1977 - Bicho - Caetano Veloso


Bicho foi lançado em maio de 1977 e traz influências da visita de Caetano Veloso à África, onde esteve com Gilberto Gil em contato direto com a musicalidade africana. O álbum surge na era das discotecas, com Caetano preferindo se apresentar mais em lugares com pistas de dança do que em teatros. Recriando os tempos de festivais dos anos 60, a patrulha ideológica criticou dizendo que era pura alienação. Em resposta, Caetano disse fazer parte da patrulha Odara (palavra que em iorubá que remete à beleza), pois estava "a fim de encantar e divertir as pessoas" e "enxergava uma minoria privilegiada racista que queria impor seus comportamentos e ideias". A capa traz A Grande Borboleta desenhada pelo cantor e Nicinha aparece em Alguém Cantando. É um disco que conseguiu entregar músicas que se mantiveram com o passar dos anos, como O Leãozinho, Tigresa e Um Índio. Alegre e solar, foi feito mesmo para dançar e é um dos queridos de Caetano. Gente é pra brilhar. Caetano uniu-se à Banda Black Rio para fazer o Bicho Baile Show, o que resultou num belíssimo disco ao vivo gravado no Teatro Carlos Gomes, no Rio, lançado somente em 2002.  

Caetano: "Ele levou muitas anedotas. Tinha Odara, criticada por gente de outras profissões, humoristas, sociólogos, psicanalistas que queriam ser de esquerda, que queriam ser bonitos como gente de esquerda. O Henfil até me agrediu. No show Transversal do Tempo, a Elis Regina, o Aldir Blanc e o Maurício Tapajós faziam uma piada, de gosto duvidoso, com a letra de Gente. Depois ela escreveu me dizendo que não queria me agredir, que a culpa era do diretor do show. Até joguei fora a carta. Odara é uma confissão de namoro com as discotecas. Eu me sentia bem em me aproximar do movimento Black Rio que surgia na época, quando começaram os grandes bailes funk. Tinha voltado de uma excursão à África com Gil, onde tive contato com a juju music da Nigéria. É um disco histórico, porque traz pela primeira vez a juju music para o Brasil em Two naira fifty kobo, que era o preço que a gente mais ouvia na Nigéria e o apelido do motorista que nos acompanhava. Fiz a música pensando no motorista. Tem Um Índio, com uma levada reggae. Tem Leãozinho, deslumbrante. Uma vez fui cantar numa assembleia não sei de quê da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Ia fazer um número para animar as pessoas, igual ao dessas cantoras que cantam para soldados na guerra, e recebi um bilhete que levaria um porrada se cantasse Leãozinho. Na hora ia cantar, mas fiquei com medo. Não sabia direito que manifestação era aquela. Foi um amigo que me pediu pra ir. Tem Tigresa, que cita na letra a discoteca Dancin’Days, uma boate do Nélson Motta que eu adorava. Aliás, eu encontrava muitos desses críticos de esquerda dançando nas discotecas." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1991).

"É um disco muito ligado com a atualidade, com aquilo que eu ouço. Não apenas o que eu ouço por escolha, mas principalmente aquilo que eu ouço sem escolher, o que está à minha volta. Nesse sentido o que me soou mais forte, que me pareceu mais ligado à atualidade, é essa coisa de dança, de música para dançar. A criação do "Bicho" começou logo depois do fim dos Doces Bárbaros. Doces Bárbaros foi uma coisa que me mobilizou muito, mobilizou a nós todos. Eu e Gil principalmente, porque nós começamos logo a compor para o grupo, produzimos muito, muitas canções novas em função dos Doces Bárbaros. Aí, acabou meio de repente, e deu aquele branco. Gil e Bethânia e Gal já estavam doidos para recomeçar seus trabalhos individuais, então para eles não houve esse corte. Eu fiquei assim uma semana andando pela casa sem saber o que fazer, e de repente comecei a compor muito. A maior parte das coisas desse disco saiu daí: "Gente", que foi a primeira, ainda muito dentro do clima dos Doces Bárbaros, "Tigresa", que é uma das poucas coisas que eu fiz num estilo de Bob Dylan, assim de dizer, de contar, é um retrato de uma certa população feminina urbana brasileira que todos nós conhecemos, de uma certa geração; "O leãozinho", "A grande borboleta"... é, tem muitos bichos nesse "Bicho". "Odara". Tem também "Um Índio", que é do repertório dos Doces Bárbaros, e uma música antiga de Jorge Ben, "Frases". (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 1977).

