ampliada pela suposta rivalidade) foi transformado num disco ao vivo que vendeu muito. Tudo isso levava as pessoas a procurarem meu disco novo nas lojas. Ao chegar em casa, a maioria nem sequer aguentava ouvir a primeira faixa até o fim: voltava correndo ao vendedor para tentar devolver o disco. Eu me orgulhava desse tipo de fracasso. Mas o fato é que não estava satisfeito com o disco em si. [...] Eu tinha feito o Araçá Azul como um movimento brusco de autolibertação dentro da profissão: precisava me desembaraçar  no estúdio, testar meus limites e forçar meus horizontes. Necessariamente sairia modificado dali - e necessariamente faria coisas diferentes em seguida." (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997).

“Quando me contaram que Araçá Azul estava batendo recordes de devolução (as pessoas que compraram o disco durante a primeira quinzena de seu lançamento voltam indignadas - uma percentagem delas - ao balcão do vendedor) eu disse: claro - aquele disco não é pra ser comprado, nem mesmo pra ser vendido, ele foi apenas muito bom de fazer. Não sei. Acho que alguém deveria ter estrilado. Não gostei de quase nada do que foi dito publicamente sobre ele. Afinal, como é que, exatamente numa época em que se estão gravando discos tecnicamente audíveis neste País, seu Caetano Veloso me sai com um disco tão mal cuidado? Ou: que falta de clareza, que falta de rigor, onde foi parar o incrível senso de oportunidade que a gente cria advinhar por detrás da zona que Caetano aprontou com Gil e Gal e Guilherme antes de sumir pra Londres, Paris e Bahia? Ou ainda: se esse disco dá a impressão de que Caetano resolveu realizar uma grande obra, se ele ostenta uma pretensão intelectual tão grande, por que não denunciamos logo o ridículo de sua falência? Juro que eu não saberia responder. Ou por outra, só assim me seria possível começar a conversar sobre o assunto: claro - eu não poderla imaginar com tanta facilidade problemas cuja solução não já estivesse engatllhada no inconsciente. Mas não: ninguém me deu a oportunidade de dizer que Araçá Azul foi apenas um disco correspondente àquelas de descompromisso, solidão e amadorismo que eu curti na volta de Londres em todas as entrevistas e entrevastas (quem leu tantas páginas de papo Jurado no Bondinho?) que eu dei. Eu não pensei duas vezes antes de gravar esse disco e não tive tempo de fazê-lo enquanto o gravava. O que eu não entendo é como alguém pode supor que Araçá Azul é um disco elaborado, pensado, intelectual, e ainda assim achar bacana ou mesmo aceitável. Quando o disco já estava todo gravado, saiu o LP Ben, do Jorge. Eu não tinha vitrola no hotel e levei pra casa de Tom Zé pra ouvir. Ainda hoje, mesmo levando em conta tanta coisa linda que pintou na música brasileira (e olhe que são muitas), acho esse disco de Jorge Ben a coisa mais linda que há na praça. Eu pensei, naquela hora, ouvindo ele: que coisa mais inútil e sem graça esse disco que que eu acabei de fazer. Mas já estava pronto. Um pouco mais tarde eu chegaria a me congratular comigo mesmo por tê-lo feito: que grande generosidade que é um cara como eu pegar e gravar um disco assim marco zero, nu em pelo, totalmente desamparado mesmo. Eu sou uma criança, pensei. Eu tinha bolado uma solução de última hora pra musicar o filme de Leon Hirshman (São Bernardo) - superposição de vozes cantando, falando, grunhindo - e tinha encontrado nisso tanto encanto que pensei em fazer uma coisa assim num disco. Quando me vi dentro do estúdio, produzindo o LP Drama, pra Maria Betania, me deu uma vontade grande de começar logo a gravar. Pensei: pode ser um barato eu entrar aqui e começar a improvisar uns sons de voz e percussão e mesmo violão, sozinho. Brinquedo mesmo. Me lembrei de uma gravação de Hermínia Silva, de um certo "fado mal falado", de Clementina e de Bola de Nieve. Pensei em chamar Edite, em Santo Amaro, pra cantar uns sambas de roda e depois ver o que fazer com isso. O que há de escrito, as letras, foi tudo sendo feito à medida que o disco ia sendo gravado, nada estava pronto desde antes. Pensei em chamar Rogério Duprat pra fazer alguma coisa sem nem mesmo ainda saber o quê. O mesmo com relação aos Mutantes. Não queria deixar de fazer algumas coisas com Perinho e os meninos que sempre tocam comigo. Chamei Lanny pra gente fazer qualquer coisa no estúdio. Duprat terminou fazendo aquele show de orquestrador espetacular no Épico. Os Mutantes - Arnaldo sempre muito desconfiado - terminaram não participando (exceto indiretamente através de Arnaldo, que me ajudou a lembrar as vozes que eu mesmo fazia na faixa De Palavra em Palavra). Perinho (desequilibradamente no mesmo disco em que o supertarimbado Duprat atuava) experimentou os primeiros efeitos atonais com orquestra. O grupo que toca comigo nos shows levou a desvantagem de ficar conhecendo as músicas no estúdio, na hora de gravar. Lanny entrou no estúdio com pouco tempo pra ficar porque tinha outros compromissos mais tarde e a mulher dele, na hora exata em que a gente tinha terminado o primeiro take razoável (que, na verdade, é brilhante), avisou: "Lanny, vamos, são 10 horas." Os sambas de roda nós deixamos gravados pra preencher um título engraçado (era só o que havia) que pintara na minha cabeça usar no disco (na verdade já era uma velha piada que a gente fazia aqui na Bahia toda vez que, viajando pra Santo Amaro, passava pelos canaviais): Sugar Cane Fields Forever. Ah, tinha pensado em gravar Quero Essa Mulher Assim Mesmo com o pandeirista do Trio Mocotó, só voz e pandeiro, não sei bem como ia ser, era uma coisa de ele improvisar uma peça no pandeiro (daquelas geniais que eu vi ele fazer no show de Vinicius) e eu depois entrar de algum modo apoiado no samba de Monsueto. Ele não aceitou. Quando o Lanny veio pro estúdio, eu falei: a gente podia fazer aquele samba-blues. O Lanny fez tudo naquela faixa. Eu só cantei em cima. Tuti e Moacir executaram tudo genialmente, mas as ideias todas foram de Lanny. Enfim, eu estava ao mesmo tempo produzindo e improvisando, nem sequer sabia bem o que propor às pessoas porque não tinha nada pensado ou planejado. Quando chegou a reta final de mixagem e montagem tudo deu errado porque aquele Estúdio Eldorado tinha algo assim como uma bitola diferente da máquina de corte da Philips, e eu terminei viajando pra Bahia sem mixar nem montar. Entreguei tudo a Marcus Vinicius (com quem foi tão bom trabalhar) com umas recomendações, de modo que mesmo aquele curta-metragem amador sem imagens que ficou sendo o Sugar Cane Fields é, pelo menos em 50 por cento, de autoria dele. Enfim: havia um vago sonho de curtir vozes superpostas, brincar no estúdio, entre o canto e a fala (todo mundo sabe que tudo vem de Gilberto Gil).” (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1973 - A Sucursal do Jornal do Brasil, em Salvador, pediu ao artista uma entrevista que Caetano preferiu transformar em depoimento escrito - sobre o assunto. Junto do depoimento, veio um bilhete, pessoal: “O que vale é esse papel escrito com esta caneta. Os outros estou mandando para você ficar sabendo como foi difícil escrever pouco. Eu não devo falar sobre Araçá Azul - quanto mais falo, mais me atrapalho. Afinal, com tanta coisa linda por aí, por que perder tempo (e espaço!) com Araçá Azul?”).

