Clarice (Letra: Capinam, Música: Caetano Veloso)

Há muita gente apagada pelo tempo
Nos papéis desta lembrança que tão pouco me ficou
Igrejas brancas, luas claras nas varandas
Jardins de sonho e cirandas, foguetes claros no ar

Que mistério tem Clarice
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme, no coração

Clarice era morena como as manhãs são morenas
Era pequena no jeito de não ser quase ninguém
Andou conosco caminhos de frutas e passarinhos
Mas jamais quis se despir entre os meninos e os peixes
Entre os meninos e os peixes,
entre os meninos e os peixes do rio, do rio

Que mistério tem Clarice
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme, no coração

Tinha receio do frio, medo de assombração
Um corpo que não mostrava, feito de adivinhação
Os botões sempre fechados,
Clarice tinha o recato de convento e procissão

Eu pergunto o mistério
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme, no coração

Soldado fez continência, o coronel reverência
O padre fez penitência, três novenas e uma trezena
Mas Clarice era a inocência,
Nunca mostrou-se a ninguém
Fez-se modelo das lendas, fez-se modelo das lendas
Das lendas que nos contaram as avós

Que mistério tem Clarice
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme, no coração

Tem que um dia amanhecia e Clarice
Assistiu minha partida, chorando pediu lembrança
E vendo o barco se afastar de Amaralina
Desesperadamente linda, soluçando e lentamente

E lentamente despiu o corpo moreno
E entre todos os presentes, até que seu amor sumisse
Permaneceu no adeus chorando e nua
Para que a tivesse toda, todo o tempo que existisse

Que mistério tem Clarice
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme, no coração

© 1968 Ed. Musiclave & Capinan - Álbum Caetano Veloso - Caetano Veloso.

Comentário de Caetano sobre Clarice Lispector: "O mistério, seu grande mistério (no qual Capinam deve ter pensado também — e não apenas no da Clarice de sua infância — quando escreveu aquela letra que eu musiquei mal — mas que não deixou de ter encanto assim mesmo — e que entrou no primeiro disco tropicalista como Pilatos no Credo) pode ser parcialmente desvelado ao se reconhecer em sua obra o panteísmo atingido a partir da formação judaica na língua de Camões (Spinoza) e a experiência entre os feios de Elizabeth Bishop e Ed Motta (o Brasil). [...] Musa, sim. Todos estivemos também fisicamente apaixonados por Clarice em algum momento de nossas vidas. Eu, sempre. Cantei o refrão de Capinam sobre o mistério sempre pensando nela, com saudade dela, com pena de ter me perdido dela." (Caetano Veloso. O Globo, 2011). 

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