Trilhos Urbanos (Caetano Veloso)
O melhor o tempo esconde
Longe muito longe
Mas bem dentro aqui
Quando o bonde dava a volta ali
No cais de Araújo Pinho
Tamarindeirinho
Nunca me esqueci
Onde o imperador fez xixi
Cana doce Santo Amaro
Gosto muito raro
Trago em mim por ti
E uma estrela sempre a luzir
Bonde da Trilhos Urbanos
Vão passando os anos
E eu não te perdi
Meu trabalho é te traduzir
Rua da Matriz ao Conde
No trole ou no bonde
Tudo é bom de ver
São Popó do Maculelê
Mas aquela curva aberta
Aquela coisa certa
Não dá pra entender
O Apolo e o Rio Subaé
Pena de pavão de Krishna
Maravilha vixe Maria mãe de Deus
Será que esses olhos são meus?
Cinema transcendental
Trilhos Urbanos, Gal
Cantando o Balancê
Como eu sei lembrar de você
© 1979 Ed. Gapa / Warner Chappell - Álbum Cinema Transcendental - Caetano Veloso.
Comentário do autor: "Santo Amaro da Purificação é quase na foz do rio Subaé, tanto que lá é comum que se diga "lá em cima, lá embaixo", ou "fulano mora lá em cima, mora lá embaixo", embora a região seja plana, pois a referência mais importante é o rio, de modo que as coisas ficam rio acima ou rio abaixo. O cais do Araújo Pinho de que fala a canção era um cais de rio que ficava mais próximo do mar, mas havia outros, todos importantes, pois eram atracadouros de grandes saveiros que traziam mercadorias, sobretudo cerâmica de Nazaré das Farinhas, ou passageiros. O rio era navegável por saveiros consideráveis, que vinham até dentro da cidade, no meio mesmo da cidade. Em Capitães da areia, de Jorge Amado, Pedro Bala pega um saveiro e vai sozinho para Santo Amaro, vem até o meio da cidade e fica no saveiro olhando as estrelas. O Jorge Amado escreveu isso em 1937, mas eu via esses saveiros chegarem quando era adolescente, com uns dezessete anos. O cais que recebia as cerâmicas de Nazaré ficava defronte do Clube Irapuru, onde havia funcionado o ginásio de Santo Amaro, um ginásio privado, antes do estadual ser inaugurado. Os saveiros atracavam junto da ponte sobre o rio Subaé, no local em que atualmente se chega quando se vem pela estrada de rodagem, onde também fica a estação de trem. Mais para baixo, passava o bonde, que era puxado a burro. Por isso a canção fala de Trilhos Urbanos, porque era esse o nome da companhia. Esses bondes eu usei até os dezenove anos, mais ou menos. Noutras cidades maiores, aquilo era uma coisa do século XIX, mas permaneceu em Santo Amaro, pois eram lucrativos e atendiam bem à população; não foram eletrificados e se mantiveram até meados dos anos 60. Santo Amaro também era ligada a Salvador por uma linha de navios, porque o rio Subaé abre num braço de mar já na ponta da cidade, e o bonde ia até o atracadouro do navio, o chamado Porto do Conde. O bonde era a única condução que levava quem chegava de navio ao centro da cidade. Entre uma coisa e outra havia uma usina de álcool, tirado da cana-de-açúcar dali. Em volta não existiam casas nem chão onde construir, pois era um manguezal, atravessado apenas pelos trilhos do bonde. O Porto do Conde, que era de cimento, deve estar lá, provavelmente em ruínas, porque não é usado há muitos anos. "Trilhos Urbanos" é sobre essas viagens de bonde. A letra também faz referência a dois tamarindeiros que ficavam na beira do rio, no cais de Araújo Pinho, que morreram ou foram derrubados, e à visita que o imperador d. Pedro II fez à cidade (a rua lá de baixo, que ele certamente percorreu, passou a se chamar Rua do Imperador). Foi uma visita oficial a Santo Amaro, a primeira cidade a exigir, por meio de sua Câmara de Vereadores, a independência do Brasil, e Cachoeira, outra cidade heroica da independência. Em frente à casa de Araújo Pinho, que era a maior de todas, pois ele era o sujeito mais rico da cidade (a casa está lá, em ruínas, porque o Patrimônio não a salvou, nem a cidade a salvou), havia dois tamarindeiros. O que se diz, e se consolidou como um folclore, é que os cavalos do imperador ficaram amarrados ali, e mais, que ele saltou e fez xixi naquele lugar!
Há também a menção a Gal, por causa de um show dela que, no Rio, foi considerado o máximo. Chamava-se Gal Tropical. Eu e Dedé fomos ver. E não gostamos. Isso foi um problema para nós dois, porque a imprensa colocava o espetáculo nas alturas, todo mundo adorava, todos os nossos amigos; eu me lembro que Guilherme, que era o diretor, estava orgulhoso; lembro também que Regina Casé achava que o show era o máximo, dizia que era a coisa mais linda do mundo, e todo mundo achava isso. E eu e Dedé não gostamos, achamos tudo posado, uma coisa falsa, e o jeito de cantar muito pré-marcado. Mas, no final, repentinamente, tinha uma verdadeira epifania. Gal cantava "Balancê"! Mudava a roupa, vinham umas fitas coloridas, era uma coisa! Eu fiquei muito emocionado. E nós estávamos tão fragilizados por não termos gostado antes, que quando vimos aquele número, o "Balancê", a escolha da música, o jeito que ela cantava, aquelas fitas coloridas, eu e Dedé choramos. Eu chorei tanto de emoção, mais de uma hora seguida, que não conseguia falar com Gal depois. E fiquei com aquilo na cabeça. Tinha sido quase que uma experiência mística. Daí eu falar disso na canção. A canção é isso: Santo Amaro, o cais, a "pena de pavão de Krishna", "vixe Maria", Nossa Senhora da Purificação, Gal cantando "Balancê", o bonde passando, tudo num momento só, atemporal, como num "cinema transcendental", como se fosse uma experiência mística." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003).