Tropicália (Caetano Veloso)

Sobre a cabeça os aviões
Sob os meus pés, os caminhões
Aponta contra os chapadões, meu nariz

Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento
No planalto central do país

Viva a bossa, sa, sa
Viva a palhoça, ça, ça, ça, ça

O monumento é de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde atrás da verde mata
O luar do sertão

O monumento não tem porta
A entrada é uma rua antiga,
Estreita e torta
E no joelho uma criança sorridente,
Feia e morta,
Estende a mão

Viva a mata, ta, ta
Viva a mulata, ta, ta, ta, ta

No pátio interno há uma piscina
Com água azul de Amaralina
Coqueiro, brisa e fala nordestina

E faróis
Na mão direita tem uma roseira
Autenticando eterna primavera
E no jardim os urubus passeiam
A tarde inteira entre os girassóis

Viva Maria, ia, ia
Viva a Bahia, ia, ia, ia, ia

No pulso esquerdo o bang-bang
Em suas veias corre muito pouco sangue
Mas seu coração
Balança a um samba de tamborim

Emite acordes dissonantes
Pelos cinco mil alto-falantes
Senhoras e senhores
Ele pões os olhos grandes sobre mim

Viva Iracema, ma, ma
Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma

Domingo é o fino-da-bossa
Segunda-feira está na fossa
Terça-feira vai à roça

Porém, o monumento
É bem moderno
Não disse nada do modelo
Do meu terno
Que tudo mais vá pro inferno, meu bem
Que tudo mais vá pro inferno, meu bem

Viva a banda, da, da
Carmen Miranda, da, da, da da

© 1968 Ed. Warner Chappell - Álbum Caetano Veloso - Caetano Veloso. 

Comentário do autor: "As outras faixas desse disco, que eu levava em frente com ideias entusiasmadas e resultados depressivos, eram todas de composições novas. Uma delas tinha me levado ao auge da excitação no momento em que a concebi. Pensando num velho samba de Noel Rosa chamado “Coisas nossas", que enumerava cenas, personagens típicos e características culturais da vida brasileira, e os emoldurava com o refrão “O samba, a prontidão e outras bossas/ São nossas coisas/ São coisas nossas” (depois de abrir magnificamente com a linha “Queria ser pandeiro pra sentir o dia inteiro a sua mão na minha pele a batucar”), imaginei uma canção que tivesse temática e estrutura semelhantes, só que, como no caso de "Alegria , alegria" em relação a "Clever boy samba", não ficasse no tom simplesmente satírico e valesse por um retrato em movimento do Brasil de então. Com a mente numa velocidade estonteante, lembrei que Carmen Miranda rima com "A banda" (e eu já vinha fazia muito tempo pensando em bradar o nome ou brandir a imagem de Carmen Miranda), e imaginei colocar lado a lado imagens, ideias e entidades reveladoras da tragicomédia Brasil, da aventura a um tempo frustra e reluzente de ser brasileiro. A palavra bossa, que já estava no samba de Noel (anos 30), se impunha, naturalmente (era claro para mim que ela estaria, como em “Coisas nossas", no refrão da nova música), e sua rima com palhoça punha, mais do que a bossa nova, a TV do Fino da Bossa de Elis em confronto com uma população que mal deixava de ser rural. O Carnaval, o próprio movimento tropicalista (que então ainda não tinha esse ou qualquer outro nome) , a miséria e a opressão, a Jovem Guarda de Roberto Carlos, tudo teria lugar ali - as palavras encontravam rimas; as ideias, contrastes e analogias; as imagens, espelhos, lentes e ângulos insuspeitados. Mas eu não queria que a nova canção fosse, como "Coisas nossas”, um mero inventário. Era preciso que um daqueles elementos — ou um outro em que não tinha ainda pensado - impusesse uma estrutura ao texto a ser cantado, de modo a manter um alto nível de tensão entre as abordagens que se sucederiam numa lista monstruosa. A ideia de Brasília fez meu coração disparar por provar-se imediatamente eficaz nesse sentido. Brasília, a capital-monumento, o sonho mágico transformado em experimento moderno quase desde o princípio, o centro do poder abominável dos ditadores militares. Decidi-me: Brasília, sem ser nomeada, seria o centro da canção-monumento aberrante que eu ergueria à nossa dor, à nossa delícia e ao nosso ridículo.

Bem, pelo menos era assim que eu sentia as coisas no paroxismo da inspiração. A canção real que consegui fazer me entusiasma muito menos do que a imagem difusa que eu fazia dela quando ela era apenas uma possibilidade. Mas ela exerceu forte impacto no ambiente de música popular e em muitas cabeças interessantes do Brasil e rendeu estudos acadêmicos em que foi chamada repetidas vezes de “alegórica” . E conheceu considerável sucesso popular.

