Amálgama (31/07/2011)

Aders Breivik destaca o Brasil como prova de que a mistura de raças gera nações improdutivas. É a velha hipótese que tinha vigência dentro do próprio Brasil (e, claro, nunca foi descartada de todo — nem por todos), só sendo realmente abalada pela virada que representou “Casa grande e senzala”, digam o que disserem os neorracialistas. Gilberto Freire, “Gabriela, cravo e canela”, o “Amálgama” de Jorge Mautner e aquele hino à miscigenação que Aldir Blanc escreveu faz uns anos para a TV Globo parecem mais bonitos se confrontados com o criminoso norueguês que matou dezenas de jovens individualmente.

Por outro lado, acabo de ler que um tal Ricardo Coração de Leão (cujo nome verdadeiro é Paul Ray) foi citado pelo monstro de Oslo como sendo seu mentor. Ele nega. Mas confessa crer que o diagnóstico de que os muçulmanos querem dominar a Europa é correto. Ele lidera um grupo que se autodenomina Os Cavaleiros Templários. Consideram-se continuadores dos Templários medievais, que guerravam mouros e inventaram o sistema bancário. Uma facção criminosa do tráfico de drogas mexicano também reinvidica esse nome. Os Cavaleiros Templários, que, acusados de heresia, demonismo e homossexualismo, foram perseguidos na França e na Inglaterra, se tornaram, em Portugal, os Cavaleiros da Ordem de Cristo — e a cruz que era seu símbolo estava estampada nas velas das naus que vieram com Cabral dar em Porto Seguro.

Este mundo dá muitas voltas. Você pode ainda se filiar à Ordem dos Templários do Brasil. Basta buscar no Google e pagar R$ 40 de inscrição. Mas que é intrigante que o símbolo sob o qual um supremacista branco, o qual aponta o Brasil como o contraexemplo de tudo o que ele deseja, seja o mesmo sob o qual os navegadores portugueses atravessaram o Atlântico para colonizar esse grande pedaço de terra na América, lá isso é. O sentimento mais fundo que me surgiu ao me deparar com essa ligação de Breivik com os Templários foi um orgulho intenso de ter como irmã uma mulher que se chama Maria Bethânia, que tem uma voz única e que é uma mulata assararazada que tem a aparência de uma judia iemenita. É um tipo de beleza pelo qual tivemos que lutar desde dentro de casa. Essa é a minha marca de identidade. Minha oposição ao programa dos Breiviks é visceral — e está em marcha apertada. Tudo o que faço tem esse núcleo. Não me causa demasiado mal-estar que tenham dificuldades em me entender. Sei quem sou e o que sou. Dói e praz, é difícil, é singular — mas a única coisa que posso dizer é que é sempre assim. Fora disso não há nada.

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Duas mulheres russas dominaram minha mente nas últimas semanas. Uma era bem brasileira, Clarice. A outra era uma russa russa bem russa, moscovita e extraordinária poeta da concisão e das fórmulas incomuns. Marina era seu nome. Marina Tsvetaieva — e seu espantoso livro de anotações e cartas está nas livrarias em boa tradução de Aurora Bernardini. O título é “Vivendo sob o fogo”, e minha vontade é que todas as pessoas que conheço o leiam — e grande parte das que não conheço, também. Sobretudo as que querem ser poetas ou simplesmente gostam de poesia. Livros com seus poemas traduzidos para o português, não há muitos. Mas Augusto de Campos inclui poemas seus em “Poesia da recusa” — que pode ser encontrado nas livrarias — e Décio Pignatari lhe dedicou um livro inteiro — este, mais difícil de encontrar. Enquanto você não acha os poemas, pode ir lendo as cartas e anotações de “Vivendo sob o fogo”: isso já tem poesia de sobra.

Não faz muito tempo, mencionei uma nota tirada de um dos seus cadernos, uma nota de reflexão sobre sexo e gênero, que, de tão bem escrita, levou os editores deste caderno a suporem tratar-se de um poema e separarem seus parágrafos e frases por barras, como se fossem versos e estrofes. Repito aqui, pedindo que lhe deem a diagramação adequada, para que se possa ter contato com a clareza sintética do seu estilo e da sua personalidade:

“Amar apenas mulheres (para uma mulher) ou amar apenas homens (para um homem), excluindo de modo notório o habitual inverso — que horror!

Amar apenas mulheres (para um homem) ou amar apenas homens (para uma mulher), excluindo de modo notório o que é inabitual — que tédio!

E tudo junto — que miséria.

Aqui esta exclamação encontra realmente seu lugar: sejam semelhantes aos deuses!

Qualquer exclusão notória — um horror.”

E leiamos os curtos parágrafos como o que eles são. (Nunca há interferência da editoria nos meus textos aqui — exceto uma ou outra bem-vinda correção — mas esse equívoco revelador escondeu os dentes com que esse pequeno trecho de prosa vem mordendo o real desde 1921.)

Tsvetaieva viveu em Moscou, Praga, Paris e, finalmente se suicidou em seu país de nascimento. Ela também escreveu:

“Não me submeteria a nenhum tipo de violência organizada, em nome de quem quer que fosse ou sob qualquer bandeira.”

Estou agarrado a Clarice, Marina e Bethânia, três belezas difíceis, enquanto olho o mundo aleijado (“Por que este mundo?”) e deselegante que produz assassinos fanáticos.

Para começarmos a nos preparar para realizar a tarefa que o Brasil não pode mais esconder de si mesmo que tem pela frente, proponho-me a guiar meus eventuais leitores pelas ideias de Mangabeira Unger nas falas que ele gravou em casa e que podem ser vistas através do link bit.ly/robertounger no YouTube. Vejam, e domingo conversamos sobre o assunto.

Caetano Veloso.

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