A estrela nua (1985)

Gal só me surpreendeu uma vez: quando a conheci e a ouvi cantar. Foi uma surpresa tão grande e tão profunda que ainda hoje vivo sob o seu impacto. Na hora eu pensei: “A maior cantora do Brasil”. Daí em diante foi só acompanhar os modos com que essa constatação procurou se confirmar. Primeiro era a possibilidade de realização da cantora de bossa nova ideal, com a combinação exata de emissão e feeling que eu não encontrava em nenhuma outra (virtude ainda hoje intacta, a chuva de prata da sua voz cobrindo o país). Depois a realização do rockarnaval tropicalista que a tornou estrela. Para mim, sempre mais cantora que estrela, embora esse estrelato tenha sido quase sempre uma exteriorização do brilho da sua personalidade que antes só se revelava (e ocultava) no canto. Ouvi-la e, talvez principalmente, vê-la cantar "Força estranha" foi, para mim, tomar contato com um momento de integração equilibrada entre as três dimensões - pessoa, estrela, cantora. Vê-la cantar o “Balancê” foi entrar em relação direta com o mito: chorei quase duas horas seguidas depois de assistir ao show Gal tropical só por causa do “Balancê". Marina me alertou para o fato de que é perigoso manter uma fidelidade assim, obstinada, à luz que se vê numa pessoa, independentemente do que acontece com ela ou do que ela faz: nega-se-lhe o drama, todas as mudanças parecem ilusões de superfície, aprisiona-se a pessoa. De todo modo, creio que só eu compartilhei com Marina da opinião favorável ao show Fantasia, no meu entender o melhor espetáculo que Gal apresentou desde Fatal, com exceção talvez de Cantar, mas Cantar fui eu quem dirigiu... os números finais de Gal tropical eram lindos, mas o todo do show era muito estranho para mim. Fantasia nos pareceu (a mim e a Marina) forte, grande e sincero. Às vezes tenho certeza de que esse show teria sido um sucesso se tivesse sido lançado em São Paulo, onde o Tropical não pegou, como temi que o meu Velô talvez não começasse bem no Rio. Mas eu gostaria de que as pessoas pudessem ver Gal como eu vi no Fantasia. Estou absolutamente certo de que é um equívoco profundo e perigoso que assim não seja e muitas coisas não andarão bem enquanto isso não se der. Ali sim, eu a vi lindissimamente bem vestida e bem nua, no caminho certo e cantando bem. Não se trata de corresponder às subdesenvolvidas exigências brasileiras de que as cantoras sejam ao mesmo tempo manequins elegantes e pensadoras políticas (quem reparou na peruca loura da Ella Fitzgerald ou nas botinhas com strass de Sara Vaughan?). O fundamental é que a roupa se torne sagrada por quem a veste. Um corpo nu é uma mensagem complexa. Quando eu estava entrando na puberdade, eu era nudista, misturava meus desejos exibicionistas à ingênua idéia de que roupa é apenas uma repressão desnecessária, achava que não devíamos nos envergonhar do nosso corpo e não imaginava que o homem nunca é nu. Lembro do festival de rock da Ilha de Wight, milhares de pessoas nuas na praia: eu ficava excitado, mas não envergonhado ou escandalizado. Gal estava lá. Eu nem me lembro se ela tirou a roupa. Eu nunca namorei com ela. Uma vez tive uma pequena discussão com o jornalista Ruy Castro (terá sido mesmo esse?) por causa dessa mania atual de perguntar aos entrevistados se já treparam, se já brocharam etc. Foi na casa de Eduardo Mascarenhas e por causa da entrevista deste (ele tinha se atrapalhado na resposta à pergunta sobre brochada). Acho uma tolice que as pessoas se sintam na obrigação de narrar suas intimidades. Pois bem, eu e Gal sempre brochamos todas as vezes que tentamos brincar de namorar. No início da nossa carreira, dividíamos a cama de casal de Guilherme Araújo em Sampa. Todas as noites eu tentava seduzi-la com um disco de Bob Dylan e papo-furado. Ela sempre resistiu e terminávamos as noites às gargalhadas. Acho que na época dos Doces Bárbaros, na Bahia, nós tentamos fingir que íamos namorar no hotel onde ela estava hospedada. Foi legal porque aí eu a vi nua como agora ela aparece em algumas dessas fotos bonitas e carinhosas que Marisa fez. Tomando banho. Gal é linda. Tem uma boca linda e é magnífico que por essa boca saia exatamente essa voz. Sempre a senti mulata e uma das coisas melhores de ela ter cortado agora os cabelos e tirado essas fotos nuas é a revelação de sua mulatice. São deslumbrantes sobretudo as poses onde a bunda aparece de perfil, bem negra e bem dura. Há muita alegria física e muita dignidade nesse corpo de mulher madura e menina. Eu não sou leitor (voyeur) dessas revistas de nus. Raramente olho, e sem muito interesse, essas publicações. Parece que eu não tenho tempo para isso - é como jogar baralho ou assistir a futebol pela TV. Me entedia. Um dia Regina Casé me pediu um conselho sobre se devia ou não liberar fotos suas para uma dessas revistas, e eu não soube dar. Gal também me perguntou, e eu disse: sou indiferente. Não me sinto, no entanto, indiferente diante de todas as fotos de mulher nua (ou homem nu) que eu vejo. No caso de Gal, especialmente, eu sinto mil emoções relacionadas com o encontro de extensões daquela qualidade essencial que um dia eu percebi na sua voz.

Caetano Veloso.

STATUS, Nº 127. FEVEREIRO DE 1985. Texto de apresentação do ensaio fotográfico A estrela nua. Fotos de Marisa Alvarez Lima.

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005.

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