De segunda mão (29/05/2011)
Sou um internauta de segunda mão. Só vejo e leio coisas que me chegam copiadas em e-mails — ou que surgem do clique que dou nos links azuis que os salpicam. Adorei ver Agnaldo Timóteo destruindo a expectativa do veado que o supôs “assumido”. Era tudo o que aparecia no YouTube a partir de um link que recebi. O grande cantor sentado ao lado do Bolsonaro e as caras que fazia a Luciana Gimenez. Acho mesmo chato essas assunções forçadas. Mas fiquei me perguntando se Agnaldo tinha sido sempre assim tão fechado quanto ao assunto.
Fernando Salem (com quem eu vinha conversando por e-mail sobre o livro que ensina a quem ainda não sabe ler que há variantes equivalentes, umas mais, outras menos adequadas para certas ocasiões, e que a “classe dominante utiliza a norma culta”, sendo, portanto, “comum que se atribua um preconceito social em relação à variante popular” — o que alguns supõem ser um papo mais próximo da realidade dos iletrados, embora nem eu mesmo, tão letrado que me convidaram para escrever coluna em jornal, esteja seguro a respeito da construção “que se atribua um preconceito social em relação a”)... Salem, eu dizia, me contou que Timóteo não apenas negou ser assumido como disse que carícia entre dois homens não é natural e, portanto, não se pode expor crianças a tais cenas. Me lembrei de uma canção que eu amava ouvi-lo cantar, chamada “Galeria do amor”, sobre a Galeria Alaska, reduto gay de Copacabana.
Sou de segunda mão mas não estou morto: um link leva a outro, e muitas vezes vejo coisas divinas no YouTube só porque fui olhar uma curiosidade que um desconhecido me enviou. Foi assim que achei o Timóteo cantando “Galeria do amor” na TV. A canção é dos anos 1980. Nessa época éramos todos entendidos. Ainda. Não em sociolinguística mas no que de fato interessa. Agnaldo, com uma voz espetacular e uma afinação irrepreensível, cantava a balada con gusto, frisando aspectos homo (não necessariamente eróticos) da letra, como “gente à procura de gente”. Ao cantar “onde gente que é gente se entende”, ele olha para a câmera (para o espectador cúmplice) e sublinha com o olhar mais eloquente que se possa imaginar a palavra “entende”. “Onde pode-se amar livremente.” Vale a pena assistir. Não desfaz a correção política de sua fala antiassunção no programa da Gimenez, mas é um bom contraponto. Pensando no nome da saudosa Galeria Alaska (hoje é das igrejas Universal do Reino e Internacional da Graça — de Deus?), me lembrei de Sarah Palin e de como são chatos esses arroubos de atitude conservadora estridente. Pensei que Agnaldo Timóteo é a Sarah Palin brasileira. Saiu daquele território que já virou estado da federação e veio dar pinta na ribalta do poder. Mas pensando bem, quem é Sarah Palin para se comparar ao maravilhoso Timóteo, um talento genuíno para o canto, um homem que aprendeu a cantar com Ângela Maria, um mulato brasileiro que está nas cercanias do sagrado? E o que é o Alasca comparado à Galeria Alaska? Quando Dom Sebastião ressurgir dos mares compreender-se-á o sentido dessas minhas palavras.
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Apenas ponho a cabeça para fora. Saí da Ilha dos Sapos, onde passei uma semana sozinho com Gal e Moreno tentando gravar as faixas do disco que estamos produzindo para ela. Ilha dos Sapos é o nome do estúdio de Carlinhos Brown em Salvador. Gal e Moreno moram lá na Bahia. Fui para lá. Gal chegava sozinha dirigindo o carro. Moreno também. Eu cheguei com um motorista, pois não sei se saberia estacionar no Candeal. Gal consegue com um carro grande. O de Moreno é pequeno-normal. No primeiro dia eu contava ainda com Giovana e Miguel, meus acompanhantes em viagem de trabalho. É que eu tinha um show “fechado” (não tão fechado quanto o Timóteo) para fazer no Castro Alves. Era um show sobre o qual eu não tinha grandes expectativas, mas terminou sendo de grande estímulo artístico para mim. A neta do dono da empresa veio falar comigo antes do espetáculo. Ela disse coisas tão sinceras e era tão atenta, contou também histórias tão edificantes sobre o avô (um pioneiro em responsabilidade social entre empresários brasileiros), a acústica do Castro Alves é tão boa, Vavá estava tão inspirado (e também André, o iluminador paulistaníssimo, e Flávio, o bofe do retorno), que eu peguei meu violão e cantei tudo bem claro e firme. Nem dava pra crer que era o mesmo cara que cantou em Guadalajara faz uns meses. Por esse show no TCA é que eu tinha acompanhantes no primeiro dia de estúdio. Já no dia seguinte estávamos só Gal, Moreno e eu. Nem sequer um assistente para puxar uns cabos e enfiar uns plugs. Só eu, meu filho e a madrinha dele. Chovia como só mesmo na Bahia: parecendo que nunca não tinha chovido. Tipo “Blade Runner”. Estou, portanto, só pondo a cabeça de fora. E não sei bem como reagir à fala de Obama em Londres sobre a eternização da liderança do Atlântico Norte (é intrigante ouvir um preto reafirmar a supremacia do Ocidente de Huntington: sinto certa alegria e certo desconforto); às fotos de Lula em Brasília, eufórico, mandando na presidente; à “Veja” (no avião) pegar leve com Palocci. O jeito é pegar os peixe e assistir a Bolsonaro, Gimenez e Sarah Palin. Ler que os livro ilustrado mais interessante estão emprestado (e perguntar: “estão”????? para que esse estranho plural?) e que Frei Beto quer a cartilha que, segundo Garotinho, ensina até como se faz sexo anal. Será que nesse tópico os católico tá mais cool do que os evangélico?
Caetano Veloso.
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