Deus, brotas (1970)

deus, brotas. deus, circulado de fulô do poeta dos campos. fulano deus. senhor dos lírios. deus, senhor do medo que tenho dos hippies e de algumas cores. senhor das flores, dos círculos, dos hexágonos. senhor dos circos, dos curto-circuitos, dos coitos, das menstruações. deus do momento em que eu não entendo o nazismo e os soldados outra coisa do nazismo, do momento em que eu sinto saudade, do momento em que eu sinto muita saudade porque as pessoas não se incomodam mais e já não querem senão deus, as poucas pessoas. deus dos índios sem história e das praias. deus do círculo da aldeia, do ciclo da história, da mesa. deus, porque não aprendi a te invocar: brotas não seja a maldição que minha mãe talvez temeu. tu. seja uma rua de brotas água limpa, a mesa fonte, o amparo de nossa senhora, a purificação. deus do meu pecado, tu fonte brotas nazaré. deus do momento do meu pecado muito original de não entender e ter medo, para que não haja maldição. circulado de fulô das palavras do homem dos campos na página do poeta. não te sei invocar, para que haja perdão e para que o um fim dos ciclos de tal modo que se dê ainda em volta da mesa. senhor dos exércitos. senhor das colunas de fofocas dos jornais do rio de janeiro, fevereiro, março, abril, bloch, cruzeiro do sul e outras constelações. que eu não tenha muita necessidade de responder a um jornalista que disse que eu era mesmo pela família e que eu não tenha muita necessidade de indagar ao nazismo dos livros e dos filmes, ao nazismo dos alemães, nem mesmo aos rostos dos homens que eu posso ver ao vivo e ou em videoteipe. para que, assim, eu possa aprender a te invocar, para que eu possa pedir pela minha família. nossa senhora da penha, minha voz talvez não tenha o poder de te exaltar. em volta da mesa, perto do quintal, a vida comece no ponto final. nós não temos certeza nenhuma, senhor, e isso talvez seja a marca do pecado, talvez seja estar vislumbrando o circulado de fulô de circuladô. tu brotas, matéria primavera, senhor das neves, das naves, dos descobrimentos portugueses, que haja muita luz, que haja possibilidade de salvação. que a apocalipopótese dos cachorros policiais de rogério duarte, dos animais ferozes, seja também um encontro para que ainda em volta da mesa, que eu não precise perguntar muito, para que eu me aproxime do poder de te exaltar. porque eu quero te fazer este pedido: tu, brotas. que ainda haja espaço para as orações. deus das orações, deus de ju, deus simples de ju, deus com quem se fala em palavras, deus que se traduz em ju em amargura e resignação. deus calado dos nichos, padrasto de nicinha, deus das chuvas e das mortes de santo amaro da purificação, brotas graças de gracilina, domingos, telégrafo sem fio, meu pai, venha a nós o vosso reino.

Caetano Veloso.

O PASQUIM, 18 DE JUNHO DE 1970.

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005. 

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