"Outro dia, quando ia estrear o filme novo do Godard, li nos jornais as pessoas dizendo bobagens para justificar a própria preguiça em relação ao experimentalismo, defendendo um conservadorismo medíocre. Eles todos falam de defesa da emoção contra o cerebralismo. E eu, que choro de emoção vendo 50 vezes Pierrot, le Fou e Je Vous Salue Marie, morro de rir vendo Paris, Texas, que é ridículo. Tenho por isso o maior orgulho de ter feito um disco como Araçá Azul. Não acho que o trabalho tenha saído com limpidez. Fiz o disco sozinho num estúdio e não sabia usar bem o estúdio. Acho maravilhosa uma faixa como De Conversa, uma peça que não tem propriamente música nem letra. Só uma superposição de vozes e grunhidos, com sugestão de música. Apenas no final tem uma citação de Cravo e Canela, que era uma homenagem a Milton Nascimento, uma oração para que ele ficasse alegre, porque Milton era muito triste. Graças a Deus, a oração foi atendida e que Deus o conserve assim. Tem Tu Me Acostumbraste, bacana, cantada em falsete, um clima tão gay... Julia Moreno ganhou um solo de piano de Perna Fróes que é um deslumbramento. Ganhou um grande elogio do Tarik de Souza (crítico do Jornal do Brasil) e fui até ingrato com ele, porque achava que eu não merecia aquele elogio. O problema é que o público comprava e devolvia o Araçá Azul. E outro fato histórico: o maior recorde de devolução de discos da MPB. Nessa época já estavam comprando Caetano e Chico em caminhão. Vai ver que foi por isso mesmo que houve tanta devolução: houve muita procura." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1991).

"Ele é um filme sem imagens e quase sem palavras. Neste sentido, é o contrário de O cinema falado e é um filme amador, mais amador do que O cinema falado." (Caetano Veloso em entrevista para a Revista Bizz, 1990). 

"Ninguém sabia o que dizer de Araçá Azul. Ficou aquela coisa. Exatamente porque ele é muito a-histórico, como postura, ele surge muito a-histórico. Inclusive ele é decepcionante porque nem decepciona, propriamente. Ele é tão a-histórico que pode, como se diz, se tornar histórico, Mas isso é um problema da História. A História que se vire." (Caetano Veloso para o Jornal da Tarde, 1975). 

"Com Araçá Azul eu quis quebrar compromissos, no sentido de pensar exclusivamente em mim. Por isso, não permiti que ninguém entrasse no estúdio, nem Dedé, nem Guilherme Araújo, nem Gal, nem Gil. Resolvi que iria fazer tudo sozinho, tocar violão e superpor vozes e sons. Ao gravar o disco eu não me preocupei com a situação dramática da música popular brasileira nem em saber em que lugar ele se colocaria." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1975).