"Esse disco, cuja capa foi feita por mim (apenas um desenho com lápis de cor no papel branco), tem ecos do Jóia. Tem uma foto linda na contracapa, feita pela Marisa Alvarez Lima, onde estou muito bonito, como eu era. Esse disco lança a canção Odara, que deu muito o que falar, que talvez trouxesse uma batida funk e que afirmava todo esse aspecto da música de dança e de divertimento. Foi muito criticada, muito combatida como uma espécie de "manifesto da alienação". Tive brigas sérias por conta dessa canção. Em alguns casos, acho até que fui agressivo demais com alguns críticos. Cheguei a declarar a um jornal, em São Paulo, que os críticos que haviam escrito aquelas coisas contra Odara e contra o disco Bicho eram uma gente muito difícil de entender, porque tinham que obedecer ao mesmo tempo ao dono do jornal e ao presidente do partido. Chegava a perguntar: "Como escrever bem, se você tem que obedecer ao mesmo tempo a Roberto Marinho e a Luiz Carlos Prestes?" Como eu tinha mencionado nomes, naquela e em outras entrevistas, me lembro que o Henfil me acusou de "dedo-duro", porque ainda estávamos na ditadura militar e o Partido Comunista era ilegal. Segundo ele, minhas críticas significavam um gesto de delação, uma vez que aquelas pessoas poderiam correr algum perigo. Sempre tive esse tipo de problema com as esquerdas, e o disco Bicho ficou marcado por essas polêmicas. Nessa época, como se sabe, havia uma espécie de raiva de mim, pelo fato de eu não ser "de esquerda". Como já acontecera na época do tropicalismo, quando levei bomba e banana na cara, na FAO, em São Paulo, em 1968, juntamente com os poetas concretos, o Torquato Neto e o Capinan. Fomos convidados para um debate sobre tropicalismo. Foi distribuído um texto do Augusto Boal contra nós, bastante violento intelectualmente, e quando sentamos à mesa para debater, os estudantes não só atiravam bombas de São João como também bananas contra a gente, uma coisa muito agressiva. Sem contar com o episódio de Proibido proibir, que todos conhecem porque está gravado, bem como o de Alegria, alegria, que fui vaiado ao começar a cantar." (Caetano Veloso. Livro "Tantas Canções" do box "Todo Caetano". Universal Music, 2002).

"Acabada a excursão de Doces Bárbaros, de novo, sozinho, recomecei a compor. E é principalmente das canções que surgiram nesse período que se compõe o repertório deste novo disco. [...] Sempre tive (e talvez tenha até hoje mais que nunca) a vontade de ampliar o repertório de possibilidades sonoras dentro do campo de criação de música popular no Brasil. Quando musiquei “Triste Bahia”, escrevi a Augusto de Campos: “Quero que o resultado pareça ao mesmo tempo folclore e ficção científica”. A paixão compartilhada com Gil pela Banda de Pífaros de Caruaru, desde 1967, era a expressão dessa vontade. A gravação londrina de “Asa branca” foi um primeiro esforço de concentração no sentido de realizar algum som a mais. O ‘Araçá azul’ – depois da música para o filme “São Bernardo” de Leon Hirszman – foi o luxo de entrar no estúdio sem nada e deixar esse desejo fluir para que eu, assim, pudesse testá-lo. O nordestino fanhoso, o roqueiro distorcido, os Smetaks, o insólito – tudo isso é a minha identificação. A letra para a pipoca moderna. O chinês, o japonês, o baiano. Havia planejado fazer muito sons “de índio”. Queria fazer um disco de canções doces com suingue e queria trabalhar em casa uns sons “primitivos”. [...] O disco chama-se "Bicho". Principalmente por causa do desenho que escolhi pra capa. Eu já tinha feito esse desenho e o achava bonito. Quando fui olhando para o repertório que gravaria, vi que tinha muitos nomes de animais envolvidos. Aí pensei em qualquer coisa de animal, Guilherme Araújo me disse: "Esse seu disco será um jardim zoológico". Eu olhava para o desenho daquela borboleta astral e pensava: "Bicho da vida, esse é o bicho da vida". Quase coloco o nome do disco de "Bicho da vida". Depois reduzi pra "Bicho". Achei mais sintético, menos retórico. Acredito que o fato dos músicos brasileiros se tratarem, uns aos outros, de bicho, e também o fato da palavra estar em toda caricatura que se faz de hippy nas novelas e nos humorísticos da televisão, e também ser nome de jornalzinho de cartoon e comics, tudo isso se enriquece com esta minha redescoberta da palavra que, por sua vez, sai também enriquecida de tudo isso. Palavra gasta, palavra intacta." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1977).

