Desde que o Samba É Samba (Caetano Veloso)
A tristeza é senhora
Desde que o samba é samba é assim
A lágrima clara sobre a pele escura
A noite, a chuva que cai lá fora
Solidão apavora
Tudo demorando em ser tão ruim
Mas alguma coisa acontece
No quando agora em mim
Cantando eu mando a tristeza embora
O samba ainda vai nascer
O samba ainda não chegou
O samba não vai morrer
Veja, o dia ainda não raiou
O samba é o pai do prazer
O samba é o filho da dor
O grande poder transformador
© 1993 Uns Produções Artísticas Ltda. / Gegê Produções Artísticas Ltda. - Álbum Tropicália 2 - Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Comentário do autor: "Fiz para Gil e eu gravarmos no Tropicália 2. É uma celebração, um samba sobre o samba. Gosto muito da ideia de que “o samba ainda não chegou, o samba ainda vai nascer”, porque é uma coisa que está no João Gilberto e que é completamente oposta à posição dos protecionistas que defendem uma espécie de reserva indígena do samba. Nessa canção, o samba é um projeto de Brasil, e eu gosto disso. Recebi um grande presente na vida, que foi o João Gilberto chegar a gravar esse samba. Isso parecia impossível porque o João sempre esteve vacinado contra esse tipo de samba, que tem muitos cacoetes, que tem pinta de clássico, 'instant classic', cuja intenção vê-se logo. O João nem gosta muito de Noel Rosa, embora tenha gravado divinamente o Palpite Infeliz, uma canção de que ele gosta muito, que é do Noel sozinho. Mas, na época da Bossa Nova, nem falava em Noel, o que era uma atitude violenta. E isso eu sempre entendi confrontando as músicas de Wilson Batista, Herivelto Martins, Geraldo Pereira e Assis Valente com as dele, que são intencionais, cuja ideia inteligente e o propósito de fazer uma coisa interessante percebe-se nelas imediatamente. Além disso, ele ficou na moda como compositor célebre, autor de letras geniais, no final dos anos 40, nos anos 50, quando João já estava pronto, sem que o Noel tivesse feito parte da formação dele. O João se aproximou de Desde que o Samba é Samba por um caminho enviesado. Disse-me que nunca tinha escutado a música, mas, na verdade, talvez tivesse sim, fisicamente. O que ele queria realmente dizer é que não tinha ouvido nada de especial naquele samba; mas a Paulinha, minha mulher, disse a ele que o samba era bonito, e que ele devia gravá-lo; ele deve ter pensado que a Paulinha talvez tivesse razão e quem sabe a canção tivesse mesmo algo interessante. Deve ter procurado alguma coisa no samba e, depois, me apareceu com aquilo! Disseram que eu produzi o disco em que ele gravou a música, mas, na verdade, não produzi nada, eu apenas ia com ele para o estúdio. E o certo é que ninguém produz o João: na hora em que ele chega, canta o que quer; depois muda; não canta as coisas que a gente pede, embora diga que sim, que vai cantar; depois... E ele é um doce no estúdio, é engraçado, é complicado, fica agoniado porque já gravou e tem medo de como tudo vai ser mixado, como se não quisesse, de fato, que as gravações tivessem um fim. É uma coisa muito complexa. No entanto, ele gravou o Desde que o Samba é Samba. Isso para mim foi um presente inestimável. Ele fez uma coisa tão linda e o samba só então ficou sendo realmente o que as pessoas diziam – e que parecia uma ideia cafona: um clássico." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003).