"Um pouco mais tarde eu chegaria a me congratular comigo mesmo por tê-lo feito: que grande generosidade que é um cara como eu pegar e gravar um disco assim marco zero, totalmente desamparado mesmo. Eu sou uma criança, pensei. Eu tinha bolado uma solução de última hora para musicar o filme de Leon Hirszman [São Bernardo] - superposição de vozes cantando, falando, grunhindo - e tinha encontrado nisso tanto encanto que pensei em fazer uma coisa assim num disco." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1978). 

"O Araçá Azul foi um disco muito marcado para um lado, mas foi um disco feito sem planejamento. Eu fui pra São Paulo, fiquei uma semana e fiz tudo no estúdio, as músicas, tudo. Não fiz nada antes, nada. E ficou parecendo uma coisa tão... elaborada. Eu me lembro da crítica do Tárik na "Veja": "É o disco mais elaborado do Caetano". Eu ri à pampa, puxa, eu fiz tudo em uma semana, não tive nem o menor senso crítico, não tive o menor trabalho... E saiu mal feito, a produção, o som é chapado, mil problemas. Mas é bacana, porque é um negócio assim louco. É bonito, mas não foi elaborado. O Jóia foi um pouco mais, mais do que o Araçá Azul, porque levou muito mais tempo para ser gravado, mais para ficar fazendo devagar até aparecer a hora boa de sair a coisa bonita. Mais do que ficar burilando, endireitando. Eu não tenho muita paciência para ficar fazendo, refazendo, endireitando..." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 1978). 

"No disco que gravei na Inglaterra, houve muita gente que ouviu até palavrões. Foi muito desagradável, pois a Censura acreditou e mutilou o meu trabalho. O que fiz foi apenas improvisar sons nordestinos, cantar e citar trechos de músicas de Luiz Gonzaga e do folclore. Neste meu último disco há faixas inteiras com vozes e outros sons. Espero que ninguém descubra, em meio a isso, algum palavrão. Quem descobrir é porque tem ideia fixa. Sou uma verdadeira dama, acho ridículo dizer palavrões a torto e a direito, e peço que todos, em particular as autoridades, acreditem em mim. Desejo que meu LP fique intacto, porque não tem nada de ofensivo, como não tinha o produzido na Inglaterra. Como prova, tenho comigo a cópia original. Quem quiser ouvir, é só me procurar. Eu não estava com nada pronto, apenas ideias vagas. A experiência que tive, ao fazer a trilha sonora de "São Bernardo" me valeu muito, pois a música ia surgindo de acordo com as imagens. Assim, pude improvisar neste disco, tanto as letras como as melodias. Durante uma semana vivi entre o estúdio e o hotel, trabalhando sempre. Na hora do almoço, do jantar, do descanso. Ou mesmo conversando com alguém. Numa das faixas, introduzi o barulho da multidão e de buzinas, numa espécie de orquestração. Até a faixa com sambas de roda, em que minha amiga Edith, de Santo Amaro da Purificação, participa, foi improvisada. Ela cantou, o seu filho Luciano tocou pandeiro, e eu unifiquei a série de sambas de roda com outras canções que fiz à última hora." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 1972).

"O Araçá azul foi uma retomada dos pensamentos que vinham à minha cabeça antes de ser preso, que de uma certa maneira me aproximava da poesia concreta, do experimentalismo, das letras de poucas palavras. Eu disse: "Vou fazer um disco ostensivamente experimental", e assim o fiz. Inclusive, "experimentando" no estúdio, sem amparo de ninguém, de nada. "Vou sozinho com meu violão, meu corpo e minha voz. Depois, se precisar, chamo músicos para colaborar." Foi o que fiz. Fiquei uma semana no Estúdio Eldorado, em São Paulo. Não compus nenhuma canção antes de entrar em estúdio. Comecei com aquelas faixas que são vocais, mas que são sem letras e sem melodia. Conversas, sons de vozes superpostas, coisas assim. Agora, pouco antes de fazer Noites do Norte, por pouco não retomei a experiência de fazer um disco nos moldes de Araçá azul, mas em outro estágio, com maior conhecimento de sonoridade etc. Não o fiz porque ao me deparar com o texto do Joaquim Nabuco, optei por fazer uma canção sobre o texto dele, que me levou a compor outras canções, a outras que eu quis cantar, e terminou virando um disco de canções – sem dúvida, o que farei com mais freqüência, porque gosto de canções. Quando gravei Araçá azul, eu precisava fazer um disco exatamente assim. Eu estava de volta ao Brasil, livre pela primeira vez desde que tinha sido preso. Foi uma descarga da tensão, diante da prisão, era um sentimento que estava represado. Esse é o primeiro disco meu feito no Brasil em que eu toquei violão. Depois de tocar violão na Inglaterra, nos dois discos que fiz por lá, me senti desinibido e com coragem para tocar em discos meus – trabalho que antes era confiado a outros músicos, convidados para isto. O aval dos produtores de meus discos gravados em Londres me encorajou a tocar, a vencer a timidez, que não era só minha, mas dos brasileiros. A bossa nova tirou o essencial dessa timidez, mas não tirou tudo; a bossa nova se resolveu, mas não resolveu o Brasil. Mas trouxe um padrão de resolução do qual o Brasil ainda precisa se aproximar. Por um lado, os ingleses e os americanos eram ignorantes quanto ao que fazia no violão brasileiro - daí aceitarem o meu violão de "baixa qualidade", mas, por outro lado, também eram desassombrados quanto a isso. Eles achavam que o meu violão, não só não era de baixa qualidade, era muito original, pois tinha a ver com a minha voz. Meu tocar tinha características que outros violonistas não possuíam. No Brasil, você tocando de uma maneira que não soava essencialmente profissional causava insegurança nos produtores; isso numa época em que nos Estados Unidos um dos maiores nomes era Bob Dylan, que tocava aquela gaita e aquele violão, cantando com aquela voz. Se tivessem imposto um violonista e um gaitista de estúdio bons, profissionais, jamais teria existido Bob Dylan. Aqui, não teria existido Nelson Cavaquinho." (Caetano Veloso. Livro "Tantas Canções" do box "Todo Caetano". Universal Music, 2002).