"Agora vou lançar um disco para fazer todo mundo dançar. Eu acho bacana essa coisa de dançar, gosto muito. Talvez eu não seja capaz de fazer esse tipo de música muito bem, mas pensando bem, esse não é um disco para dançar, só feito por alguém que gosta de dançar. Entendeu? Na África, as pessoas dançam e isso é bacana. Até maio o disco ficará pronto. Não sei se vai fazer sucesso, nem quero iniciar nenhum movimento. Acho o sucesso uma coisa muito estranha. Existem discos que não vendem, mas que fazem muito sucesso. Entendeu? No que você ouve, acha bom. Não faz sucesso, mas jamais desagradará. É como o Lugar Comum de João Donato. Não espero que meu disco seja assim. Aquele é genial. Gravei Um Índio, que cantamos nos Doces Bárbaros, Odara, Leãozinho e vou gravar Frases, de Jorge Ben. (Caetano Veloso para a Revista Domingo, 1977). 

“Eu adoro o Bicho. O Bicho e o Bicho Baile Show, que foi aquela coisa que fiz com a banda Black Rio. Fiz quando voltei da África. É lindo o Bicho, eu adoro. É um disco que tem TigresaOdaraLeãozinhoUm Índio, é um bom disco. Tigresa é uma canção que bastaria para o disco Bicho ser considerado genial. Tem Two Naira Fifty Kobo, que imita a música africana, tem toda uma coisa que agora é que está rolando. O Bicho é muito bacana, eu tenho muito orgulho. Eu não gosto mesmo é do disco primeiro de Londres. Só gosto da gravação de Asa Branca. Acho que salva o disco, mas do resto não gosto. Mas aí tem problemas pessoais. Acho triste, acho deprimido. Já Transa é diferente, é lindo. Em Transa eu comecei a cantar bem”. (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 1981).

“No Bicho eu ainda trabalhei muito com Perinho Albuquerque, que é um sujeito de grande talento e com capacidade de disciplina. É um autodidata genial, mas ele se recolheu da música, se afastou e nunca mais quis fazer nada. Mas nesse período, depois da volta de Londres, ele trabalhou muito comigo - ele que fazia os arranjos, me orientava e me amparava musicalmente. Mas eu queria fazer uma coisa mais solta também, daí nasceu a Outra Banda da Terra – que foi uma proposta de Vinicius Cantuária e Arnaldo Brandão. Eles fizeram uma campanha pra gente fazer esse negócio e eu quis fazer. Eu estava compondo para o Bicho, quando alguns dos músicos que estavam colaborando começaram a me cantar para fazer esse negócio. Como eu tava com vontade de fazer um negócio solto, resolvi fazer um disco sem produtor. Todos os discos com a Outra Banda da Terra acabaram sendo feitos assim. Eu tinha voltado da África, tem alguma coisa de juju music. E tem Odara – que tem uma ligação com a música de dança. É uma coisa do período, muito por causa das discotecas. É uma menção e uma celebração da música de dança, como uma coisa ligada diretamente à experiência da música na África. Eu gostava muito e isso naturalmente causava muito problema. O pessoal chiou muito porque era contra. Voltou todo aquele negócio. Como teve gente contra a guitarra elétrica e o rock, teve também contra a aprovação da disco music. E Odara não é igual à disco music, é uma canção minha, mas que feita como celebração da música de dança. Então eles diziam que era a música de alienação, aí nós os tachamos de patrulha ideológica e eles nos chamaram de 'patrulha odara'. Ficou uma conversa de gente maluca. Eu gosto muito do disco e fiz o Bicho Baile Show com a Banda Black Rio, que foi muito malhado. Ninguém ia e ficava muito vazio, mas o show era de excelente qualidade". (Depoimento para a Coleção Caetano Veloso 70 anos, 2012).

Lista de Músicas

Lado 1

1 - Odara
(Caetano Veloso)
Piano: Thomás Improta; Guitarra Solo: Perinho Santana; Guitarra Centro: Perinho Albuquerque; Baixo: Arnaldo Brandão; Bateria: Vinícius Cantuária; Percussão: Djalma Corrêa / Bira da Silva. 