O arranjo dessa canção ficou a cargo de Júlio Medaglia. Eu tinha distribuído o repertório do disco entre os três maestros da "música nova” de São Paulo que se aproximaram de nós: Medaglia , Damiano Cozzela e Sandino Hohagen. Rogério Duprat - na verdade o mais interessante deles - chegara um pouco depois e, a partir de “Domingo no parque”, tinha ficado mais ligado a Gil. No dia da gravação da base orquestral dessa música que, apesar de ser para mim a mais representativa, era a única que não tinha título, o baterista Dirceu, que nada sabia sobre o que tratava a letra que só seria gravada depois, ao ouvir a introdução em que sons percussivos, cantos de pássaros e intervenções do naipe de metais se superpunham, lembrou-se da carta de Pero Vaz de Caminha descrevendo a paisagem brasileira no momento do descobrimento. A gravação que foi aproveitada contém o discurso que Dirceu improvisou de pura gozação, sem imaginar que já se estava gravando, e muito menos quão adequada era sua falação ao tema tratado na letra. “Quando Pero Vaz de Caminha descobriu que as terras brasileiras eram férteis e verdejantes, escreveu uma carta ao rei: tudo o que nela se planta, tudo cresce e floresce, e”, numa referência ao técnico de som Rogério Gaos que comandava a mesa de gravação, “o Gaos da época gravou!”, ouve-se Dirceu dizer antes que eu entre com os primeiros versos instauradores do panorama em que se desenrolará a construção da visão algo cubista: 

Sobre a cabeça os aviões
Sob os meus pés os caminhões
Aponta contra os chapadões meu nariz
Eu organizo o movimento
Eu oriento o Carnaval
Eu inauguro o monumento no planalto central do país.

A canção, longa, depois de passar pela imagem de uma “criança sorridente, feia e morta” que “estende a mão” de sobre os joelhos do “monumento”, por uma “piscina com água azul de Amaralina" e pelos “cinco mil alto-falantes” que “emitem acordes dissonantes” (sempre entrecortada por um refrão musicalmente fixo mas de letra variável, dando vivas a pares de rima primária e contigüidade desconcertante, como “Viva a bossa sa-sa/ Viva a palhoçaça-ça-ça-ça”, “Viva Maria iá-iá/ Viva a Bahia iá-iá-iá-iá”, “Viva Iracema ma-ma/ Viva Ipanema ma-ma-ma-ma"), termina por arrematar o grito de Roberto Carlos “que tudo o mais vá pro inferno” com um "Viva a Banda da-da/ Carmen Miranda da-da da-da!”. Claro que a frase mais famosa do Rei Roberto, seguida da Banda de Chico e do nome de Carmen Miranda (cuja última sílaba repetida evocava o movimento dadá e, para mim, misturava seu nome ao de Dadá, a famosa companheira do cangaceiro Corisco, estes dois últimos personagens reais e figuras centrais de Deus e o Diabo na Terra do Sol), dava, de forma elíptica mas imediatamente perceptível por qualquer brasileiro que ouvisse canções (nunca foram poucos), uma reestudada geral na tradição e no significado da música popular brasileira. Mas cada refrão tinha sua constelação de sugestões ou referências. Além da “bossa" noelina e nova e elisreginianamente televisiva colada à “palhoça”, temos o nome do filme Viva Maria, de Louis Malle (Brigitte Bardot era uma presença feminina muito mais constante em minha mente do que a de Marilyn, como já disse), um filme sobre mulheres e revolucionários na América Latina, seguido de “iá-iá”, que é o modo como os negros da Bahia (que é a palavra que se segue no refrão) sempre chamaram suas patroas ou donas, assim como toda mulher que lhes fosse superior, uma vez que  é "mãe" em ioruba; depois o par “Iracema” (um anagrama de América, nome da índia que é a personagem central e título do belo romance oitocentista de José de Alencar) e “Ipanema" (palavra tupi que quer dizer “água ruim”, nome tornado mundialmente famoso por causa da “Garota de Ipanema”, de Jobim e Vinicius de Moraes) aproxima as duas praias, uma do Rio e a outra do Ceará, e as duas figuras femininas, uma do século xix, outra do século xx, uma índia, outra branca, uma dando nome a uma praia (a praia de Iracema, em Fortaleza, foi assim batizada em homenagem à personagem de Alencar , outra tomando de uma praia seu nome (a garota de Jobim e Moraes é uma homenagem deles a Ipanema). "Viva a mata ta-ta/ Viva a mulata ta-ta-ta-ta" é o menos polissêmico dos refrões, mas a polissemia dos outros não é o que justifica sua existência e posicionamento no corpo da canção. Observá-la é apenas um ato de curioso detalhismo a que me dou o direito, por entender que pode ser agradável para quem me leia descobrir algumas das causas das emoções ou sensações que a canção porventura tenha desencadeado. A "mata" e a "mulata", de qualquer modo, são duas entidades múltiplas e, posto que óbvias, misteriosas.

Seria necessária muita paciência (sobretudo do leitor) para estender esse tipo de mirada às estrofes, mais longas e não menos cheias de sugestões. Basta que se diga por agora que essa canção sem nome justificou para mim a existência do disco, do movimento e de minha considerável dedicação à profissão que ainda me parecia provisória: era o mais perto que eu pude chegar do que me foi sugerido por Terra em transe." (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997). 

“O título surgiu porque o Luiz Carlos Barreto tinha visto uma exposição e achou que minha música tinha a ver com uma obra de Hélio Oiticica, insistiu muito, então eu topei e o pessoal da produção gostou. Eu acabei conhecendo o Oiticica, ele aprovou tudo que a gente estava fazendo e aí ficou o título, que virou apelido para tudo aquilo que se chamou de movimento”. (Depoimento para a Coleção Caetano Veloso 70 anos, 2012).

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