A Ipanemia (1970)
A Ipanemia é uma doença fácil - Endepidêmica, vem em ondas como o mar, e como o mar, vem em ondas sem por isso deixar de estar sempre aí mesmo. Não creio que ela se restrinja a Ipanema. Muito pelo contrário: no meu entender, a Ipanemia (como tudo) nasceu na Bahia. O Rio apenas exporta para o exterior (São Paulo).
A Ipanemia é uma doença fóssil — O Pasquim, por exemplo, não tem modernidade para enfrentar o Nelson Rodrigues. A fossa é muito grande. A fossa é mais funda do que parece. Acredito que a Ipanemia seja anterior à alma lírica brasileira que tanto me interessa, a mim e ao Dr. Alceu, e ao Nelson Rodrigues. Eu, pessoalmente, adoro o Pasquim e Nelson Rodrigues e o Chico Buarque de Hollanda e o Caetano Veloso. O que não suporto é a capacidade que a turma tem de nos suportar, ou melhor: eu adoro o Pasquim e eu odeio o Pasquim e eu odeio mais a maneira como se ama o Caetano Veloso e mais ainda a maneira como o Pasquim odeia o Nelson Rodrigues e a maneira fácil com quê. E sem quê. Sem que nem por quê. E assim por diante até que eu adoro tudo em conjunto, caso contrário, eu daria um tiro na cabeça. De quem? — cabe a pergunta. A Ipanemia é uma espécie de “o-sistema-engloba-tudo" amadorístico. E Glauber é que está certo. O Zé Celso fala demais. E eu falo demais e o Rogério Sganzerla fala demais. E todo mundo se explica demais, e é uma merda. Mas talvez seja melhor: a gente se explica, se explica, se explica, e morre logo de Ipanemia e pronto. Quando a gente pensa que está lutando bravamente contra o vício de Ipanemia, a gente está se afundando cada vez mais nela. A Ipanemia é uma espécie de "o-sistema-engloba-tudo” amadorístico. Eu odeio esses brasileiros que vêm a Londres e falam mal do Pasquim. Porque essa vontade de falar mal exatamente do Pasquim é um sintoma da mesma doença congênita de que sofre o Pasquim. Tudo que não está além disso é a mesma porcaria. E eu não me sinto além de nada. Morrer não é ir para o além.
A Ipanemia é uma doença fútil — Portanto, eu agora quero falar da maneira mais clara possível. Quero falar de uma maneira lógica, de uma maneira à qual não estou habituado. Quero dizer que se eu falei que morri foi porque eu constatei a falência irremediável da imagem pública que eu mesmo escolhi aí no Brasil. Quando eu me congratulei com aqueles que me fizeram sofrer, eu estava querendo dizer que, dando motivo para crescer uma compaixão unânime por mim, que vira prêmios e homenagens e capas de revistas muito significativas, eles conseguiram realmente aniquilar o que poderia restar de vida no nosso trabalho. Exatamente uma capa de revista me fez ver isso de uma forma muito mais nítida. Cansei. Não dá pé explicar tudo direitinho, parece que a gente está mentindo. Eu não sei falar assim. Eu sou apenas um colaborador do Pasquim, um colaboracionista. Aliás, eu mesmo sou contra tudo que penso. Portanto, ninguém tome ao pé da letra nada do que eu digo. Nem ao pé da letra, nem de nenhuma outra forma. Ou melhor: tome de qualquer jeito, que vem dar no mesmo. Eu quero é me divertir como o Paulo Francis quando escreve. Eu quero é comer com coentro. Já morri que eu sou muito vivo. Além do mais, estou cansando de escrever e ainda vêm estas frases sem pé nem cabeça (como se as outras o tivessem). Enfim: eu gostaria de fazer um filme chamado Memórias do subdesenvolvimento.
Caetano Veloso.
O PASQUIM, 14 DE JANEIRO DE 1970.