2 - Two Naira Fifty Kobo
(Caetano Veloso)
Piano: Thomás Improta; Guitarra Solo: Perinho Santana; Guitarra Centro: Perinho Albuquerque; Baixo: Arnaldo Brandão; Bateria: Vinícius Cantuária; Percussão: Djalma Corrêa, Bira da Silva, Rubão Sabino; Sax Alto: Tuzé Abreu; Sax Tenor: Raul Mascarenhas; Trompete: Wanderley. 

3 - Gente
(Caetano Veloso)
Piano: Antonio Adolfo; Guitarra: Perinho Albuquerque; Baixo: Luizão; Bateria: Enéas Costa; Percussão: Bira da Silva, Djalma Corrêa. 

4 - Olha o Menino
(Jorge Ben)
Violão: Perinho Albuquerque; Piano: Perinho Albuquerque; Baixo: Moacyr Albuquerque; Bateria: Enéas Costa; Percussão: Enéas Costa; Metais: Trompete: Hamilton, Formiga; Trombone: João, Macacheira; Sax Alto: Emílio;  Sax Tenor: Juarez.

Lado 2

1 - Um Índio
(Caetano Veloso)
Piano: Thomás Improta; Violão: Perinho Albuquerque, Caetano Veloso; Baixo: Rubão Sabino; Bateria: Enéas Costa; Percussão: Bira da Silva. 

2 - A Grande Borboleta
(Caetano Veloso)
Assovios: Caetano Veloso; Percussão: Djalma Corrêa. 

3 - Tigresa
(Caetano Veloso)
Piano: Thomás Improta; Violão: Caetano Veloso, Vinícius Cantuária; Baixo: Arnaldo Brandão; Bateria: Enéas Costa; Contracanto: Vinícius Cantuária. 

4 - O Leãozinho
(Caetano Veloso)
Violão: Caetano Veloso; Assovio: Caetano Veloso.

5 - Alguém Cantando
(Caetano Veloso)
Canto: Nicinha; Violão: Perinho Albuquerque, Caetano Veloso. 

Vamos às Letras.

1 - Odara (Caetano Veloso)

Deixa eu dançar pro meu corpo ficar odara
Minha cara minha cuca ficar odara
Deixa eu cantar que é pro mundo ficar odara
Pra ficar tudo jóia rara
Qualquer coisa que se sonhara
Canto e danço que dará

Comentário do autor: "Voltando ao projeto de músicas doces e suingadas, apareceu a melodia de "Odara", que é uma palavra que aprendi com o Waly Salomão. Digo que aprendi com o Waly porque foi ele que passou essa palavra para mim com o valor semântico que ela tem na letra da canção. Claro que já tinha ouvido na voz de Clara Nunes num desses sambas sobre religião negra. Também nos ambientes de candomblé essa palavra é usada. Mas não sei exatamente em que sentido. Em Itapoã, “odara” quer dizer bom, bonito, bacana. Quando comecei a gravar o disco, estava convencido de que “Odara” era a mais bonita das canções que eu tinha feito ultimamente. Até hoje não encontrei bons argumentos em contrário." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1977). 

2 - Two Naira Fifty Kobo (Caetano Veloso)

No meu coração da mata gritou Pelé, Pelé
Faz força com o pé na África

O certo é ser gente linda e dançar, dançar, dançar
O certo é fazendo música

A força vem dessa pedra que canta Itapuã
Fala tupi, fala iorubá

É lindo vê-lo bailando ele é tão pierrô, pierrô,
Ali no meio da rua lá

Comentário do autor: "Naira é o nome da moeda nigeriana. Kobo é a fração. "Two naira fifty kobo" é o preço que o motorista  do ônibus que servia à delegação brasileira no FESTAC¹ atribuía a tudo que se lhe encomendava e terminou virando seu apelido. Ele punha  ju-ju music pra tocar no toca-fitas do ônibus, que ficava estacionado em frente ao prédio tipo "Fundação da Casa Popular" que nos abrigava (e que inspirou o termo "refavela" a Gil), e dançava horas seguidas, sobre o asfalto da rua deserta. Ele era feio e magro, usava sempre aquelas roupas estampadas e dançava com os olhos  fechados. Parecia um pierrô bêbado dos Carnavais baianos do início dos anos 60. Sua dança, no entanto, tinha essa graciosidade africana e transmitia doçura e  melancolia." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003). Nota do organizador Eucanaã Ferraz: 1 - "Caetano e Gil, em janeiro-fevereiro de 1977, participaram do 2º Festival Mundial de Arte e Cultura Negra, em Lagos, Nigéria, onde passaram cerca de um mês".  

