Diferentemente dos americanos do Norte (1994)

Nosso povo, diferentemente dos americanos do Norte e de quase todos os europeus, não se identifica com o Estado. Isso pode - se atribuir ao fato geral de que o Estado é uma in concebível abstração. O Estado é impessoal: nós só concebemos relações pessoais. Por isso, para nós, roubar dinheiros públicos não é um crime. Somos indivíduos, não cidadãos. Aforismos como o de Hegel - ”O Estado é a realidade da idéia moral” — nos parecem piadas sinistras. Os filmes ela borados em Hollywood repetidamente propõem que se ad mire o caso de um homem (geralmente um jornalista) que procura a amizade de um criminoso para depois entregá-lo à polícia: nós, que temos a paixão da amizade e consideramos a polícia uma máfia, sentimos que esse ”herói” dos filmes americanos é um incompreensível canalha. Sentimos com D. Quixote que ”lá se haja cada um com seu pecado” e que ”não é bom que os homens honrados sejam verdugos dos outros homens”.

Essas palavras que acabei de pronunciar podem parecer referir - se a nós, brasileiros. E não tenho dúvida de que, se ditas hoje por um brasileiro diante de brasileiros, podem causar — a despeito da encantadora elegância com que es tão dispostas, ou principalmente por causa dela — certo mal-estar. Na verdade, são palavras de uma argumentação sobre o caráter argentino a que Jorge Luis Borges recorreu mais de uma vez em seus impecáveis escritos. O fato de que tal argumentação poderia provocar certo constrangimento mesmo entre os argentinos de 1930 — quando suponho que ela foi pela primeira vez levada a público - não parece ter passado despercebido do próprio Borges, que, numa nota de pé de página completando a observação sobre a licença tácita de roubar dinheiros públicos, faz a ressalva: ”Com provo um fato, não o justifico ou desculpo”.

Mas, se decidi abrir esta conversa repetindo aquelas palavras de Borges, não foi porque quisesse criar na sala esse mal - estar — embora, indubitavelmente, ele me sirva para estabelecer o tipo de comunicação desejado: se o fiz foi sobretudo porque me interessa ressaltar, antes de mais nada, o risco que todos corremos — todos nós que falamos em nome de países perdedores da História — de tomar as mazelas decorrentes do subdesenvolvimento por quase - virtudes idiossincráticas de nossas nacionalidades. De fato, se olharmos o texto de Borges de uma perspectiva brasileira, hoje – e apesar da ressalva —, na medida mesma em que reconhecemos nossa identificação com o retrato que ele nos oferece dos argentinos, nos damos conta do repúdio que recentemente nos comprazemos em ostentar em face do conjunto da imagem que ali se nos apresenta e, sobretudo, às observações específicas de que não somos cidadãos e de que, em nosso íntimo, roubar dinheiros públicos não constitui crime. O que nos parece sinistro, isso sim, é o fato de vermos a nossa incapacidade para a cidadania guindada à condição de contrapartida de uma bela vocação individualista e de aprendermos que nosso desrespeito aos dinheiros públicos nasce de uma quase nobre rejeição dessa ”inconcebível abstração” que é o Estado.

