BIM BOM (1999)

A leitura deste trabalho de Walter Garcia exerceu grande impacto sobre mim. E eu tenho todas as razões para supor que ela será igualmente importante para todas as pessoas que estudem a música popular do Brasil ou a pratiquem - sobretudo para aquelas que, estudando-a ou não, praticando-a ou não, tenham-lhe amor. O senso de proporção do autor se expõe de modo tão lúcido que suas descrições técnicas e conlusões interpretativas iluminam, superando-os, todos os esforços dos que o antecederam na tarefa de explicar-nos como e por que a arte de João Gilberto é o xis do problema. Pode-se mesmo dizer que a dissertação de Garcia tem virtudes joãogilbertianas: com brevidade, muito de tudo o que já se disse sobre João é reavaliado de modo a fazer mais sentido, ganhar em clareza, cada idéia encontrando seu lugar. O que põe tudo em outro nível e anuncia um futuro diferente para as discussões teóricas sobre o assunto.

Pode parecer despropositado usar palavras tão retumbantes sobre um texto que prima pela modéstia. Mas essa modéstia justamente equivale à emissão despretensiosa e à dicção despojada de João. Ela serve à elucidação do essencial na tradição crítica que forçosamente nasceria da revolução estética desencadeada por este último.

A própria escolha da peça a ser minuciosamente estudada (e que dá título ao trabalho) é significativa. "Bim bom" é uma canção-manifesto como “Desafinado" e "Samba de uma nota só", mas, diferentemente destas, nunca foi tomada por nenhum especialista como emblema da bossa nova. Parece que ela era demasiado simples, demasiado modesta. De fato, comparada às canções de Jobim, “Bim bom" parece uma brincadeira de criança. Por outro lado, ela é uma composição de João Gilberto e, na sua extrema singeleza, apresenta-se como um pretexto privilegiado para ele exercitar as mais sutis sutilezas de sua invenção. Sem o dizer explicitamente, o que Garcia faz é tomá-la como a mais radical das canções-manifesto do movimento, ressalvando que ela o é sem poder sê-lo, ou melhor, que a razão que faz com que ela o seja é a mesma que a impede de sê-lo: ela é um manifesto pessoal (muito pessoal) de João.

Para entender melhor o Chega de saudade, de Ruy Castro, o Balanço da bossa, de Augusto de Campos e Cia., os livros de Tinhorão, o Música Popular Brasileira, de Zuza Homem de Mello, e O cancionista, de Luiz Tatit; para avaliar o sentido do contraste entre os tropicalistas e Chico Buarque (e entre todos estes e O fino da bossa); enfim, para ouvir João com clareza, e, assim, poder julgar com precisão o legado musical e crítico de João (inclusive na medida em que ele permanece como o horizonte da nossa criação em música popular e na medida em que a música popular-comercial é um modo de expressão relevante como manifestação da cultura), é absolutamente urgente e imprescindível ler este estudo de Walter Garcia sobre a contradição sem conflitos de João Gilberto.

Aos leitores não familiarizados com a linguagem técnica musical, posso assegurar que é possível (e vale o esforço para) entender o essencial do que o autor quer dizer a respeito das inovações rítmicas de João. Eu próprio não sei ler partituras (nem mesmo adestrei-me em ler cifras com fluência) e nem por isso deixei de beneficiar-me enorme mente do que este trabalho tem a ensinar.

Caetano Veloso.

Prefácio ao livro de Walter Garcia, Bim bom, a contradição sem conflitos de João Gilberto, São Paulo, Paz e Terra, 1999.

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005.

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