"1 - Há muito tempo que venho pedindo uma reedição do Araçá Azul. Você me deu uma ótima notícia. Muita gente, em toda parte, me pede pistas de onde encontrar um exemplar e nem mesmo eu tenho um. Você viu ontem a menina que toca flauta e percussão com Sara Gonzalez perguntando pelo "disco difícil de achar e que tem Tu Me Acostumbraste". Quando esse disco saiu, fizeram uma tiragem grande pra a época. O público procurou (era meu 1º LP brasileiro depois da volta de Londres, seguindo-se a "Transa" e saiu quase ao mesmo tempo que o "Juntos e ao vivo" com Chico Buarque - ambos de enorme sucesso), mas o número de pessoas que, depois de tentar ouvir a 1° faixa do lado A, voltava às lojas para devolver foi tão grande que as lojas convenceram a própria gravadora a aceitar as devoluções. Eu pensei que todos esses discos devolvidos ficariam guardados, arquivados, com capa e tudo, esperando um tempo de aceitação. Mas não. O que será que eles fazem com os discos? Derretem para fazer outros? E as capas? Queimam? Veja a minha alienação. Não sei. De todo modo, dá um certo orgulho de ter batido o record de devoluções.

2 - Acho que, com a reedição de "Araçá Azul", deve-se pensar na reedição do 1° disco do Walter Franco, aquele que tem uma mosca na capa branca.

3 - Fiz esse disco em uma semana. Mesmo uma canção como "Julia/ Moreno" foi composta durante a semana de gravação. O mesmo para "Épico". Saí de Salvador e fui pra São Paulo apenas com uma ideia: desenvolver o que tinha esboçado na trilha do filme "São Bernardo" de Leon Hirshman - improvisar superpondo vozes, usando o sistema de vários canais. O resto apareceu na hora. Trabalhei com o técnico Marcus Vinicius, por quem até hoje tenho enorme carinho. Toquei prato, violão, percussão e ocarinas. Assoviei. Chamei Tutti Moreno e Moacir Albuquerque e Lanni pra tocarem comigo.

4 - Prefiro o "Ben" do Jorge Ben, ? mesma época, mas adoro o "Araçá Azul".

5 - "O Cinema Falado" é o "Araçá Azul" do cinema."
(Caetano Veloso em carta sobre reedição do disco, 1987).



Sobre a capa: "A capa foi Luciano Figueiredo. Esse pé é dele. Ele está segurando o espelho onde eu estou refletido com o umbigo em primeiro plano. Quem fez as fotos foi Ivan Cardoso. O Luciano Figueiredo ouviu como eu imaginava que deveria ser a capa e planejou, e o Ivan Cardoso fez as fotos. Eu morava em Salvador, fui a São Paulo só pra gravar o disco, passei dez dias e voltei para Bahia. Isso aqui foi tudo fotografado na frente de minha casa em Salvador naquela época, que era em Amaralina. Foi isso, foi o Luciano Figueiredo com o Ivan Cardoso de fotógrafo. Fomos a Santo Amaro, e lá ele fotografou a Edith e me fotografou numa parede que estava descascando. Esta foto é em Amaralina, na frente da minha casa, isso aqui está lá até hoje, no Largo do Budião. Eu estava muito magro, fica mais feio na fotografia, eu não era feio. Nessa fotografia estou muito feio. Eu era muito magro, mas não ficava feio assim sempre como tava aí. Estou parecendo o Zeca, o meu filho." (Caetano Veloso. Programa Som do Vinil: memória da Música Brasileira, 2011). 

Ficha Técnica do disco

Direção de produção: Caetano Veloso
Assist. Direção: Guilherme Araújo
Técnico de Gravação: Marcus Vinicius
Estúdio: Eldorado - S. Paulo
Arranjos: Perinho, Caetano Veloso e Rogério Duprat 
Capa: Luciano Figueiredo e Oscar Ramos
Fotos: Ivan Cardoso

Show Araçá Azul - Matéria no Jornal O Globo

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Lista de Músicas

Lado A

1 - Viola, Meu bem (Anônimo)
Edith Oliveira: voz e prato; Luciano Oliveira: pandeiro e atabaque.

2 - De conversa (Caetano Veloso)
Caetano Veloso: vozes superpostas, percussão sobre a pele e os ossos, um pouco de piano; Improvisado no estúdio. / Cravo e canela (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos).