"Eu vi muita coisa, muita coisa demais sendo apresentada. Não dava para você ver nem um décimo do que tinha, mas mesmo você vendo só um vigésimo, já via muito, porque eram coisas lindas, música, teatro, pintura, tudo. E gente, principalmente gente que a gente fica conhecendo. É um barato. Gente de todos os países do mundo onde tem a cultura negra, todo mundo morando no mesmo bairro. [...] Em homenagem ao motorista nigeriano do ônibus que nos transportava em Lagos, compus Two Naira Fifty Kobo (duas nairas e 50 kobos, a moeda de lá), apelido que as pessoas puseram no motorista. Era um cara sensacional, que dirigia dançando as músicas populares que tocavam no toca-fitas do ônibus. Fiz a música dentro daquele clima. A letra é um negócio meio vago, poético, e a música tem alguma coisa de africano, no ritmo, na melodia e um tratamento próprio, guitarra de percussão, ao invés de bateria, como eles fazem lá. A música tem uma lembrança das emoções de estar ali, ver aquelas coisas, falo em Pelé e em Itapoã, tem um sentimento que eu não sei explicar. Foi coisa sentida, não pensada. É, a viagem me fez muito bem." (Caetano Veloso para a Revista Domingo, 1977). 

3 - Gente (Caetano Veloso)

Gente olha pro céu
Gente quer saber o um
Gente é o lugar
De se perguntar o um
Das estrelas se perguntarem se tantas são
Cada, estrela se espanta à própria explosão
Gente é muito bom
Gente deve ser o bom
Tem de se cuidar
De se respeitar o bom
Está certo dizer que estrelas estão no olhar
De alguém que o amor te elegeu pra amar
Marina Bethânia Dolores Renata Leilinha Suzana Dedé
Gente viva brilhando estrelas na noite
Gente quer comer
Gente que ser feliz
Gente quer respirar ar pelo nariz
Não meu nego não traia nunca essa força não
Essa força que mora em seu coração
Gente lavando roupa amassando pão
Gente pobre arrancando a vida com a mão
No coração da mata gente quer prosseguir
Quer durar quer crescer gente quer luzir
Rodrigo Roberto Caetano Moreno Francisco Gilberto João
Gente é pra brilhar não pra morrer de fome
Gente deste planeta do céu de anil
Gente, não entendo gente nada nos viu
Gente espelho de estrelas reflexo do esplendor
Se as estrelas são tantas só mesmo o amor
Maurício Lucila Gildásio Ivonete Agripino Gracinha Zezé
Gente espelho da vida doce mistério

Comentário do autor: "É uma letra ingênua. Quando eu estava fazendo, achava uma loucura aquela música, que parecia coisa de Broadway, de musical de segunda. No show Transversal do tempo¹, Elis Regina cantava "Gente" como se estivesse debochando da canção, com o arranjo servindo ao deboche, e aparecia "Beba Gente" escrito atrás, como se fosse Coca-Cola. E ela fazia tudo como se fosse um show de travesti, como se fosse uma bicha. Depois, inclusive, ela pegou aquele hábito de fazer show feito bicha. Em Trem azul,² o último show dela, ela apresentava os músicos assim: "Os meus bofes, esse aqui...". Parecia um espetáculo da Rogéria,³ era muito bom. A Elis ficou muito melhor no final. Foi melhorando, melhorando, melhorando. Ela era boa musicalmente. Um pouco antes de morrer, ela me  escreveu uma carta dizendo que aquilo que ela tinha feito com a minha música em Transversal do tempo tinha sido ideia dos diretores do show, que ela não queria, que, por ela, não faria aquilo, e me pediu desculpas." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003). Notas do organizador Eucanaã Ferraz: 1 - O show estreou em novembro de 1977, no Teatro Leopoldina, em Porto Alegre, com roteiro e direção de Aldir Blanc e Maurício Tapajós. A estreia carioca aconteceu em março do ano seguinte, no Teatro Ginástico, onde ficou por três meses. O disco com segmentos do show gravado ao vivo saiu em junho de 1978; 2 - O show estreou em julho de 1981, em São Paulo, e circulou por diferentes casas de espetáculo na capital paulista e em outras capitais, permanecendo em cartaz até dezembro do mesmo ano; 3 - Nome adotado por Astolfo Barroso Pinto, a mais famosa travesti do Brasil, atriz e dançarina.