No entanto, é justamente uma aproximação desse aspecto difícil do contato com aquele texto que mais me interessa aqui, neste preâmbulo. Saber em que medida podemos, sem nos iludir, fazer planos para o futuro - e mesmo sonhar — a partir de um aproveitamento da originalidade de nossa condição tomada em sua complexidade desafiadora. Na referência de Borges à estranheza que nos causa o herói hollywoodiano tão magnificamente descrito por ele como ”geralmente um jornalista” que usa a amizade como um meio para a delação, e, mais que tudo, na afirmação, es colhida no Don Quixote, de que ”não é bom que os homens honrados sejam verdugos dos outros homens”, encontramos alento para encarar a nossa própria imagem sem nojo. Se a observação sobre os filmes de Hollywood soa mais como uma confissão pessoal do que como uma constatação sociológica (a rejeição ao estereótipo do jornalista delator não parece ter tido maior expressão estatística na Argentina do que no Brasil: os filmes americanos, lá como aqui, nunca padeceram de problemas de bilheteria por causa disso. Mas Borges sabia - e nós sabemos - que uma confissão íntima sua pode, a depender do contexto, revelar mais sobre o gosto argentino do que metros de papel de cálculos estatísticos), a mera frase colhida no Quixote bastaria — se é verdade que a nossa vida ou a vida dos argentinos confirma a beleza da forma em que ela está expressa — para justificar um programa de transformação do mundo nas bases de uma sensibilidade peculiar aos países do Mercosul. ”Não é bom que os homens honrados sejam verdugos dos outros homens”, ou, em sua versão simplificada, ”lá se haja cada um com seu pecado”- o tom dessas enunciações nos leva a admitir que há algo de sábio em colocar o respeito pela individualidade para além dos direitos de cidadão. O afeto com que as ouvimos pode decidir sobre sua natureza de abominável resquício de engodo católico ou de verdadeira intuição do que há de sagrado a ser preservado na solidão do indivíduo. A palavra pecado é uma mera marca de atraso ou deve ser vista aqui como representante de um conceito mais elástico do que aquele de crime: um conceito menos mensurável, qualitativo, e não quantitativo, e, sobretudo, mais aberto ao perdão ? Não há, por outras palavras, mais malícia na - do que idéia de pecado — com que cada um pode se haver na de crime - que é um assunto de toda a sociedade ? Quero chegar a perguntas de teor semelhante ao da seguinte: em que medida podemos discriminar o que é, em nós, atraso em relação, por exemplo, às conquistas americanas de direi tos dos cidadãos do que é vantagem nossa por não termos aquela obsessão, que é uma obcecação, que os americanos têm de considerar passíveis de julgamento público as mais íntimas, nuançadas e sutis ações do âmbito privado ? Não sei a resposta para tal tipo de pergunta, mas seguramente não estou satisfeito com as respostas que se tornaram doentia mente consensuais. Para mim é óbvio que os Estados Uni dos, ao superar a situação de racismo institucionalizado, em poucas décadas tinham um negro como chefe do Estado Maior das suas Forças Armadas, três prefeitos negros nas suas três maiores cidades, muitas aeromoças negras em seus aviões e crianças negras em seus anúncios de televisão - enquanto nós não temos generais negros sequer e o nosso único governador negro, o do Espírito Santo, teve sua filha barrada na entrada ”social” de um prédio na capital do seu estado ; mas isso não nos deve levar a pensar que institucionalizar o racismo teria sido necessariamente melhor para nós: o que faz a enorme diferença entre o nazismo e outras formas de perseguição assassina de raças e minorias é o fato de, no caso do nazismo, esses massacres serem oficiais. Por outro lado, é igualmente óbvio para mim, ser absolutamente insana a pretensão de colocar ”o povo”, como eles dizem lá, contra um homem que teve a infelicidade de ter em seu quarto de hotel às duas da manhã uma mulher que foi até ali por livre e espontânea vontade, mas depois apresentou queixa de estupro aparentemente porque disse Não no último momento. Uma americana interessantíssima, Camille Paglia, que aliás recorre freqüentemente às suas origens católicas e mediterrâneas para contrapor - se a essas versões modernas de puritanismo, trata com muito humor (e rancor) essa idéia de assumir o não dito por uma mulher como NÃO mesmo. Essas perguntas, esse olhar de perto o pequeno trecho do texto de Borges vêm por conta da minha ambição de fazer aqui algo tão fora de moda no nosso finzinho de século — finzinho também de milênio —, algo tão em desuso e desprestigio que temo que seu mero anúncio soe como uma aberração: falar em tom DE PROFECIA UTÓPICA.

O desejo de esboçar novas utopias deve nascer em mim menos da necessidade de contrastar com esse ambiente desencantado do que da responsabilidade de compensar minha própria participação na criação do sentimento de desencanto. Refiro-me aqui à minha atuação em música popular desde meados da década de 60 e, sobretudo, às atitudes algo escandalosas e algo superestimadas que, no final daquela década, ganharam o apelido de tropicalismo. Esse movimento, no que me diz respeito, teve todas as características de uma descida aos infernos. Para entender isso que acabo de dizer, é necessário considerar o clima da MPB do meio dos anos 60, ou seja, os desenvolvimentos do samba - jazz, o surgimento da canção engajada e, finalmente, a esdrúxula conjugação dos dois, como uma espécie de otimismo superficial e ingênuo se comparado com a densidade da bossa nova. Claro que é a bossa nova que tem fama de otimista: as canções de protesto, com ou sem convenções rítmicas jazzísticas, é que trouxeram as referências explícitas à miséria e à injustiça social e o tom crítico. Não quero aqui fazer como esses filósofos franceses que começam ameaçando o senso comum dizendo, por exemplo: ”comumente se pensa que Pelé é um atlético negro que joga futebol e Xuxa uma loura bonitinha que ficou mais loura e mais bonitinha”; e, quando era de esperar que então dissessem ”Pelé é uma lourinha e Xuxa é um negrão”, concluem com algo como ”mas o fato é que vemos Pelé, nos vídeos de sua fase áurea, tocar o gramado com leveza ao chegar de volta de seus saltos acrobáticos, enquanto Xuxa usa roupas que são uma espécie de paródia sé ria de uniforme militar”, ou seja, nada dizem que possa valer por um desmentido do consenso. Parecem não querer nada além do frisson de sugerir um paradoxo - e vê-lo em seguida esfumar-se. Espero, ao contrário, poder convencer os aqui presentes de que, do ponto de vista dos que fizeram o tropicalismo, a bossa nova de João Gilberto e Antônio Carlos Jobim significava violência, rebelião, revolução e também olhar em profundidade e largueza, sentir com intensidade e coragem, querer com decisão. E tudo isso implica enfrentar os horrores da nossa condição: ninguém compõe ”Chega de saudade”, ninguém chega àquela batida de violão sem conhecer não apenas os esplendores, mas também as misérias da alma humana.