3 - Tu me acostumbraste (F. Dominguez)
Caetano Veloso: voz, violão, assovio e piano.

4 - Gilberto Misterioso (Caetano Veloso)
Caetano Veloso: voz, violão, piano, assovio; Tuti Moreno: percussão; o verso misterioso de Sousandrade.

5 - De palavra em palavra (Caetano Veloso)
Caetano Veloso: vozes superpostas; inspirado por/dedicado a Augusto de Campos; a presença & help de Arnaldo dos Mutantes. 

6 - De cara (Lanny & Caetano Veloso) / Quero essa mulher assim mesmo do genial Monsueto Menezes
Lanny: guitarra e guitarra; Tuti Moreno: bateria; Moacyr Albuquerque: baixo; Caetano Veloso: voz. 

Lado B

1 - Sugar cane fields forever (Caetano Veloso)
Edith Oliveira: voz e prato nos sambas de roda; Luciano Oliveira: pandeiro e atabaque nos sambas de roda; Perinho: todos os arranjos para orquestra e para o conjunto, mais viola brasileira; Moacyr Albuquerque: baixo; Antonio Perna: piano; Tusé de Abreu: flauta; Tuti Moreno: bateria e vibrafone; Caetano Veloso: voz, violão, passarinho de barro; Marcos Vinicius: máquinas. 

2 - Julia / Moreno (Caetano Veloso)
Caetano Veloso: voz; Perinho, Tuti, Tusé, Moacyr, Perna; Presença & ajuda de Roberto Menescal. 

3 - Épico (Caetano Veloso)
Caetano Veloso: voz; Avenida São Luiz:  canos de descarga e buzinas; gente da rua de São Paulo: vozes e silêncios; Rogério Duprat: arranjo para orquestra.

4 - Araçá Blue (Caetano Veloso)
Caetano Veloso: voz e jumbo. 

Vamos às Letras.

1 - Viola, Meu bem (Domínio Público)
Vou me embora pro sertão
Oh viola meu bem, viola

Que eu aqui não me dou bem
Oh viola meu bem, viola

Sô empregado da leste
Sô maquinista do trem

Vou me embora pro sertão
Que eu aqui não me dou bem
Oh viola meu bem, viola

Comentário de Caetano: "Pensei em chamar Edith, em Santo Amaro, pra cantar uns sambas de roda e depois ver o que fazer com isso." (Caetano para o Jornal do Brasil, 1973).

2 - De conversa (Caetano Veloso) / Cravo e canela (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos)

vozes superpostas

Ê morena quem temperou
Cigana quem temperou
O cheiro do cravo
Ê Cigana quem temperou
Morena quem temperou
A cor da canela

Cigana quem temperou...
Ê morena...

Eu quero ver você alegre
É conversando que a gente se entende

Comentário do autor: "A primeira faixa que gravamos - e que abre o disco - é uma peça vocal sem letra e sem melodia. Nascida da experiência com São Bernardo, ela consiste em gemidos e grunhidos superpostos, sons de vozes brasileiras em conversa (o título "De conversa" vem do fato de João Gilberto - sempre ele! - ter, pouco antes, gravado o samba de Lúcio Alves "De conversa em conversa"), em que se mantém os sotaques mas se abstraem as palavras. A isso se somava percussão tocada por mim mesmo sobre meu corpo. O que surge como revelação melódica e semântica no final da peça é a canção "Cravo e canela" de Milton Nascimento, numa saudação a esse grande colega que realizara um trabalho tão notável e tão diferente do nosso (mesmo oposto ao nosso, sob certos aspectos) e a quem não festejáramos de público na nossa volta com a ênfase que ele parece ter esperado (e não o fizemos por senso das diferenças e horror à demagogia), sendo que a frase final, "eu quero ver você alegre", dita a princípio por uma voz que logo se une a outras num acorde simples, também se dirige a Milton, aqui tanto no plano pessoal quanto no artístico, numa espécie de oração para que ele superasse aquela tristeza imensa que o prostrava - oração que, hoje vejo com orgulho, mostrou-se eficaz. (Não se veja nisto uma fantasia de onipotência: o que quis dizer com a frase final de "De conversa" é que havia no culto ao estilo de Milton, na própria admiração pelo seu trabalho, uma valorização mórbida dessa tristeza, e que existia em mim - mas é claro que não só em mim: em muitos, mas, antes de todos, no próprio Milton - o desejo de salvaguardar sua capacidade de vida e alegria, sem o que não haveria suas canções, mesmo as de beleza mais triste)." (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997).

3 - Tú me acostumbraste (F. Dominguez)

Tú me acostumbraste a todas esas cosas 
Y tú me enseñaste que son maravillosas 

Sutil llegaste a mí como una tentación 
Llenando de inquietud mi corazón 

Yo no concebia como se quería 
En tu mundo raro y por ti aprendí 
Por eso me pregunto al ver que me olvidaste
Por que no me enseñaste cómo se vive sin ti

Tú me acostumbraste a todas esas cosas
Y tú me enseñaste que son maravillosas

Sutil llegaste a mí como una tentación
Llenando de inquietud mi corazón

Yo no concebia como se quería
En tu mundo raro y por ti aprendí
Por eso me pregunto al ver que me olvidaste
Por que no me enseñaste cómo se vive sin ti

Comentário de Caetano: "As outras faixas de Araçá Azul seguiam nesse grau de inconvencionalidade. Até mesmo o bolero "Tu me acostumbraste" ganhava uma interpretação em duas oitavas, com a segunda rodada cantada em falsete, como Ray Charles em "People", só que com uma precária distorção eletrônica adicionada - e naturalmente sem a voz e a musicalidade do "Gênio"." (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997).

