Fora da Ordem (Caetano Veloso)

Vapor Barato, um mero serviçal do narcotráfico,
Foi encontrado na ruína de uma escola em construção
Aqui tudo parece que era ainda construção e já é ruína
Tudo é menino e menina no olho da rua
O asfalto, a ponte o viaduto ganindo pra a lua
Nada continua
E o cano da pistola que as crianças mordem
Reflete todas as cores da paisagem da cidade que é muito
mais bonita e
muito mais intensa do que no cartão postal.

Alguma coisa está fora da ordem
Fora da nova ordem mundial.

Escuras coxas duras tuas duas de acrobata mulata,
Tua batata da perna moderna, a trupe intrépida em que fluis
Te encontro em Sampa de onde mal se vê quem sobe ou
desce a rampa
Alguma coisa em nossa transa é quase luz forte demais
Parece pôr tudo à prova, parece fogo, parece parece paz
Parece paz
Pletora de alegria, um show de Jorge Benjor dentro de nós
É muito, é grande, é total.

Alguma coisa está fora da ordem
Fora da nova ordem mundial.

Meu canto esconde-se como um bando de Ianomâmis na
floresta
Na minha testa caem, vêm colar-se plumas de um velho cocar
Estou de pé em cima do monte de imundo lixo baiano
Cuspo chicletes do ódio no esgoto exposto do Leblon
Mas retribuo a piscadela do garoto de frete do Trianon
Eu sei o que é bom.
Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem
Apenas sei de diversas harmonias bonitas possíveis sem
juízo final.

Alguma coisa está fora da ordem
Fora da nova ordem mundial.

© 1991 Uns Prod. - Álbum Circuladô - Caetano Veloso. 

Comentário do autor: "Eu acho que se a maioria da humanidade está em condições de miséria, não é uma minoria de países que estão em condições boas que pode tomar um tom arrogante agora e estabelecer uma ordem mundial como se a gente não tivesse nada a dizer. Eu não me sinto bem ouvindo aquilo. Eu acho que alguma coisa está fora da nova ordem mundial. Tem uma canção sobre isso no meu disco." (Caetano Veloso. Programa Cara a Cara com Marília Gabriela. TV Bandeirantes, 1991). 

"É um falso funk-marcha-rancho, que eu compus para que soasse assim mesmo. Para ser o veículo de uma visão do Brasil, por um lado sombrio demais, por outro lado demasiadamente cheia de luz." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1992).

"A canção Fora da Ordem tem uma estrofe totalmente de imagens sombrias. A imagem das crianças com um cano de pistola na boca, que eles mordem enquanto o cano da pistola reflete a beleza da paisagem do Rio de Janeiro é uma dessas imagens terríveis da primeira estrofe. No entanto, a segunda estrofe é toda de imagens de afirmação, de alegria. É excesso, demasia. "Pletora de alegria, um show de Jorge Ben Jor". Depois, "as pernas da acrobata mulata". Coisas afirmativas, onde o Brasil é muito luminoso. Isso também é dito como fora da ordem. Então, há uma dor e uma grande alegria em que nós estejamos fora da nova ordem mundial. Desde o momento em que o Bush pronunciou essa expressão "nova ordem mundial", eu imediatamente senti, ao mesmo tempo, a possível tristeza de estar excluído dessa possível nova ordem mundial e a grande alegria de não estar comprometido, de não estar identificado com ela [...]. Eu estava em Nova York e o "New York Times" fez umas duas reportagens, quando eu estava gravando o Circuladô, sobre América Latina. Nas duas reportagens o Brasil aparecia como sendo infelizmente o único país que não estava funcionando, que não estava caminhando para botar sua economia como eles, no "New York Times", os americanos, acham que deveria ser feito. E o Brasil era o único que não estava acertando. Você pode considerar perverso, mas eu senti uma espécie de orgulho quando li isso lá. Uma espécie de alegria. Parece que o Brasil é o único que tá ruim, mas talvez seja isso, justamente, que signifique alguma coisinha boa em relação a nós. Tenho que lhe dizer sinceramente, confessar, que eu pensei assim." (Caetano Veloso para a Folha de S. Paulo, 1992).

"O que eu acho mais atual na letra do Fora da Ordem e do clima da música, que foi grandemente inspirado, por mais diferente que seja, num disco de Curtis Mayfield que eu acho lindo, é um disco muito funk, muito soul, com as letras políticas. O disco é incrível. O Arto [Lindsay] me deu de presente quando eu tinha feito o Estrangeiro. Eu fiquei ouvindo muito esse disco e fiquei maravilhado, aquilo emociona, tem um negócio... é espetacular. Então, naturalmente, não sou capaz de fazer nada que chegue aos pés de Curtis Mayfield, mas o Fora da Ordem foi inspirado na vivência da audição desse disco. E se você pergunta se eu acho que a nova ordem mundial mudou, se a letra se mantém atual em relação ao panorama geral; eu acho que, na verdade, não mudou nem o sobrenome do sujeito que falou que o mundo tinha entrado numa nova ordem. Foi o George Bush pai que disse isso e eu fiz a música contra. E a gente ainda está hoje nessa dinastia infernal desses Bush. Então, sob esse ponto de vista, continua a mesma ordem e a mesma desgraça estar fora dessa ordem e a mesma glória estar fora." (Caetano Veloso em entrevista nos extras do DVD Cê Ao Vivo, 2007).

"Aqui tudo parece que era ainda construção e já é ruína"… Eu disse isso inspirado em Tristes Trópicos, de Lévi-Strauss, que li em 1968. Eu me apaixonei. Uma das coisas interessantíssimas que ele escreve é que, no Brasil, as coisas começam a ser construídas mal e já passam de construção à ruína sem chegar à realização, sem se completarem." (Caetano Veloso para o El País, 2014).

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