Língua (Caetano Veloso)

Gosto de sentir a minha língua roçar
A língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar
A criar confusões de prosódias
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior
E deixa os portugais morrerem à míngua
"Minha pátria é minha língua"
Fala Mangueira
Fala!

Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode
Esta língua?

Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E - xeque-mate - explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem
Adoro nomes
Nomes em Ã
De coisas como Rã e ímã
Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
Nomes de nomes como Maria da Fé, Scarlet Moon Chevalier,
Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé,
Arrigo Barnabé, Arrigo barnabé, Arrigo Barnabé

Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode
Esta língua?

Se você tem uma ideia incrível
É melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível
Filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo
Meu medo!
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria: tenho mátria
Eu quero frátria
Poesia concreta e prosa caótica
Ótica futura
Tá craude brô você e tu lhe amo
Qué queu te faço, nego?
Bote ligeiro
Samba-rap, chic-left com banana
Será que ele está no Pão de Açúcar
Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem

© 1984 Ed. Gapa / Warner Chappell - Álbum Velô - Caetano Veloso. 

Comentário do autor"Eu acho que Velô é até um disco muito unitário, com um som bastante uniforme, mas pra minha cabeça não há dificuldade nenhuma em harmonizar as presenças de Elza Soares e Ritchie, porque os dois são maravilhosos, cada um num departamento da minha cabeça. Sendo que Elza Soares é um projeto maior. Eu tenho vontade de fazer um trabalho grande com a Elza Soares e já tenho conversado com ela sobre isso. Eu acho que Elza Soares precisa cantar muito mais e precisa fazer um disco de grande cantora que ela é. Eu tenho falado isso com ela, a gente tem conversado de pouco em pouco e ela fica animada querendo fazer. E eu vou começar a batalhar esse lance, porque eu acho ela o máximo e precisa fazer uma coisa assim de altíssimo nível, de nível internacional como canto genial mesmo, um disco moderno, lindo, que eu acho que ela pode e deve fazer. Então por causa de estar conversando muito com ela sobre isso, eu como gravei essa canção chamada Língua que é meio falada, meio funk, meio samba, com a presença dessa coisa de samba muito forte e fala em Mangueira e ela é mangueirense e eu acho ela a cantora mais genial de samba do Brasil, e como eu tenho estado em contato com ela, eu chamei: "Elza, você canta comigo esse negócio?" Ela ficou super contente de cantar, veio, fez e arrasou. Uma das coisas mais geniais do disco são esses pequenos momentos em que a Elza participa. É uma coisa maravilhosa. Isso eu fico orgulhosíssimo de ter feito e de fazer, porque ela é o máximo." (Caetano Veloso. Disco-Entrevista sobre o lançamento do Lp Velô, 1984).

"É uma frase de Bernardo Soares no Livro do Desassossego, “minha pátria é a língua portuguesa”, que modifiquei um pouco na letra de Língua ao escrever que minha pátria é minha língua. Creio que uma das características mais desafiadoras e inspiradoras do Brasil é o fato de falar português. É o único país das Américas em que se fala português, e um país de dimensões continentais, no hemisfério sul, onde vive a maior população negra fora do continente africano. Sempre cheio de promessas e sempre falido. Esse vínculo linguístico-histórico com Portugal me parece um grande desafio e aumenta nossa responsabilidade de criar algo original no mundo. É uma inevitabilidade da condição do brasileiro." (Caetano Veloso para o El País, 2014). 

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