4 - Gilberto Misterioso (Caetano Veloso, Souzândrade)

Sou ré
Sou
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil em gendra, em Gil rouxinol
Gil

Comentário de Caetano: "[...] Gilberto Passos Gil Moreira -, também revelava-se delicadamente belo em outro plano, mais nobre em que a sílaba gil - um nome português com ecos arcaicamente literários por causa de Gil Vicente, o grande autor teatral do medievo lusitano - se repetia exata e limpidamente como que a  prefigurar, para mim, o verso misterioso escrito no século XIX por Sousândrade e que eu só leria depois de 68: "Gil engendra em Gil rouxinol" [...]". (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia  das Letras, 1997).
 
5 - De palavra em palavra (Caetano Veloso)

Som
Mar
Som
Mar
Som
Mar

Amarelanil
Anilina
Amaranilanilinalinarama
Amaranilanilinalinarama
Anilina
Som
Mar
Silêncio
Silêncio
Silêncio (Silêncio, Silêncio, Silêncio)
Silêncio (Silêncio, Silêncio, Silêncio)
Silêncio (Silêncio, Silêncio, Silêncio)
Não
Som

Comentário do autor: "Assim. o Araçá Azul surge como o disco experimental que na realidade me foi possível fazer. E isso era uma versão irreconhecível do disco concretista-paulista que eu não fizera. Não totalmente irreconhecível, porém, uma vez que Augusto sentiu com ele maior identificação do que com qualquer outro disco que eu tenha feito antes ou - principalmente - depois. De todo modo, há uma faixa do Araçá Azul que se inspirou num comentário de Augusto sobre o nome - Amaralina - do bairro em que eu morava na Bahia. Explorando as possibilidades formais da palavra, ele revelou o "anil" espelhado nas sílabas finais, fazendo-as circular em "anilina". A partir disso, inventei uma palavra longa que era legível nos dois sentidos (palindrômica) e que, para surpresa do próprio Augusto, se fazia igualmente reversível na gravação: amaranilanilinalinarama (amar anil anilina li na rama). Eu a pronunciei de modo que ela soasse como um trecho de oração hindu. E justapus à gravação normal uma sua cópia com a fita rodando ao contrário que soava quase indistinguível da outra, num espelhamento perfeito. É uma das coisas de que mais gosto no disco." (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997). 







6 - De cara (Caetano Veloso, Lanny) / Eu quero essa mulher (Monsueto Menezes, José Batista)

Eu quero essa mulher assim mesmo
Eu quero essa mulher assim mesmo
Essa mulher assim mesmo eu quero
Eu quero essa mulher assim mesmo
Eu quero essa mulher assim mesmo
Eu quero essa mulher assim mesmo
Essa mulher assim mesmo eu quero
Eu quero essa mulher assim mesmo
Eu quero essa mulher assim mesmo
Para ti nada
Eu quero essa mulher assim mesmo
Alucinada
Eu quero essa mulher assim mesmo
Despenteada
Eu quero essa mulher assim mesmo
Descabelada
Eu quero essa mulher assim mesmo
Embriagada
Quero essa mulher assim mesmo
Intoxicada
Eu quero essa mulher assim mesmo
Desafinada
Eu quero essa mulher assim mesmo
Disintuada
Eu quero essa mulher assim mesmo

Comentário de Caetano: "Tinha pensado em gravar Quero essa mulher assim mesmo com o pandeirista do Trio Mocotó, só voz e pandeiro, não sei bem como ia ser, era uma coisa de ele improvisar uma peça no pandeiro (daquelas geniais que eu vi ele fazer no show de Vinicius) e eu depois entrar de algum modo apoiado no samba de Monsueto. Ele não aceitou. Quando o Lanny veio pro estúdio, eu falei: a gente podia fazer aquele samba-blues. O Lanny fez tudo naquela faixa. Eu só cantei em cima. Tuti e Moacir executaram tudo genialmente, mas as ideias todas foram de Lanny." (Caetano para o Jornal do Brasil, 1973). 

7 - Sugar cane fields forever (Caetano Veloso)

Verdes mães
Verdes mães
Mães

Paturi tava sentado

Lá na beira da lagoa
Esperando a pata nova
Pra que lado ela avoa
Cho! Paturi, da lagoa
Cho! Paturi, da lagoa

Cavalinho de flecha
Cavalinho de flecha
Cavalinho

Cho! Paturi, da lagoa
Cho! Paturi, da lagoa

Eu quero
Eu quero
Eu quero
Eu quero
Eu quero
Eu quero
Eu quero
Eu quero
Eu quero
Eu quero
Eu quero
Eu quero
Eu quero
Eu quero
Eu quero

O guarda diz que não quer
A roupa no quarador
Meu Deus como vou quarar
Quarar minha roupa

Oi, quem não tem balangandãs
Oi, quem não tem balangandãs
Oi, quem não tem balangandãs
Oi, quem não tem balangandãs
Oi, quem não tem balangandãs

