Cantiga de Boi (Caetano Veloso)
Meça a cabeça do boi
Um CD colado à testa
Adornaram-no pra a festa
Do que foi desça à metade
Do que eternamente nasce
Na face que é iridescente
Ó gente, dá-se a cidade
Abra a cabeça do boi
Por trás do CD um moço
Nesse cabra uma serpente
Cobra lá dentro do osso
Posso não crer na verdade
Mas ela dobra comigo
Abrigo em mim a cidade
Cantiga de boi é densa
Não se dança nem se entende
Doença, cura e repente
E desafio ao destino
Menino já tem saudade
Do que mal surgiu à frente
Alma, CD, boi, cidade
Purificação do adro
O quadro produz-se ali
Luz o paralelepípedo
Límpido cristal de olhar
Grécia, Roma e Cristandade
O CD refrata o tempo
Templo-espaço da cidade
Comentário do autor: "Eu tinha me prometido escrever apenas canções cujas letras fossem diretas e muito inteligíveis, que eu mesmo soubesse o que se dizia. Nada como o Qualquer Coisa, que tem um monte de jogos de linguagem, e não sei bem o que está sendo falado ali. Eu conheço todo o significado, mas o texto não é explícito, não é lógico. Cantiga do Boi apareceu-me de forma irresistível. Fui a um show da Margareth Menezes em Salvador durante o verão. Antes de ela cantar, saiu o grupo Malê Debalê. Todos chegaram, nesta apresentação, com um CD amarrado na testa. O lado brilhante foi virado para fora, aquele que é iridescente, onde você vê o espectro de luz. Fiquei impressionado e saí de lá pensando que era uma espécie de ornamentação folclórica. Lembrei-me de um bumba-meu-boi que tinha espelhos em forma de círculo entre os chifres. Lembrei-me de José Miguel Wisnik, seu filho Guile, e de Vadim que escreveu um artigo sobre a cidade e o boi nas minhas canções. Tem boi em Aboio, música do Tropicália 2. Eu disse: “Meu Deus, esta coisa voltando por causa dessa visão do Malê Debalê!” Mas eu deixei passar. Quando chegou o carnaval, eu estava assistindo ao desfile dos blocos afro no Campo Grande, e lá veio o Malê Debalê, o bloco inteiro, milhares de pessoas, todas com CD na testa. Isso me emocionou muito, aquele CD e a música começaram a sair assim. São algumas imagens, algumas rimas que eu não queria fazer, rimas internas, algo que esteticamente eu queria rejeitar mas não resisti, não consegui controlar. Fiz tudo com rimas internas. Perde o significado, mas mantém a sensação. Acabei fazendo na gravação as mais belas experimentações sonoras, com Tamima tocando uma trompa australiana de PVC. Usei também uma amostra da trilha sonora do filme "Vidas Secas", o som do carro de boi passando. Dediquei a música ao Zé Miguel, Guile e Vadim." (Caetano Veloso. Release para a Nonesuch Records, 2001).