Clarice Lispector (1992)

O meu primeiro contato com um texto de Clarice Lispector teve um enorme impacto sobre mim. Era o conto "A imitação da rosa" e eu ainda morava em Santo Amaro. Fiquei com medo. Senti muita alegria por encontrar um estilo novo, moderno — eu estava procurando ou esperando alguma coisa que eu ia chamar de "moderno"-, mas essa alegria estética (eu chegava mesmo a rir) era acompanhada da experiência de crescente intimidade com o mundo sensível que as palavras evocavam, insinuavam, deixavam dar-se. Uma jovem senhora voltava a enlouquecer à visão de um arranjo de rosas-meninas. E voltar a enlouquecer era uma desgraça para quem com tanta aplicação conseguira curar-se e reencontrar-se com sua felicidade cotidiana: mas era também - e sobretudo — um instante em que a mulher era irresistivelmente reconquistada pela graça, por uma grandeza que anulava os valores da rotina a que ela mal recomeçara a se apegar. De modo que quem lia o conto ia querendo agarrar-se com aquela mulher às nuances da normalidade e, ao mesmo tempo, entregar-se com ela à indizível luminosidade da loucura. Era uma epifania típica dos contos de Clarice, que eu iria reencontrar inúmeras vezes nos anos que se seguiram àquele 1959. Agradeço a Rodrigo, meu irmão, sempre tão bom, esse encontro. Ele me deu uma assinatura da revista Senhor onde eu li esse e outros textos de Clarice ("Os desastres de Sofia”, talvez “O crime do professor de matemática" e "Laços de família", com certeza “A legião estrangeira”, além de pequenas notas e até alguma crítica). Depois ele me deu os livros que continham esses e outros contos novos. E, por fim, os romances - que não se pareciam nada com romances: A maçã no escuro (que me decepcionou consideravelmente) e A paixão segundo GH (que nunca me pareceu perfeito como os contos perfeitos, mas que me assombrou mais do que os mais assombrosos contos). Nunca li Perto do coração selvagem, seu primeiro livro e por tantos considerado o melhor. Mas li o estranho livro de histórias “eróticas" e as novelas A hora da estrela e Água viva. Recentemente, meu filho Moreno, de dezenove anos, leu para mim, com lágrimas nos olhos, longos trechos de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Em todos esses reencontros, sempre o fluxo da vida aflorando por entre as palavras, às vezes com intensidade assustadora; freqüentemente me vêm à cabeça o tom, o ritmo, o sentimento do texto sobre Mineirinho.

Ler Clarice era como conhecer uma pessoa. Em 66, quando cheguei ao Rio para morar e tentar trabalhar, o José Wilker me deu o telefone dela. Uma noite, na presença do Torquato Neto e Ana, então sua mulher, decidi ligar. Clarice atendeu imediatamente, como se estivesse esperando a chamada. Não demonstrou nenhuma estranheza e falou comigo como se já nos conhecêssemos e tivéssemos conversado habitualmente todas as noites. Voltei a ligar para ela muitas vezes. Eram conversas muito diretas ("Estou danada da vida, minha máquina de escRever quebRou" aqueles erres hebreus) e o telefone era atendido sempre prontamente. Um dia ela me disse que vira minha fotografia na capa da revista Realidade — eu entre os outros novíssimos da música popular. Um ano depois, eu já morando em São Paulo, voei para o Rio só para participar de uma grande reunião de artistas e intelectuais que, tendo Hélio Pellegrino como porta-voz, queriam exigir do governador do Estado da Guanabara, o Dr. Negrão de Lima, uma atitude nítida com relação ao assassinato, pela polícia, de um garoto chamado Edson Luís, estudante, no restaurante universitário apelidado de Calabouço. Eu estava no meio de uma quase-multidão que lotava a sala de espera do Palácio quando senti um tapinha no ombro e ouvi a voz inconfundível: “Rapaz, eu sou Clarice Lispector”. Fiquei muito tímido e nunca mais nos falamos. Tornei a vê-la num show da Bethânia, de quem ela se aproximou no fim da vida. Mas não pareceu que tivéssemos tido nenhum contato antes. Nas vezes em que nos falamos ao telefone, eu disse a ela que a admirava muito. Mas isso não expressava um milésimo da minha verdadeira admiração e nada dizia sobre o meu amor. O nosso encontro pessoal teve afinal um gosto de desencontro e quantas vezes eu já lamentei ter deixado a impressão de que meus telefonemas tinham sido uma irresponsabilidade. Ou ficado com a impressão de que eu a decepcionara com o prosaísmo da minha timidez, da minha cara, da minha música.

O que nunca mudou foi o sentimento que a leitura de seus textos provoca em mim. Às vezes pego para ler "Amor", “Os desatres de Sofia", “A legião estrangeira” ou mesmo “Uma galinha”, que nos anos 60 eu sabia de cor como se fosse uma canção, e eles permanecem perfeitos momentos da literatura brasileira moderna, perfeitos momentos da vida nas palavras, perfeitos momentos.

Caetano Veloso.

Catálogo da exposição A Paixão segundo Clarice Lispector, Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro, outubro de 1992.

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005. 

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