Um Comunista (Caetano Veloso)

Um mulato baiano
Muito alto e mulato
Filho de um italiano
E de uma preta haussá
Foi aprendendo a ler
Olhando mundo à volta
E prestando atenção
No que não estava à vista:
Assim nasce um comunista.
Um mulato baiano
Que morreu em São Paulo
Baleado por homens
Do poder militar
Nas feições que ganhou
Em solo americano
A dita guerra fria
Roma, França e Bahia.

Os comunistas guardavam o sonho
Os comunistas, os comunistas.

O mulato baiano
O minimanual
Do guerrilheiro urbano
Que foi preso por Vargas
Depois por Magalhães
Por fim, pelos milicos
Sempre foi perseguido
Nas minúcias das pistas
Como são os comunistas.
Não que os seus inimigos
Estivessem lutando
Contra as nações-terror
Que o comunismo urdia
Mas por vãos interesses
De poder e dinheiro
Quase sempre por menos
Quase nunca por mais.

Os comunistas guardavam o sonho
Os comunistas, os comunistas.

O baiano morreu
Eu estava no exílio
E mandei um recado
Que eu que tinha morrido
E que ele estava vivo
Mas ninguém entendia.
Vida sem utopia
Não entendo que exista:
Assim fala um comunista.
Porém a raça humana
Segue trágica sempre
Indecodificável
Tédio, horror, maravilha.
Ó mulato baiano
O samba o reverencia
Muito embora não creia
Em violência e guerrilha
(Tédio, horror e maravilha).

Calçadões encardidos
Multidões apodrecem
Há um abismo entre homens
E homens, o horror!
Quem e como fará
Com que a terra se acenda
E desate seus nós
Discutindo-se Clara
Iemanjá, Maria, Iara
Iansã, Cadija, Sara.
O mulato baiano
Já não obedecia
As ordens de interesse
Que vinham de Moscou
Era luta romântica
Era luz e era treva
Feita de maravilha
De tédio e de horror

Os comunistas guardavam o sonho
Os comunistas, os comunistas.

© 2012 Uns Produções (Warner Chappell) - Álbum Abraçaço - Caetano Veloso. 

Comentário do autor"É a música mais longa do disco. Eu gosto desse refrão porque ele parece um três sobre uma base de quatro tempos. Parece canção francesa sobre política, tem muito da tradicional canção de protesto, essa longura, esse tom narrativo e explicativo, embora seja mais complexa do que isso. E eu gosto que ela coincida com a chegada do livro, da biografia [escrita pelo jornalista Mário Magalhães], com o filme da Isa [Grinspum] e com a canção dos Racionais, que foi feita para o filme da Isa. Eu não fiz por causa de nada disso, eu fiz também. E ela contrasta muito com a música dos Racionais. E é interessante, porque ela é bem a canção de protesto feita por artistas da classe média, tal como Chico Buarque comparou quando disse que a canção está desaparecendo e que o rap é uma manifestação... Aliás, o Chico e o José Ramos Tinhorão coincidiram em dizer que o rap era a verdadeira canção de protesto, porque era dita por eles mesmos [as classes baixas], como dizia o Cacá Diegues a respeito dos filmes feitos pelos favelados sobre a favela. Diferentemente de uma referência aos desfavorecidos por parte de um artista da classe média, como era o caso na nossa geração, minha e de Chico. Então, nesse caso, eu volto àquela força da canção de protesto de classe média, mas é uma canção um pouco mais analítica, e também apresente umas imagens que balançam a cabeça do ouvinte.

O Jorge Amado sonhou sempre que se fizesse um monumento a Marighella em Salvador. Ele morreu com esse sonho. E é curioso, porque ele apoiava o Antonio Carlos Magalhães no fim da vida, e no entanto ele queria um monumento a Marighella em Salvador. Ele tinha muito orgulho do Marighella, que naturalmente conheceu pessoalmente, porque eram do mesmo partido (Partido Comunista Brasileiro). Só que o Marighella, no final, deixou a linha central do partido, como todo mundo sabe, e deixou de obedecer às ordens de Moscou. Aquilo, naquele ambiente romântico do tropicalismo, da contracultura, era muito atraente, era o que eu mais admirava em política. Eu gostava de marighella, e gosto até hoje. Nunca vi Marighella.

Eu tinha uma colega, Maria de Lourdes Mello Vellame, que foi guerrilheira junto com ele, era do Partido Comunista, saiu com ele pra luta armada, foi presa, muito torturada, causou uma impressão forte no Fleury, que era o torturador. Que ele, numa entrevista que eu tenho guardada, tenho uma fotografia das páginas na internet, ele se refere a ela como caso mais impressionante de resistência à tortura. Ela era minha amiga, era minha colega na Faculdade de Filosofia. Ela me pediu na época pra prestar apoio logístico à guerrilha de Marighella, e eu fiquei mais ou menos inclinado a talvez fazer isso, se me possível, se soubesse como, porque eu o admirava, mas eu temia, possivelmente não chegaria a fazer. Mas não sei, porque eu fui preso poucos meses depois, não por isso, porque eles me prenderam sem saber disso. Só se sabe disso hoje, que na altura só sabíamos disso a Lourdinha e eu. Só sabíamos os dois, a Dedé, minha mulher, teve uma altura em que ficou sabendo.

Nós estávamos em Londres, não fazia muito tempo que tínhamos chegado, ainda no primeiro ano, e chegou uma revista Manchete, ou Fatos e Fotos, uma revista da editora Bloch, foi um fotógrafo para nos fotografar no exílio. Ele nos fotografou, eu e Gil, em Londres, fez uma entrevista. A imprensa brasileira era muito limitada pela censura, não podia-se dizer que a gente estava exilado, apenas Caetano e Gil estão em Londres, etc. E tal. E a capa dessa revista era uma fotografia, eu e Gil, sorrindo, na frente do Big Ben, né, na ponte de Waterloo. E num boxe, assim, no alto da página, a foto de Mariguella morto, que era a notícia de Marighella morto. Então mandei um texto para o Pasquim, dizendo "A revista chegou e nós estamos na capa". E eu falava de minha tristeza e de Gil, dizendo assim: "nós estamos mortos. Ele está mais vivo do que nós". Nem uma só pessoa das que viviam no Brasil e eram minhas amigas e que se correspondiam comigo, nem aquelas que conheciam essas, nem depois quando voltei e mencionei, na cabeça de nenhuma pessoa passou. Eles morando aqui e tal não sentiram o impacto que era ter Gil e eu aparecendo na capa da revista depois de exilados, sorrindo, e o Mariguella morto. O texto todo era sobre isso, sobre a capa da revista: "na capa duma revista...". Você vê que, quando a gente está fora, a gente não pode imaginar como é a cabeça das pessoas que estão dentro, porque ninguém sacou. Eu recebi várias cartas de gente dizendo: você está deprimido porque está aí, não sei quê, e de fato estava, mas tinha escrito isso porque eu tinha visto uma capa em que eu e Gil estávamos sorrindo no exílio e o Marighella morto a tiros nas ruas de São Paulo, e eu gostava de Mariguella, então achei aquilo um negócio meio terrível, assim. Escrevi e ninguém entendeu. É uma parte totalmente pessoal que aparece na letra da canção, que se refere a esse fato." (Caetano Veloso para a Folha de S. Paulo, 2012).

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