Reconvexo (Caetano Veloso)
Eu sou a chuva que lança a areia do Saara
Sobre os automóveis de Roma
Eu sou a sereia que dança
A destemida Iara
Água e folha da Amazônia
Eu sou a sombra da voz da matriarca da Roma Negra
Você não me pega
Você nem chega a me ver
Meu som te cega, careta, quem é você?
Que não sentiu o suingue de Henri Salvador
Que não seguiu o Olodum balançando o Pelô
E que não riu com a risada de Andy Warhol
Que não, que não e nem disse que não
Eu sou um preto norte-americano forte
Com um brinco de ouro na orelha
Eu sou a flor da primeira música
A mais velha
A mais nova espada e seu corte
Sou o cheiro dos livros desesperados
Sou Gitá Gogóia
Seu olho me olha mas não me pode alcançar
Não tenho escolha, careta, vou descartar
Quem não rezou a novena de Dona Canô
Quem não seguiu o mendigo Joãozinho Beija-Flor
Quem não amou a elegância sutil de Bobô
Quem não é Recôncavo e nem pode ser reconvexo
© 1989 Ed. Gapa / Saturno - Álbum Memória da Pele - Maria Bethânia. Gravada por Caetano Veloso nos álbuns Multishow Ao Vivo Abraçaço (2014) e Ofertório (2018).
Comentário do autor: "Compus para Bethânia gravar. Eu estava em Roma quando um dia acordei e vi os carros empoeirados, todos cobertos de areia. Perguntei: “Gente, o que tem nesses carros aí?”. Uns italianos, amigos meus, responderam: “Isso é areia que vem do deserto do Saara, que o vento traz”. Com essa imagem, comecei imediatamente a compor a música. A letra fala em “Gita gogóia” porque a letra de “Gita” diz “eu sou, eu sou, eu sou...” e porque a canção “Fruta gogóia” também se estrutura do mesmo modo “eu sou, eu sou, eu sou”. A letra é meio contra o Paulo Francis, uma resposta àquele estilo de gente que queria desrespeitar o que era brasileiro, o que era baiano, a contracultura, a cultura pop, todo um conjunto de coisas que um certo charme jornalístico, tipo Tom Wolf, detestava e agredia." (Caetano Veloso. Livro Sobre as letras. Companhia das Letras, 2003).