Showmício (15/08/2010)
Perguntar não ofende: por que foi mesmo que se proibiram os showmícios? Concordo com quem diz que, seja qual for a razão, é melhor assim: que as manifestações públicas de candidatos se restrinjam cada vez mais à exposição de ideias e programas. Mas se rolam bilhões para marqueteiros, gráficas, maquiadores, cabelereiros, cirurgiões plásticos e diretores de cinema (sem contar o que ganham, via isenção fiscal, as rádios e TVs com os horários eleitorais "gratuitos"), a gente se pergunta quantos sanfoneiros estão perdendo oportunidade de levar algum. Falei em sanfoneiros porque me lembrei de Luiz Gonzaga. Ele sempre fez campanhas eleitorais a soldo. Eu cantei de graça em palanque de Waldir Pires. (Terei cantado no comício de Lula na Apoteose, onde fui em 2002?) Cantaria agora alegremente num de Marina. Li a lei que proíbe músicos nesses eventos, mas ela não explica por que Maria Gadú cantando num comício seria algo como a oferta de brindes (que, é claro, beira a compra de votos). Cartas para a redação.
Li coisas difíceis no projeto de lei do direito autoral que o MinC expôs para consulta pública. Por exemplo, a menção à defesa do consumidor no parágrafo único do primeiro artigo. Sandra de Sá me chamou a atenção. Ali fala-se logo em "promoção do desenvolvimento nacional", o que já parece demasiado abrangente para abrir conversa sobre direitos de autor. Mas pôr no texto da lei que protege esses direitos que eles devem estar em "harmonia com a defesa do consumidor" assusta. Se não gostar do filme o espectador pode cobrar o dinheiro de volta? Não entendi. Pior ainda é o artigo que diz que "o presidente da República poderá conceder licença não voluntária" para publicação de obras literárias, artísticas ou científicas quando, por exemplo, o autor recusar, "de forma razoável", o licenciamento. O que é "de forma não razoável"?
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Uma parcela do legislativo americano quer reler a constituição para negar cidadania automática quem nasce em solo dos Estados Unidos. Caso tal campanha tenha sucesso, a atitude americana torna-se mais parecida com a da Alemanha, onde o que pesa é a ascendência, e não o lugar de nascimento. Seria uma lástima: uma das melhores características dos Estados Unidos desapareceria. O pretexto é o combate à imigração ilegal, na linha da lei proposta pelo governo do Arizona, que dá direito a policiais comuns de, em caso de suspeita, checarem se alguém está em dia com os papéis da imigração. Mas o que significa "suspeita" aqui? Uma cara encardida de latino-americano? Uma cor parda, uns cabelos meio crespos, uns olhos um tanto puxados? Relembro a ironia de Liv Sovik: quem compara os modos americano e brasileiro de lidar com o assunto "raça" e acha o brasileiro menos mau tem razão pois este é mesmo melhor... para os brancos. Rebato com o seguinte. Depois de décadas de cotas, aeromoças pretas e Barack Obama, os Estados Unidos têm um em cada nove jovens pretos na prisão (no total - já um número escandaloso - há um americano em cada cem atrás das grades). Num país tão rico, com tão melhor distribuição de renda do que o nosso, o que será que faz com que a polícia encontre razões para prender e manter presos um em cada nove homens negros? Seguramente não é o mito da democracia racial nem o elogio da mestiçagem. Se é tão fácil ver que um hispânico é hispânico e, portanto, pressupô-lo suspeito, imagine um preto. Com todo meu amor pelo ativismo de MV Bill, prevalece em mim a observação, feita na letra de "Rock'in'Raul", de que precisamos estar atentos "à vontade feladaputa de ser americano". Atentos, não hostis: é notório que, no caso dos Estados Unidos - como no caso do rock nos anos 60 e da axé music a partir dos 80 -, frequentemente encontro razão para aplicar a máxima de Nietzsche "É preciso defender os fortes contra os fracos" - uma exortação suspeita em seu darwinismo transporto para a esfera social, mas bem em sua poesia de enfrentar o ressentimento, o qual, como se sabe, produz arranjos sociais despóticos, cruéis e sem o mínimo compromisso com a autolimitação.
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Um dia um político que hoje tem cargo alto me perguntou por que me mostro tão crítico da esquerda. Comecei respondendo que a esquerda reagiu mal ao Tropicalismo. Mas a resposta a que não tive tempo de chegar então era a constatação de que essa descrição que dei acima dos Estados nascidos do ressentimento é, infelizmente, acurada. Não quero nem imaginar leis que reforcem a presença do Executivo em nossa vida sendo aprovadas às pressas por um grupo que pensa que estará sempre lá.
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O texto de Benjamin Moser sobre Gilberto Freyre na "Folha" era do cacete. A menção desabrida à bajulação de Freyre a Salazar já me soa saudabilíssima. Mas a caracterização de certos trechos de "Casa grande e senzala" como mais pornográficos do que sociológicos é ainda mais contundente. Na verdade, ninguém escreveu de modo tão desabusado contra o que há de criticável em Freyre do que Moser. Esse frescor se deve à sua juventude e a ele ter caído de paraquedas no tema. Assim, só ele comparou Freyre a Jefferson, o principal fundador da democracia americana. É o que há décadas digo a meus amigos: o mito da democracia racial não é mais "mito" do que o da democracia tout-court. Como diz Antonio Cícero, são mitos propulsores. Ou assim é que deveríamos interpretá-los.
Caetano Veloso.
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