A memória de Mãe Menininha (1992)

A memória de Mãe Menininha projeta-se para o futuro de um Brasil que há de merecer uma vida à altura dos deuses que vieram, pelo destino trágico do seu povo, habitar nossas florestas, nossas ruas, nossa língua e nossos sonhos. A exuberância dos deuses que vieram habitar nosso tempo.

Brasil. Quem poderia sequer começar a entender o que queremos, o que podemos, o que somos, sem sentir a presença doce e firme da ialorixá que cuidou dos santos e dos seus filhos no período cheio de sutilíssimas dificuldades da sinuosa transição para o reconhecimento do culto pela sociedade como um todo? A memória de Mãe Menininha é a memória do que há de mais profundo e mais denso em nossa formação cultural.

Para mim é também a lembrança pessoal de longas tardes de conversa. Desde o belo português que ela falava até a observação mítica do que se passava na televisão, tudo nessas conversas era uma lição de nobreza, dessa mistura de complexidade e refinamento que marca as comunicações superiores. Suas mãos eram as mãos de Oxum: delicadas, graciosas, seguras. Sua voz era como que preservada intacta desde a sua primeira juventude, falando ou cantando. No ouvinte, o encantamento era maior que o medo.

E ela sabia sugerir uma superação do medo. Que a memória de Mãe Menininha seja também para todos os brasileiros, daqui e de qualquer lugar do mundo, uma sugestão de superação do medo. Nunca a esqueceremos, nunca abandonaremos sua sabedoria.

É assim que gosto de pensar na entrada do Brasil no terceiro milênio.

É assim. É assim que gosto de pensar em Mãe Menininha: imorredoura, iluminando um povo que teve a sabedoria de se deixar conquistar por ela.

Caetano Veloso.

Escrito para o Memorial Mãe Menininha, Gantois (Bahia), 13 de agosto de 1992.

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005. 


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