Cinema, ator e diretor (1960)
Sinto decepcioná-los, mas aqui vai como uma notícia: não é o “ator", e sim o "diretor”, o importante num filme. O cinema é uma estética, é uma arte. E o diretor está para a obra de arte fílmica assim como o pintor está para o quadro. Os materiais de que dispõe um realizador cinematográfico são a câmera, o celulóide, os cenários, as coisas, os atores etc.; como são materiais à disposição d'um pintor a tela, os pincéis, as tintas. Pus propositadamente, os atores entre os "materiais" para frisar que dentre os estudiosos do cinema eles são considerados como simples objeto na mão do realizador. O que é mais um exagero usado como antídoto do "estrelismo" do que a realidade mesma. É inegável que o ator é um "instrumento” na mão do diretor, mas um instrumento "superior"! Nunca igual a um objeto. Porque dele o diretor tira emoções, expressões humanas. É verdade que um realizador pode conseguir milagres de interpretação de um "canastrão”, como por exemplo Fellini conseguiu de Amedeo Nazari em Le notti di Cabiria, mas jamais poderá qualquer realizador extrair de uma Sarita Montiel uma profundeza dramática e humana, uma quase genialidade como a da grande Giulietta Masina em La strada ou no referido Notti di Cabiria! Certo é que ela foi dirigida pelo mesmo Fellini que fez de Nazari um bom ator (o que nos levaria a julgar ser sua "genialidade” resultado apenas da boa direção); mas uma coisa é um diretor conseguir, com habilidade, que um péssimo ator pareça, aos olhos do público, estar representando bem; e outra é o ator compreender o desejo do realizador, entender e sentir a personagem que interpreta e compor uma atenção consciente, racional, inteligente, "construída pedacinho por pedacinho”, como foram as de Masina. Interpretação que eleva o ator a um ponto alto no valor total da obra. Mas mesmo nesses casos a importância do ator não atinge a importância do diretor, que é, sem dúvida, quem realiza o filme. É ele quem idealiza a personagem que o ator interpreta. O ator pode ser genial, se a personagem for mal elaborada e o diretor não sabe o que quer, sua interpretação será fraca. O autor de um filme é o diretor, assim como o autor de um livro é o escritor. É claro que estou falando dos verdadeiros realizadores de cinema. Pois não se pode dizer que a maioria dos diretores de Hollywood é de autores de filmes. Lá, em geral, a companhia produtora escolhe a história, entrega-a a um roteirista, escolhe o músico, seleciona os atores, e só então convida um diretor, que já nada terá que fazer a não ser dirigir os atores e fazer algumas modificações (dentro do exigido pelo que há na produtora e pelo que há de social ou político no país). Não, não me refiro a esses, mas a alguns de exceção em Hollywood, a muitos dos europeus e à maioria dos asiáticos (me refiro aos japoneses). Ninguém pode negar que é Fellini o autor de Estrela da vida, Boas-vidas, Cabiria etc.; como ninguém duvida que é Vittorio de Sica o autor de Ladrões de bicicletas ou de Humberto D. e Akira Kurosawa de Sete samurais, Fortaleza escondida ou Trono manchado de sangue. Os seus estilos narrativos e estéticos, os seus conceitos ideológicos estão em todas as suas obras.
O meu interesse é acender a curiosidade de alguns (seria pretensioso dizer de todos) sobre esta arte que é tão importante na formação da mentalidade do povo.
Sim, porque enquanto não se entender sua mensagem, enquanto não se reconhecer a imensa superioridade de Re né Clair sobre Rock Hudson, continuar-se-á a ser ludibriado por uma indústria de falsa felicidade ou por algumas propagandas nacionais.
Procurem sempre lembrar (se é que se interessam) que o importante é Billy Wilder, e não Marilyn Monroe; que o importante é J. B. Tanko, e não Ankito (embora, infelizmente, em sentido negativo).
Caetano Veloso.
O ARCHOTE, NO 4. SANTO AMARO, BAHIA, 4 DE DEZEMBRO DE 1960.
Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005.