Terra (Caetano Veloso)

Quando eu me encontrava preso
Na cela de uma cadeia
Foi que eu vi pela primeira vez
As tais fotografias
Em que apareces inteira
Porém lá não estavas nua
E sim, coberta de nuvens

Terra, Terra
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

Ninguém supõe a morena
Dentro da estrela azulada
Na vertigem do cinema
Mando um abraço pra ti
Pequenina
Como se eu fosse o saudoso poeta
E fosses à Paraíba

Terra, Terra
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

Eu estou apaixonado
Por uma menina, terra
Signo de elemento terra
Do mar se diz: Terra à vista
Terra para o pé, firmeza
Terra para a mão, carícia
Outros astros lhe são guia

Terra, Terra
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

Eu sou um leão de fogo
Sem ti me consumiria
A mim mesmo eternamente
E de nada valeria
Acontecer de eu ser gente
E gente é outra alegria
Diferente das estrelas

Terra, Terra
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

De onde nem tempo, nem espaço
Que a força mande coragem
Pra gente te dar carinho
Durante toda a viagem
Que realizas no nada
Através do qual carregas
O nome da tua carne

Terra, Terra
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

Nas sacadas dos sobrados
Da velha São Salvador
Há lembranças de donzelas
Do tempo do Imperador
Tudo, tudo na Bahia
Faz a gente querer bem
A Bahia tem um jeito

Terra, Terra
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

© 1978 Ed. Gapa / Saturno - Álbum Muito - Dentro da Estrela Azulada - Caetano Veloso. 

Comentário do autor: "Tem coisas nesse disco, conquistadas nessa gravação, que são as que mais me fazem a cabeça. Terra, por exemplo. Talvez seja uma das minhas melhores canções, e, num determinado sentido, é a minha melhor gravação, porque aconteceu no estúdio uma coisa de sentir junto... Bom, foi tudo gravado direto, tocado e cantado direto e saiu daquela maneira. A gente sentiu a emoção e, quando a gente foi ouvir, viu que havia passado para a gravação. Não teve playback, não teve botar voz depois, não teve emenda, todo mundo tocando junto e saiu daquela maneira. Tem silêncios, uma hora todo mundo pára, fica só o violão, depois todo mundo entra... e a gente sem se ver porque fica cada um num quadradinho isolado dentro do estúdio. Sabe aquele filme Guerra nas Estrelas? Quando eu vejo filmes que tem espaço... 2001, por exemplo, que eu nunca mais revi e acho lindo... mas quando eu vejo aquele espaço enorme nos filmes me dá vertigem. Se eu deitar assim e olhar o céu estrelado num lugar que eu não vejo mais nada, eu sinto que eu posso desprender da Terra e voltar. Já conversei com outras pessoas e elas também sentem isso. Eu sinto muito forte essa vertigem, e me dá uma angústia terrível. E no Guerra nas Estrelas me deu, um pouco, mas o filme é mais leve. E esse filme tem uma coisa: o planeta Terra não é nem citado, nem aparece, parece que não existe, é uma coisa bem longe da Terra. Então eu senti essa impressão de saudade. Eu me lembro logo da primeira ou segunda semana que eu estava na cadeia e o pessoal me levou revistas que tinham as primeiras fotografias da Terra, tiradas de fora. E uma era uma coisa maravilhosa, tinha a Terra inteira. Eu esperava ver os continentes, mas era tudo coberto de nuvens. Tudo isso, depois que eu vi o filme, me deu uma impressão muito grande de que havia uma tensão poética... e na época eu também achei. Eu pensava: "Como é que eu estou aqui, num espaço tão limitado que mal dá pra eu me mexer e ao mesmo tempo eu estou vendo uma foto da Terra toda, tirada de um espaço tão ilimitado"... achei que tinha uma tensão poética nesse lance e me lembrei disso, tanto que comecei a música já citando essa coisa. É uma música confessional, de explicação. Eu comecei a escrever essa música fazendo a letra, primeiro, o que é uma coisa muito rara, ultimamente, porque muito raramente eu faço letra antes da música: sai junto ou eu faço a música antes, quase todas. Essa letra eu fiz antes, e era diferente da que veio a ser a letra da música, mas a ideia básica era a mesma. Ela era mais nordestina, mais bem "escrita", entre aspas, mais João Cabral de Mello Neto. Depois que eu botei música ficou mais desarrumada, e eu achei mais bonito, mais a ideia mesmo do que eu queria dizer." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 1978).

"No ano passado, me disseram: você já viu como tem tanta música falando em coração? Coração Alado, Coração Bobo, Rasga Coração, Coração Explode? Quanto aos as-tela, ainda não tinha pensado. Tenho vertigem. Se o céu está multo limpo, quando eu olho pinta uma angústia. Quando vi aquele flme, 2001, em Lisboa, fiquei com vertigem dentro do cinema. Na minha música, Terra, falo disso. Gosto muito daqui, ficar aqui, nessa dimensão humana.” (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1981).

"Houve uma época em que eu li muito João Cabral de Melo Neto, principalmente aqueles poemas que eram em versos de sete sílabas. É uma coisa bem nordestina. E eu tenho uma facilidade muito grande para escrever desse jeito. (...) Foi o que eu fiz com a letra de Terra: escrevi para anotar a ideia. Fiz um "monstro", parecia João Cabral. Eu tinha deixado o papel com anotações em Salvador e, quando fiquei no Rio cantando a música, ficou outra coisa. Fiz primeiro esse "monstro" de letra. E depois fiz a música, lembrando a letra. Ao fim de tudo, ficou do jeito que foi gravado no disco." (Caetano Veloso em entrevista a Geneton Moras Neto, s/d). 

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