Mauá e Fox (14/11/2010)

Depois de receber os comentários de Ronaldo Lemos em reposta à minha pergunta sobre a não entrada do iTunes no Brasil - e sugerir que Éboli, o presidente da Universal Brasil, polemizasse com ele - recebi os seguintes comentários deste último: "O Brasil, assim como o México antes da chegada do serviço, em agosto de 2009, apresenta vendas insignificantes simplesmente por não ter 'o site' aqui instalado. Quer queiram ou não, o iTunes é cool entre os usuários, e é por essa razão que suas vendas representam cerca de 80% do total vendido no mundo inteiro no serviço à la carte (quando o usuário escolhe o que comprar dentre milhões de músicas disponíveis). Ou seja, ter ou não ter o iTunes no país faz uma tremenda diferença. No México, somente com o repertório da Universal Music, as vendas subiram de um patamar de aproximadamente dez mil para 200 mil/mês. atualmente! Um crescimento espetacular! Por que isso não ocorreria no Brasil?!"

Ele quer dizer que existe, sim, "um mercado de música legal para o consumidor poder baixar suas músicas com segurança e respeitando todos os direitos autorais e artísticos". O que é preciso "são serviços de qualidade e prestígio, o que o iTunes tem de sobra". Deslocando a discussão da questão dos impostos (que a Apple acharia altos demais no Brasil) para a consideração do absurdo de o iTunes não estar ainda entre nós, o chefe da gravadora com que tenho contrato desde que o mundo é mundo insiste que "o Brasil, sendo um país tão musical, pode replicar esse fenômeno que aconteceu no México com muito mais contundência. Daí a nossa preocupação".

Seria preciso tempo para consultar os arquivos do blog Ordem e Progresso para sentir em que tom vinham as reações a Gil Lopes quando este propunha o que Éboli propõe hoje. Mas estou em Los Angeles, a convite do artista Doug Aitkin, para participar de um happening que ocupará todo o MoCA (Museum of Contemporary Arts), e não tenho tempo, entre ensaios e encontros sociais, de fazer nenhum tipo de pesquisa. Para relaxar, leio na cama os "Vultos da república" da "Piauí" (dentre muito bons artigos, o de João Moreira Salles sobre Francenildo destaca-se pela força literária, histórica e jornalística) e releio o "Mauá" de Jorge Caldeira. Tenho uma lembrança vaga de que as discussões no blog giravam em torno da maior ou menor atração de quem comentava pelo acesso ilegal a obras artísticas. E pela menor ou maior desconfiança de toda negociação "convencional" pela internet. 

Eu estava acostumado a odiar Los Angeles. A primeira vez que vim aqui, fui levado do aeroporto para um hotel (um Hilton desses, sei lá) perto de antigos estúdios da Universal, em frente a um shopping ao ar livre, chamado City Walk, não longe de Woodland Hills. 

City Walk é o modelo do Downtown carioca e do Aeroclube de Salvador: ruas cenográficas compostas de lojas reais e cinemas excelentes, que vendem roupas, joias, brinquedos e sonhos por dinheiro verdadeiro. Como eu só tinha visto estradas desde o aeroporto até a porta do hotel, fiquei com a impressão de que Los Angeles se resumia a largas estradas e minibairros falsos. Essa impressão não mudou muito quando tomei contato com áreas mais urbanizadas da cidade: as ruas de comércio de LA parecem construídas no Projac, cada fachada dando a impressão de nada esconder dentro. Um cenário modesto e feito às pressas para uma filmagem que vai se dar hoje: amanhã restará o deserto e alguns coiotes. Uma vez meu amigo Peter Sellars, o diretor de teatro de vanguarda, me mostrou bairros onde a polícia dava duras em mexicanos; as deslumbrantes torres de Watts; um restaurante chinês colado ao centro; e - mais importante do que tudo - Joshua Tree. Passei a sentir o fascínio do deserto nas ruas da cidade. Mas isso não criava uma unidade. O "centro" (Downtown LA) faz pensar em filmes de ficção científica em que o mundo acabou, tendo restado apenas uma dúzia de pessoas perdidas entre alguns prédios vazios. Arranha-céus em Chicago ou Nova York estão cheios de vida - e cercados de multidões atarefadas. Em LA, os prédios parecem mortos, e as ruas estão desertas em volta deles. Hoje vi um grupo de pessoas com cara de imigrantes ilegais ajudando umas às outras a descerem de uma mureta e achei que estava no "Ensaio sobre a cegueira" de Fernando Meirelles. Só uma vez senti realidade em LA: na festa do Oscar. Bem, o tapete vermelho parece um sonho estranho: mulheres vestidas e maquiadas para a noite à luz dura do sol, galãs de black-tie numa luz de praia. Mas dentro do teatro, tudo encorpa: há verdade, história, Humanidade. Fui começando a gostar daqui. Ainda não cheguei lá: sou de Madri, Nova York, Buenos Aires. Penso que as calçadas dos bairros residenciais de LA podem ser lambidas: nunca ninguém as pisou. A "calçada da fama" é enganação. Pisamos nos astros e não nos distraímos, mas não sentimos a magia do estrelato. É pobre. 

Mas Fox veio para cá fugindo das amarras das patentes e criou Hollywood. Os defensores da pirataria têm nele um exemplo da criatividade que vence direitos esclerosados. Temos de deixar rolar o que funciona e imaginar leis que acompanhem o processo. No momento, parece-me que é mais Fox desejar que o iTunes entre no Brasil do que desprezá-lo por amor a supostas liberdades. Não sei. Meu interesse não coincide com a Universal: permaneci numa mesma gravadora não por apego mas por indiferença. Mas acho que devemos sempre relembrar Mauá. 

Caetano Veloso.

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