Sou um mulato nato (oi, quem)
No sentido lato (não tem)
Mulato democrático do litoral (balangandãs)

Sou um mulato nato (oi, quem)
No sentido lato (não tem)
Mulato democrático do litoral (balangandãs)

Sou um mulato nato (oi, quem)
No sentido lato (não tem)
Mulato democrático do litoral (balangandãs)

Sou um mulato nato (oi, quem)
No sentido lato (não tem)
Mulato democrático do litoral (balangandãs)

Sou um mulato nato (oi, quem)
No sentido lato (não tem)
Mulato democrático do litoral (balangandãs)

Sou um mulato nato (oi, quem)
No sentido lato (não tem)
Mulato democrático do litoral (balangandãs)

Tô doente, bem doente
Da ferida no dente
Mandei chamar o barbeiro
Com a lanceta de ouro
Ferida no mesmo olho
Prumódi meus arengueiros
Eu fiquei sem meu amor

Vem, comigo no trem da Leste
Peste, vem no trem
Pra buranhem
Pra buranhem, pra buranhem-nhem-nhem

Vem, comigo no trem da Leste
Peste, vem no trem
Pra buranhem
Pra buranhem, pra buranhem-nhem-nhem
Pra buranhem
Pra buranhem, pra buranhem-nhem-nhem

Eu vim aqui foi pra vadiar
Eu vim aqui foi pra vadiar
Ô vadeia, vadeia, vou vadiar
Eu vi a pomba na areia
Ô vadeia, vadeia, tô vadiando
Eu vi a pomba na areia

Verde Vênus
Verde Vênus
Verde Vênus

Eu vim aqui foi pra vadiar
Eu vim aqui foi pra vadiar
Ô vadeia, vadeia, vou vadiar
Eu vi a pomba na areia
Ô vadeia, vadeia, tô vadiando
Eu vi a pomba na areia

Vadeia, vadeia, vadeia
Vadeia vadeia, tô vadiando
Eu vi a pomba na areia
Eu vim aqui vou trabalhar
Eu vim aqui vou trabalhar

Ir, ir indo
Ir, ir indo
Ir, ir indo
Ir, ir indo

Canarinho da Alemanha, quem matou meu curió?
Canarinho da Alemanha, quem matou meu curió?
Odiê, odiá
Odiê, odiá

A mulher tava no samba
A mulher tava no samba
Mas o homem quer levar
Odiê, odiá
Odiê, odiá

Eu trabalho o ano inteiro
Eu trabalho o ano inteiro
Na estiva de São Paulo
Só pra passar fevereiro em Santo Amaro

Eu trabalho o ano inteiro
Eu trabalho o ano inteiro
Na estiva de São Paulo
Só pra passar fevereiro em Santo Amaro
Só pra passar fevereiro em Santo Amaro
Odiê, odiá
Odiê, odiá

Pra passar fevereiro em Santo Amaro
Só pra passar fevereiro em Santo Amaro
Só pra passar fevereiro em Santo Amaro
Pra passar fevereiro em Santo Amaro

Comentário do autor: "Chamei Perinho Albuquerque, o irmão mais novo de Moacir, um garoto de grande capacidade musical, um autodidata caprichoso, para fazer alguns arranjos. Depois de quase tudo gravado, ele foi para São Paulo e escreveu as partes orquestrais de uma peça longa chamada Sugar cane fields forever. Essa peça consistia numa série de sambas-de-roda do recôncavo alinhavada por intervenções minhas e da orquestra. Embora escritas com a ingenuidade de um autodidata talentosíssimo mas ainda pouco culto, as partes orquestrais pretendiam soar como música "moderna". O resultado lembrava a trilha sonora de um curta-metragem amador pretensamente artístico. Além de tudo isso, mandei estampar na parte interior da capa dupla a frase "UM DISCO PARA ENTENDIDOS", jogando com a dubiedade do termo entendido, que também designava o que hoje se chama de "gay"." (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997). 
"Os sambas de roda nós deixamos gravados pra preencher um título engraçado (era só o que havia) que pintara na minha cabeça usar no disco (na verdade já era uma velha piada que a gente fazia aqui na Bahia toda vez que, viajando pra Santo Amaro, passava pelos canaviais): Sugar cane fields forever(Caetano para o Jornal do Brasil, 1973). 

8 - Julia / Moreno (Caetano Veloso)

Uma talvez Júlia não
Uma talvez Júlia não tem
Uma talvez Júlia não tem nada
Uma talvez Júlia não tem nada a ver
Uma talvez Júlia não tem nada a ver com
Uma talvez Júlia não tem nada a ver com isso

Uma Júlia

Um quiçá Moreno
Um quiçá Moreno nem
Um quiçá Moreno nem vai
Um quiçá Moreno nem vai querer
Um quiçá Moreno nem vai querer saber
Um quiçá Moreno nem vai querer saber qual era

Um Moreno

Comentário do autor: "[...] fizera para o futuro neném cujo sexo desconhecíamos (Dedé estava grávida quando gravei o disco e ainda não existia - pelo menos na Bahia  - o exame de ultrassom) [...]". (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997).


