Peter Gast (Caetano Veloso)

Sou um homem comum
Qualquer um

Enganando entre a dor e o prazer
Hei de viver e morrer
Como um homem comum
Mas o meu coração de poeta
Projeta-me em tal solidão
Que às vezes assisto
A guerras e festas imensas
Sei voar e tenho as fibras tensas
E sou um

Ninguém é comum
E eu sou ninguém

No meio de tanta gente
De repente vem
Mesmo eu no meu automóvel
No trânsito, vem
O profundo silêncio
Da música límpida de Peter Gast
Escuto a música silenciosa de Peter Gast
Peter Gast
O hóspede do profeta sem morada

O menino bonito, Peter Gast
Rosa do crepúsculo de Veneza
Mesmo aqui no samba-canção do meu rock'n'roll
Escuto a música silenciosa de Peter Gast
Sou um homem comum

No meio de tanta gente
De repente vem
Mesmo eu no meu automóvel
No trânsito, vem
O profundo silêncio
Da música límpida de Peter Gast
Escuto a música silenciosa de Peter Gast
Peter Gast
O hóspede do profeta sem morada

O menino bonito, Peter Gast
Rosa do crepúsculo de Veneza
Mesmo aqui no samba-canção do meu rock'n'roll
Escuto a música silenciosa de Peter Gast
Sou um homem comum

© 1983 Ed. Gapa / Warner Chappell - Álbum Uns - Caetano Veloso. 

Comentário do autor: "É sobre um sujeito que foi importante na vida de Nietzsche. Quando li, anos atrás, o livro de Daniel Alevy sobre Nietzsche, que é muito bonito, fiquei fascinado pela personalidade de Peter Gast. Fiquei sabendo que ele foi músico e compositor a vida toda, que foi morar em Veneza e foi um amigo que, até o fim, não abandonou Nietzsche, que foi ficando louco e era intratável. Mas o trabalho de Peter Gast não ficou, ele não produziu nada de importante como músico e que o fizesse conhecido por isso. Peter Gast era como Nietzsche o chamava. O nome dele era Heinrich Köselitz. Gast quer dizer o hóspede, ou o visitante, ou o convidado. Então, eu não pude deixar de escrever a música, que veio inteira na minha cabeça. Fiz, mas depois pensei que era um negócio meio ridículo. Achava que era interessante, mas tinha vergonha, achava que ia ficar só pra mim. Mas os meninos da banda acharam bonita a música, tocaram bonito, então eu gravei. Mas eu não falava muito no assunto, não dava muita atenção, pois continuava meio envergonhado por ser uma letra que falava de algo que eu simplesmente li num livro. Mas também me lembrava de Jorge Ben, que começa a letra de "As rosas eram todas amarelas", uma música incrível, com uma lista de personagens de Dostoievski, o adolescente, o ofendido, o jogador, o ladrão honrado ("todos sabiam mas ninguém falava, esperando a hora de dizer, sorrindo, que as rosas eram todas amarelas"), depois cita as Cartas ao jovem poeta, de Rilke ("basta eu saber que poderei viver sem escrever mas podendo fazê-lo quando quiser"). Resolvi, então, considerar que eu estava na tradição do Jorge Ben, que, sem dar explicação, colocava na letra algo vindo de uma leitura, referências da alta cultura, usadas de uma maneira intelectualmente não autorizada. Mas, no meu caso, achava que não ficava muito bem por ser um cara com formação universitária, e pensava que podia ficar meio cabotino. Bem, deixei pra lá, não liguei; pensei um pouco no exemplo de Jorge Ben mas depois esqueci. Até que fui à Argentina e, durante uma entrevista minha à televisão, uma moça que se chama Silvina Garret, cantou "Peter Gast", em português, com um pianista amigo dela acompanhando. E ela cantou tão bonito, tão bem, que a música ficou, pra mim, salva para sempre." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003). 

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