Deus da chuva e da morte (1997)

Este romance, que abalou a cena literária brasileira no início dos anos 60, foi a revelação de uma das personalidades mais instigantes da entrada do Brasil na era industrial. Jorge Mautner começou a escrevê-lo em sua adolescência, nos anos 50, quando por aqui se cristalizavam as experiências da construção de Brasília, da poesia concreta e da bossa nova, e, nos Estados Unidos, a da literatura beatnik. Filho de pais austríacos que chegaram ao Brasil fugindo de Hitler, Jorge, que nasceu no Rio de Janeiro, viu sua própria pessoa construir se na cidade de São Paulo, para onde seus pais se mudaram quando ele ainda era muito pequeno, o que me parece determinante na formação da originalidade de sua persona intelectual. Esse seu primeiro livro causou forte impacto, em grande parte por aproximar-se mais da aventura beat norte-americana do que da moderna literatura brasileira que se afirmava no mesmo período, e, com isso, contrastava violentamente com o universo estético de então, definido pela tensão entre radicalismo formalista e radicalismo nacional popular. Mas o impulso para abrir esse respiradouro lhe tinha vindo menos dos poetas e ficcionistas americanos do movimento beat — que ele conhecia, mas ainda não muito - do que da sua paixão por Nietzsche e da combinação do drama germânico vivido em casa — o pai, intelectual judeu perseguido; a mãe, a não-judia de origem eslava, admiradora vitalista e ingênua do carisma do Führer - com os mistérios do país que os acolhera e onde, afinal, ele próprio tinha vindo a nascer.

Deus da chuva e da morte tem a vitalidade das canções sentimentais e dos rocks que seu autor petulantemente exaltava contra todas as tendências de opinião da época. E tem a densidade do romantismo alemão. É, com tudo isso, uma obra de humor pop que fez os tropicalistas do final dos anos 60 reconhecer-se ali profetizados. E não só os tropicalistas: a imaginação no poder, o sexo na política, a religião além da irreligião - todos os temas que foram levantados pela contracultura estão nele prefigurados. É um acontecimento auspicioso que se reedite esse marco na formação da sensibilidade do nosso final de milênio. Os jovens de hoje vão assim entrar em contato com algumas estruturas originais do mundo mental em que se movem. E vão poder se assombrar, se divertir, se enriquecer e se maravilhar exuberante e desordenadamente de energia adolescente e sabedoria eterna. Como aconteceu quando ele foi lançado, ninguém pode deixar de lê-lo.

Caetano Veloso.

Prefácio à reedição do livro de Jorge Mautner, Deus da chuva e da morte, Goiânia, KeLPs, 1997 (primeira edição: Rio de Janeiro, Martins, 1962).

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005. 

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