Circuladô de Fulô (Texto: Haroldo de Campos (do livro Galáxias); Música: Caetano Veloso)

Circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie
Porque eu não posso guiá eviva quem já me deu circuladô
De fulô e ainda quem falta me dá
Soando como um shamisen e feito apenas com um arame
Tenso um cabo e uma lata velha num fim de festafeira no
Pino do sol a pino mas para outros não existia aquela
Música não podia porque não podia popular aquela
Música se não canta não é popular se não afina não tintina
não tarantina e no entanto puxada na tripa da miséria na
Tripa tensa da mais megera miséria física e doendo doendo
Como um prego na palma da mão um ferrugem prego cego
Na palma espalma da mão coração exposto como um nervo
Tenso retenso um renegro prego cego durando na palma
Polpa da mão ao sol

Circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie
Porque eu não posso guiá eviva quem já me deu circuladô
De fulô e ainda quem falta me dá

O povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro
Da maravilha no visgo do improviso tenteando a travessia
Azeitava o eixo do sol

Circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie
Porque eu não posso guiá eviva quem já me deu circuladô
De fulô e ainda quem falta me dá

E não peça que eu te guie não peça despeça que eu te guie
Desguie que eu te peça promessa que eu te fie me deixe me
Esqueça me largue me desamargue que no fim eu acerto
Que no fim eu reverto que no fim eu conserto e para o fim
Me reservo e se verá que estou certo e se verá que tem jeito
E se verá que está feito que pelo torto fiz direito que quem
Faz cesto faz cento se não guio não lamento pois o mestre
Que me ensinou já não dá ensinamento

Circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie
Porque eu não posso guiá eviva quem já me deu circuladô
De fulô e ainda quem falta me dá

© 1991 Ed. Uns Produções - Álbum Circuladô - Caetano Veloso.

Comentário de Haroldo de Campos: "Considero Circuladô um dos momentos mais altos da produção de Caetano. É um CD no qual ele retoma a interessante linha de experimentalismo do disco Araçá Azul, de 1973, harmonizando-o com o cantabile de sua canções mais pulsivas e singelas. Devo destacar que o trabalho que ele fez, ao musicar o fragmento Circuladô de Fulô, de minhas Galáxias (poemas), é particularmente admirável por retratar com fidelidade seu conteúdo. Caetano ouviu-me ler esse texto apenas uma vez – recordo-me que foi em 1969 –, quando tive oportunidade de visitá-lo no seu exílio londrino. Para mim, foi gratificante. Ele soube restituir-me com extrema sensibilidade – uma característica dele – o clima do meu poema, que é, todo ele, voltado à celebração da inventividade dos cantadores nordestinos no plano da linguagem e do som, na grande tradição oral dos trovadores medievais." (Haroldo de Campos. Trecho incluído no Trabalho de Conclusão de Curso Diálogos Antropofágicos: Poesia Concreta e Tropicalismo. Manuela Quadra de Medeiros. UFSC. Florianópolis, 2012).

Comentário de Caetano: "É uma possível divindade que faz as flores circularem." (Caetano Veloso em resposta à pergunta "O que é afinal um Circuladô de Fulô?". Jornal do Brasil, 1992). 

Eu sempre me emocionei muito com este texto do Haroldo de Campos por ser uma forma muito clara de falar da cultura popular. De uma inventividade diferente de um nacionalismo musical que tende a ser retrógrado e se recusa a inventar. O caráter enigmático e belo da expressão circuladô de fulô, acompanhada de um som requintado e tosco, é de todo irresistível para muitos artistas que gostam de invenção." (Caetano Veloso em depoimento a Marcia Cezimbra, 1991). 

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