Sampa (Caetano Veloso)

Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas

Ainda não havia para mim Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João

Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos Mutantes

E foste um difícil começo
Afasta o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso

Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva

Panaméricas de Áfricas utópicas, túmulo do samba
Mais possível novo quilombo de Zumbi
E os Novos Baianos passeiam na tua garoa
E novos baianos te podem curtir numa boa

© 1978 Ed. Gapa / Warner Chappell - Álbum Muito - Dentro da Estrela Azulada - Caetano Veloso. 

Comentário do autor: "Sampa é cheia de referências. É um samba normal na verdade, mas pra mim, que sei, é cheio de, como se diz, private jokes, porque pra quem sabe, tem referências a Paulo Vanzolini e Isaurinha Garcia logo na letra e na melodia, tem referência a Teatro Oficina de Zé Celso e Teatro de Arena, Augusto Boal, Jorge Mautner, José Agripino de Paula, poesia concreta, irmãos Campos, pelo menos essas. Os Mutantes, a Rita Lee, todo mundo homenageado porque foi o meu contato com São Paulo. São Paulo é uma cidade fascinante." (Caetano Veloso para a Folha de São Paulo, 1978).

“Havia, no meu caso, uma questão de classe: eu andava num ambiente de classe média para baixo, então havia essa deselegância. Eu não conhecia aqueles paulistas que consideram os outros como uma classe muito inferior, por terem mais dinheiro e mais viagens ao exterior. Cheguei com a Bethânia, e a cidade nos pareceu feia, não parecia grande… nos pareceu provinciana, com aqueles cartazes de cinema de mau gosto. Tinha algo de cidade do interior. Hoje a paulistana já é pop, é Daslu, é São Paulo Fashion Week, e as meninas de São Paulo hoje são elegantes. Não eram!” (Caetano Veloso para a Folha de S.Paulo, 2004).

"Sampa eu também acho uma transa de amor muito forte. Você vê que não existem muitas expressões de amor à cidade de São Paulo como a que há nessa música. E foi tudo casual, também você sabe, eu estava fazendo um programa de televisão e me pediram um depoimento sobre São Paulo e eu fiz, pensando em tudo o que era São Paulo pra mim, e saiu uma canção joia, mesmo. Então eu adoro o disco, ele é cheio dessas coisas. Acho que amor, mesmo, é o tema dele. Mas é um disco inteiramente sem uma ideia anterior, porque na verdade ele nasceu daquele show do Teatro Clara Nunes, no início do ano, e aquele show não tinha nenhuma ideia preestabelecida. Foi uma coisa muito solta. Nesse sentido ele é muito qualquer coisa. Mas é lindo." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 1978).

“Eu senti em São Paulo uma energia criativa, uma coragem de experimentar e uma inocência diante das experimentações que no Rio não havia, então eu fiquei apaixonado por São Paulo. "Sampa" para mim é um hino. É muito importante. Sempre cantei como um hino de São Paulo.” (Caetano Veloso em post nas redes sociais, 2023).

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