"Gente é uma música que eu fiz um pouco sobre o problema de justiça social. É uma letra louca, mal escrita, mas eu gosto, porque é sincera, porque tem uma coisa que eu sempre senti, que a gente sente, né? Eu estou sempre me questionando, vendo como é isso, procurando viver mais verdadeiramente em relação às minhas ideias." (Entrevista a Gilberto Galvão, s/d). 

"A primeira que pintou foi a que veio a se chamar Gente. Fiz primeiro a música, pensando em colocar sobre ela uma letra qualquer. Depois de pronta eu achei louca. Hoje acho que Gente é uma canção linda e emocionante e louca como os Doces Bárbaros e a considero uma homenagem à experiência que os Doces Bárbaros foram para mim." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1977).

4 - Olha o Menino (Jorge Ben)

Olha o menino ui
Olha o menino ui ui ui

Eu só quero que Deus me ajude
E o menino muito mais também
Pois a rosa é uma flor
A flor é uma rosa
E o menino não é ninguém

Olha o menino ui
Olha o menino ui ui ui

Há seis mil anos o homem vive feliz
Fazendo guerras e asneiras
Há seis mil anos Deus perde tempo
Fazendo flores e estrelas

Olha o menino ui
Olha o menino ui ui ui

Eu sou um homem sincero
Porque nasci cresci e vivo livre
Eu sou um homem sincero
Que quero morrer, nascer e viver livre

Olha o menino ui
Olha o menino ui ui ui

Comentário de Caetano: "“Frases” [Olha o menino] foi a primeira música de Jorge Ben que me impressionou profundamente. Achava tudo aquilo que veio antes muito lindo e agradável, mas “Frases” me impressionou em 1966. Bem antes do tropicalismo. Acho que essa foi uma composição inaugural da nova poesia de Jorge Bem, da nova poesia brasileira. E agora eu a gravei." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1977). 

5 - Um Índio (Caetano Veloso)

Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul na América num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias
Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranquilo e infalível como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá
Um índio preservado em pleno corpo físico
Em todo sólido, todo gás e todo líquido
Em átomos palavras alma cor em gesto em cheiro em sombra em luz em som magnífico
Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico
Do objeto sim resplandecente descerá o índio
E as coisas que eu sei que ele dirá fará não sei dizer assim de um modo explícito
Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranquilo e infalível como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá
E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio

Comentário do autor: "Essa canção me deixa orgulhoso por eu ter posto na letra o nome de Bruce Lee, naquela altura, e rimando com Muhammad Ali, Peri, Filhos de Ghandi. Para mim, isso vale a música." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003).

“A maioria das vezes faço, ao mesmo tempo, letra e música, e é assim que gosto. Por um período muito grande, fiquei sem escrever, sem anotar e nem rever as letras. Um Índio, que tem uma letra enorme, só fui escrever quando tive de mandar para a gravadora, pois fiz cantando. Fiquei tanto tempo sem escrever que, um dia, o psicanalista Luiz Alberto Pi foi na minha casa, para deixar um recibo, e descobri que eu não tinha nenhum papel e nem lápis. A última vez que entrou papel lá em casa foi quando a Dedé estava trabalhando na produção de “Maiakovski”. O psicanalista ficou tão impressionado que me mandou de presente um caderno, um estojo com lápis, caneta e borracha”. (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 1981).

"Um Índio, por exemplo, é exatamente uma coisa que fui cantando, de madrugada, e iam saindo aquelas frases compridas e eu ia curtindo o gosto delas, curtindo aquela retórica. Vi o parentesco dela com uma música do Chico Buarque, Rosa dos Ventos; fiquei vendo as proparoxítonas, mas ia saindo, naturalmente, com aquela curtição da emoção". (Caetano Veloso em entrevista a Gilberto Galvão, s/d). 

