O Herói (Caetano Veloso)
Nasci num lugar que virou favela
Cresci num lugar que já era
Mas cresci a vera
Fiquei gigante, valente, inteligente
Por um triz não sou bandido
Sempre quis tudo o que desmente esse país
Encardido
Descobri cedo que o caminho
Não era subir num pódio mundial
E virar um rico olímpico e sozinho
Mas fomentar aqui o ódio racial
A separação nítida entre as raças
Um olho na bíblia, outro na pistola
Encher os corações e encher as praças
Com meu Guevara e minha Coca-Cola
Não quero jogar bola pra esses ratos
Já fui mulato, eu sou uma legião de ex-mulatos
Quero ser negro 100%, americano
Sul-africano, tudo menos o santo
Que a brisa do Brasil beija e balança
E no entanto, durante a dança
Depois do fim do medo e da esperança
Depois de arrebanhar o marginal, a puta
O evangélico e o policial
Vi que o meu desenho de mim
É tal e qual
O personagem pra quem eu cria que sempre
Olharia
Com desdém total
Mas não é assim comigo
É como em plena glória espiritual
Que digo
Eu sou o homem cordial
Que vim para instaurar a democracia racial
Eu sou o homem cordial
Que vim para afirmar a democracia racial
Eu sou o herói
Só Deus e eu sabemos como dói
© 2006 Uns Produções Artísticas Ltda. - Álbum Cê - Caetano Veloso.
Comentário do autor: "Não é um hap como Haiti, por exemplo. A sua base tem elementos de choro. Apesar disso, é a única canção política do disco. Ela é sobre a importância de reconhecer onde há atrito racial e onde ele está camuflado. No fim há uma virada, que reafirma a harmonia racial que conhecemos no Brasil. Acho nocivo criar atritos raciais desnecessários.” (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 2006).
"É como se fosse a trajetória de um ativista do movimento negro que, depois de se opor a todas as ilusões da harmonia racial brasileira, termina reafirmando-se como o homem cordial e instaurador da democracia racial. É como se ele atravessasse o processo inteiro e no fim chegasse a uma coisa a que só um brasileiro poderia chegar." (Caetano Veloso para a Folha de S. Paulo, 2006).