De noite... (1970)

eu sonhei que você dormia no outro quarto e nessa noite eu lembrava que tinha sempre tido medo todas as noites, medo de ir até onde você dormia e eu tinha de dar um jeito, por um fio, quase quase durante o dia você sorria dizendo que sim e havia uma vaga promessa de que você viesse até meu quarto, você queria, você ia rir cruel na minha cara se eu fosse até seu quarto, você ia saber que eu sou grotesco e ridículo e eu não agüentava mais de amor por você e você ia rir de mim no outro dia de dia por eu ser covarde, havia tão pouco tempo, aquela noite era como que a penúltima oportunidade, nós estávamos todos um pouco tristes de não estarmos em santo amaro e eu não sei pra onde é que nós todos iríamos quando saíssemos daquela cidade que era vagamente serrinha ou a cidade perto do sertão para onde você se mudara com seu marido quando você se casou; você estava certamente acordada de algum modo pensando em mim, no seu quarto, com seu filho, mas sua mãe rondava a casa e eu pensava essa velha está tão velhinha e tudo seria tão absurdo que ela nem poderia desconfiar, eu sou o amigo do filho dela, um menino bom. ela está aqui tomando conta de mim, de meu irmão que dorme no mesmo quarto que eu e de você, meu amor, ela está tomando conta da casa, ela bem que já devia estar dormindo porque assim eu ia até seu quarto onde você está com seu filho talvez querendo que eu vá por algum motivo, você há de me querer pra alguma coisa, durante o dia você fica conversando comigo e com rodrigo e você diz essas coisas agressivas de quem está louca pra me dar e o sol está bonito lá fora, a gente tem saudade de santo amaro, por que estamos todos nessa outra cidade?, por que você se casou, meu amor?, por quê?, esse filho que rouba o seu tempo de estar comigo, eu sei que você quer estar comigo, você é meu amigo há muitos anos, a única pessoa que eu posso amar assim, por que perdemos nossa cidade, nossa primeira e oh talvez única oportunidade? tudo aqui parece secundário como uma vida secundária mas era preciso ser forte e salvar tudo, indo até seu quarto e trepando com você, ficando com você um tempão, dentro dos meus braços, meu amigo, você sorrindo rindo, eu beijando seus peitos de novo tenros, oh, eu não quero que você tenha tido filhos e que eles tenham mamado nos seus peitos e que você esteja envelhecendo e que eu esteja envelhecendo, eu me desespero vendo que não há quase mais tempo e, de dentro do volkswagen em que estou talvez deixando a cidade, eu vejo você na janela ou no parapeito da varanda, brincando comigo, com seu filho nos braços, dizendo a quem está junto de você olhe como ele ri e cantando bem alto pra me insultar e me encher de alegria eu quero ir, minha gente eu não sou daqui, eu não tenho nada, quero ver irene rir, quero ver irene dar sua risada, e o menino rindo nos seus braços como o filho de sandra, e eu rindo e quase querendo dar o vexame de pedir a quem está dirigindo o carro que pare e que eu não vou mais passear, ou embora, ou lá o que seja que eu estava fazendo naquele carro, eu ouço sua gargalhada e olho pra você e você olha pra mim dizendo que sim e que eu não tenho nada com a sua vida.

Caetano Veloso.

ALEGRIA, ALEGRIA (ORG. WALY SALOMÃO), RIO DE JANEIRO, PEDRA Q RONCA, C. 1970.

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005.

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