"A música me veio num nascer de manhã insone, no apartamentinho em que eu vivia com Dedé e Moreno no final da praia do Leblon. Eu adoro "Tristes trópicos". É um belo livro. E me fascina a luz que o Marechal Rondon pôs sobre o mundo indígena. Eu tinha ido a Brasília porque um amigo me chamou para ver algo que ele achava impressionante e que dizia respeito à presença de extraterrestres entre nós. Fomos no breu da noite para uma zona deserta do cerrado. Tudo resultou em frustração. Não tanto para mim, que não sinto atração por médiuns que falam com alienígenas. Tinha havido alguma luz, um iô-iô luminoso desses que são vendidos na frente do Duomo de Milão, e um papo evidentemente falso com o médium. Esqueci o assunto. Quando fiz a canção, uma semana depois, não estava nem me lembrando disso. Me dei conta quando, o dia já claro, a música estava pronta. Tomei susto. Sempre me comoveu a celebração do 2 de julho na Bahia: há uma procissão com a imagem de um índio e uma índia (em Santo Amaro, só a índia), chamados "os Caboclos". É uma parada grande, com bandas marciais de escolas. É a festa da Independência na Bahia: Dom Pedro deu o grito às margens do Ipiranga, mas na Bahia houve guerra — e só vencemos em julho do ano seguinte. Os caboclos têm uma capela no largo da Lapinha, em Salvador. Só saem de lá no 2 de julho. O índio, ou caboclo, também esteve presente no primeiro candomblé de que tomei conhecimento: Edith do Prato recebia Sultão das Matas. No Recôncavo, os candomblés de caboclo são numerosos. Gosto muito de ler Eduardo Viveiros de Castro, mas não tenho essa visão antropológica como parâmetro para definir meus pensamentos a respeito de política. Mas pensar a tradição romântica do índio como símbolo nacional num tempo de crescimento populacional das nações indígenas que falam outra língua que não o português, ver lideranças indígenas ganharem protagonismo político, tudo isso mexe com minha alma. Tenho muito orgulho de que Viveiros e Déborah Danowski tenham citado a frase mais radical da minha canção no livro "Há mundo por vir?": "Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias". Adoro o refrão, com Mohamed Ali e Bruce Lee, Peri e os Filhos de Ghandi. Zé Agrippino, que não gostava de quase nada, gostava de "virá que eu vi". Vejo Sultão das Matas em Ali e a origem asiática dos povos americanos em Bruce Lee. Os Filhos de Ghandi, asiático mais escuro, são os pretos da Bahia. Sou preto. Sou português. Sou índio quando leio "Metafísicas canibais". Amo o texto de Montaigne sobre nós. Fiz a música para os Doces Bárbaros, decididamente para Bethânia cantar. Gravei depois meio em reggae. É coisa demais para eu pensar. Peça para eu parar." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 2020).

6 - A Grande Borboleta (Caetano Veloso)

A grande borboleta
Leve numa asa a lua
E o sol na outra
E entre as duas a seta
A grande borboleta
Seja completa-
Mente solta

Comentário do autor: "Assim, sobre uns sons de assovios superpostos que eu havia armado aqui, procurei colocar umas palavras e usei como tema ou pretexto um desenho que tinha feito com lápis de cor e que veio a ser escolhido depois por mim para ser a capa do disco. A música se chamou “A grande borboleta”." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1977). 

7 - Tigresa (Caetano Veloso)

Uma tigresa de unhas negras
E íris cor de mel
Uma mulher, uma beleza
Que me aconteceu
Esfregando a pele de ouro marrom
Do seu corpo contra o meu
Me falou que o mal é bom e o bem cruel

Enquanto os pelos dessa deusa
Tremem ao vento ateu
Ela me conta sem certeza
Tudo o que viveu
Que gostava de política
Em mil novecentos e sessenta e seis
E hoje dança no Frenetic Dancin' Days

Ela me conta que era atriz
E trabalhou no Hair
Com alguns homens foi feliz
Com outros foi mulher
Que tem muito ódio no coração
Que tem dado muito amor
E espalhado muito prazer e muita dor

Mas ela ao mesmo tempo diz
Que tudo vai mudar
Porque ela vai ser o que quis
Inventando um lugar
onde a gente e a natureza feliz
Vivam sempre em comunhão
E a tigresa possa mais do que o leão

As garras da felina
Me marcaram o coração
Mas as besteiras de menina
Que ela disse não
E eu corri pra o violão num lamento
E a manhã nasceu azul
Como é bom poder tocar um instrumento