9 - Épico (Caetano Veloso)

Êh êh êh êh êh êh êh, saudade
Todo mundo protestando contra a poluição
Até as revistas de Walt Disney contra a poluição

Êh êh êh êh êh êh êh, Hermeto
Smetak, Smetak, e Musak e Smetak
E Musak e Smetak, e Musak e razão

Êh êh êh êh êh êh êh, cidade
Sinto calor, sinto frio nordestino no Brasil?
Vivo entre São Paulo e Rio porque não posso chorar

Êh êh êh êh êh êh êh, começo
Destino eu faço não peço, tenho direito ao avesso
Botei todos os fracassos nas paradas de sucessos

Êh êh êh êh êh êh êh, João

Comentário do autor: "Pensei em chamar Rogério Duprat pra fazer alguma coisa sem nem mesmo ainda saber o quê. O mesmo com relação aos Mutantes. Não queria deixar de fazer algumas coisas com Perinho e os meninos que sempre tocam comigo. Chamei Lanny pra gente fazer qualquer coisa no estúdio. Duprat terminou fazendo aquele show de orquestrador espetacular em Épico. Os Mutantes - Arnaldo sempre muito desconfiado - terminaram não participando (exceto indiretamente através de Arnaldo, que me ajudou a lembrar as vozes que eu mesmo fazia na faixa De palavra em palavra), Perinho (desequilibradamente  no mesmo disco em que o supertarimbado Duprat atuava) experimentou os primeiros efeitos atonais com orquestra." (Caetano para o Jornal do Brasil, 1973).
10 - Araçá blue (Caetano Veloso)

Araçá Azul é sonho-segredo
Não é segredo
Araçá Azul fica sendo
O nome mais belo do medo

Com fé em Deus
Eu não vou morrer tão cedo

Araçá Azul é brinquedo

Comentário do autor: "Essa música nasceu da lembrança de um sonho que tive por volta dos 23 ou 24 anos, quando morava no Solar da Fossa. Nunca contei isso para o público, essa é a primeira  vez. Quando menino, e até depois, eu adorava subir  no araçazeiro (a gente na Bahia chama goiaba de araçá) para tirar a fruta de vez, que é antes de ela ficar madura e ainda meio verde, dura ainda, parecendo que vai explodir. É a  fruta de que mais gosto. No entanto, depois de tirada, três minutos depois, para mim já não presta mais; e quando está madura, não gosto nem no pé, e mais, nesse caso, é a fruta que mais detesto. Eu adorava ficar a tarde inteira entre os galhos, cantando e procurando os araçás que já estavam no ponto. Se via um e sabia que estava ainda muito verde, esperava pelo dia seguinte, pois sabia  que  ele ficaria melhor, e esperava. Então, um dia sonhei que estava assim, no topo de um araçazeiro alto, lá em casa mesmo, procurando os araçás perfeitos, quando, de repente, vi, entre todos os outros, um araçá azul, lindo. Aquilo era como um milagre, mas era real ali. E eu já ia colher esse araçá único, deslumbrante, quando vi que Bethânia - que até então não estava - vinha subindo pelos galhos para perto de mim. Então olhei para ela e disse: "Bethânia, tem um araçá aqui que é azul, ele nasceu azul!". Ela disse assim: "Ah...", sem nem olhar, desmerecendo, e acrescentou: "Isso deve ser a coisa dos japoneses que estão fazendo experiências". De fato, havia japoneses no recôncavo da Bahia quando a gente era menino; eles trabalhavam na lavoura, e eu ouvia dizer que faziam experiências, produziam tomates enormes, coisas assim, e, tanto tempo depois, Bethânia me disse aquilo no sonho. Eu respondi: "Não! Venha ver, isso é lindo, você tem que vir olhar!". E ela: "Ah...", desmerecendo outra vez. "Venha! Suba pra olhar", insisti, até que ela subiu um pouco mais. Eu disse: "Vou tirar pra mim". Mas, aí, Bethânia ficou séria e sentenciou: "Se você tirar, eu me mato". Eu repliquei: "Que loucura, que ideia louca!". E fui tirar o araçá, achando que ela estava falando por brincadeira. Mas quando pus a mão no araçá, ela se jogou! Fiquei desesperado, olhando. Só que ela se jogou e caiu segurando as pernas num galho abaixo. Tinha feito uma pirueta! E ficou lá, se balançando, rindo da minha cara, contente por ter me enganado. Então eu disse: "Ah!", e arranquei o araçá azul. Mas, quando fiz isso, ela se jogou mesmo. Eu acordei desesperado! Fiquei assustado, mas, ao mesmo tempo, lembrava de como era lindo o araçá e contei ao Rogério, que também morava no Solar da Fossa. Eu nunca tinha feito psicanálise, mas Rogério sim, e ele fez uma interpretação do sonho: "Puxa, você não está vendo que está com medo de colher o que é seu? A Bethânia se tornou uma estrela e você, que veio ficar com ela e é um compositor, fica aqui, assim... É como se você estivesse não propriamente com inveja dela, mas soubesse que também pode colher uma coisa boa, deslumbrante, e não o faz porque tem medo, como se, com isso, fosse matá-la. Entendeu?". Foi essa a interpretação dele. E foi até bastante interessante como primeira interpretação de um não-profissional. O Rogério é um gênio. Foi logo assim, de bate-pronto, no dia em que eu sonhei. Anos mais tarde, depois que voltei de Londres, já tinha passado o Tropicalismo, fiz a música." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003). 

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