Comentário do autor: "“Gente” ainda não estava de todo pronta quando fiz, sem pensar, a melodia do que veio a se chamar “Tigresa”. Algumas pessoas estavam conversando aqui na sala de som da minha casa e eu não estava a fim de prestar atenção na conversa delas. Fiquei tocando violão e assoviando e cantarolando qualquer coisa. Fui dormir sem planos de voltar a pensar nela, uma vez que meu projeto era compor canções doces e suingadas. Mas a música era linda mesmo e resolvi fazer uma letra. Mas não sabia o que dizer com as palavras, uma coisa que ficasse dentro do clima que já era para nós essa melodia. Mas também não quis forçar muito a cabeça. Um dia estava com Moreno vendo um seriado na televisão no qual apareciam uns meninos indianos que andavam com um elefante e encontravam outro menino, que era selvagem e não sabia falar e reagia como um felino. Quando eles tentavam se aproximar do menino selvagem, um grande tigre vinha protegê-lo. O menino tinha sido criado por aquele tigre que, na verdade, era fêmeo. O fato é que pensei que tigre fêmeo diz-se tigresa, e aí estava a palavra. Dessa palavra parti para inventar uma letra que mantivesse o clima da música. Imaginei logo uma mulher e queria algo assim como uma história. Essa mulher foi se nutrindo de imagens de mulheres que conheço e conheci, e essa história foi se nutrindo das histórias que vivo. Terminou pintando também um pouco de história, uma vez que o interesse que as pessoas da minha classe e da minha geração uma vez demonstraram pelo assunto política aparece datado. Mil pessoas me perguntam quem é a "Tigresa", ou para quem a música foi feita. Pois bem. Depois da mamãe tigresa da televisão, a primeira imagem de mulher que veio à minha cabeça foi a de Zezé Mota, e isso está bem evidente nas unhas e na pele. Mas terminei descobrindo que os olhos cor de mel são da Sônia Braga, embora não deixem de ter um parentesco com os cabelos da menina Maribel. Mas Bethânia e Gal já estavam lá. E Norma Bengell, Clarice, Claudinha, Helena Ignêz, Maria Ester, Silvinha Hippy, Marina, muitas outras meninas que eram bebês em 1966, Suzana e Dedé. Por fim a "Tigresa" sou eu mesmo. É minha primeira canção parecida um pouco com Bob Dylan." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1977). 

8 - O Leãozinho (Caetano Veloso)

Gosto muito de te ver leãozinho
Caminhando sob o sol
Gosto muito de você leãozinho
Para desentristecer leãozinho
O meu coração tão só
Basta eu encontrar você no caminho

Um filhote de leão raio da manhã
Arrastando o meu olhar como um ímã
O meu coração é o sol pai de toda cor
Quando ele lhe doura a pele ao léu

Gosto de te ver ao sol leãozinho
De ter ver entrar no mar
Tua pele tua luz tua juba
Gosto de ficar ao sol leãozinho
De molhar minha juba
De estar perto de você e entrar NUMA

Comentário do autor: "Fiz para o contrabaixista Dadi, um amigo que eu adoro. Ele é lindo, e nessa época ele era novinho, era lindíssimo. Ele é de Leão, assim como eu." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003). 
"Fiz "Leãozinho" para Dadi. Gosto de chamá-lo de Leãozinho porque ele é um lindo menino do signo de Leão, que é também o meu signo. Disse a ele : “Vou fazer uma música para você”. Aí comecei a fazer uma melodia em cima do título já escolhido. A letra saiu quase ao mesmo tempo que a música." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1977).

9 - Alguém Cantando (Caetano Veloso)

Alguém cantando longe daqui
Alguém cantando longe longe
Alguém cantando muito
Alguém cantando bem
Alguém cantando é bom de se ouvir
Alguém cantando alguma canção
A voz de alguém nessa imensidão
A voz de alguém que canta
A voz de um certo alguém
Que canta como que pra ninguém

A voz de alguém quando vem do coração
De quem mantém toda a pureza
Da natureza
Onde não há pecado nem perdão

Comentário do autor: "Fiz pensando em Nicinha, minha irmã, pra ela cantar. E ela gravou cantando comigo." (Caetano Veloso. Sobre as letras. Companhia das Letras, 2003).





Ficha Técnica

Direção de Produção: Perinho Albuquerque
Técnico de Gravação: Paulinho Chocolate
Assistentes: Geraldo / Luiz Claudio Varella
Montagem: William
Corte: Ivan Lisnik
Arranjos da Orquestra: Perinho Albuquerque
Cordas: Phonogram
Coro em todas as faixas: Marisinha / Evinha / Malú / Regina
Projeto Gráfico: Aldo Luiz
Desenhos: Caetano Veloso
Fotos: Mariza A. Lima
Arte Final: Jorge Vianna 

Postagens mais visitadas deste blog

O Leãozinho (Caetano Veloso)

Os Argonautas (Caetano Veloso)

Milagres do Povo (Caetano Veloso)