Em 1971, na fase final de meu exílio londrino, vim ao Brasil a pedido de João Gilberto para gravar com ele e Gal Costa um programa especial para a televisão. Numa conver sa depois da gravação, João me disse mais ou menos o seguin te (na verdade, algumas frases ficaram marcadas tão nitida mente em minha memória que ainda podem ser repetidas aqui literalmente):”Caitas, você enfrentou tanto sofrimen to. Com vocês foi tudo assim de uma vez só. Que horror !... Eu sei o que é isso. Comigo, Caitas, foi a mesma coisa. Vo cê pensa que não é a mesma coisa ? Só que comigo foi aos pouquinhos, essa prisão, esse exílio, essa violência, todo dia, todo dia”.

A atmosfera bem-pensante que encontrei nos ambientes de música popular em 1966, quando cheguei ao Rio, decididamente não fazia jus ao que está contido nessa confissão. Essa atmosfera insinuava que os grandes talentos jovens se resguardassem, dissessem o que era certo dizer e fizessem o que era certo fazer. Não é assim que se faz um Noel Rosa, não é assim que se faz um Dorival. Não é assim que se faz um Wilson Batista. E certamente não é assim que se faz um João Gilberto, não é assim que se faz um Tom Jobim. Era um otimismo tolo crer na força dos ideais de justiça social transformados em slogans nas letras das músicas e em motivação de programas de atuação. Os tropicalistas em que nos tornamos são da linhagem daqueles que consideram tolo o otimismo dos que pensam poder encomendar à História salvações do mundo. Naturalmente não víamos o tolo otimismo como o motor das atitudes de Nara Leão ou Carlos Lyra — ambos bossa - novistas de primeira hora e grandes como os grandes — quando eles, em parte influenciados pelo Cinema Novo e pelo Teatro de Arena, iniciaram o movimento de politização da moderna canção brasileira pós - bossa nova: era, por um lado, a força dos temas sociais que se impunha, por outro, a força da música popular brasileira, essa onda imensa que já vem de lá de trás e que não pode deixar de arrastar tudo ; víamos antes o risco de que aqueles artistas e suas obras fossem reduzidos à ideologia difusa que eles criam servir. Temíamos também que assim os lessem nossos companheiros de geração. Mas também aqui, dada a força dos talentos individuais e o sentido profundo que percebíamos em tantas das suas escolhas, encorajávamo-nos a fazer o que afinal fizemos, mais para revelar dimensões insuspeitadas na beleza de suas produções do que para negar-lhes o valor. Mas essas revelações nos aproximavam ora do sentimentalismo real e hipócrita dos puteiros, ora da voz bruta das lavadeiras da tradição, ora do comercialismo de Roberto Carlos e do significado da música na TV, ora do homossexualismo de Assis - Valente, ora da mera macaqueação dos americanos etc. Enfim, muitas identificações não aceitáveis para eles - embora nós soubéssemos que disso também se fazia a sua possível grandeza -, e não é por outra razão que muitas vezes eles (nossos colegas e suas obras) vieram a aparecer como objetos das colagens tropicalistas: tanto Roberto Carlos em pessoa quanto a Carolina, de Chico Buarque, se tornaram personagens de canções tropicalistas. Não foram os únicos (Carmen Miranda, Paulinho da Viola, Noel Rosa me vêm à lembrança sem es forço, mas há muitos que foram referidos de modo cifrado ou foram objeto de imitação ou caricatura), mas o caso da Carolina merece talvez atenção especial. A Carolina apareceu na letra da canção ”Baby” entre ”gasolina” e ”margarina”, na canção ”Marginália II”(música de Gil com letra de Torquato Neto) junto a uma ”miss”, e, finalmente, foi gravada por mim numa versão que fazia da própria canção uma personagem que, passando pelas dependências oficiais da presidência militarizada da República (afinal, a canção tinha sido gravada por Agnaldo Rayol como uma das ”favoritas do presidente” Costa e Silva), veio cair num programa de calouros mirins da televisão baiana no meu período de confinamento em Salvador, depois da cadeia, tornando-se assim a representante da depressão nacional - e da minha depressão pessoal — pós - A1-5.

Eu imaginava, e depois vim a saber, que ela não era uma das favoritas de Chico Buarque. Mas ter tido uma visão aguda sobre o sentido mais profundo da arte desses nossos colegas não fazia — não faz — de nós, necessariamente, artistas melhores que eles: muitas vezes - quem sabe a maioria das vezes — é quando se é inocente da grandeza que se é grande de fato. Nós queríamos trazer a tudo que dissesse respeito à música popular a luz da perda da inocência e, para isso, fizemos muitas caretas e usamos muitas máscaras. Eu cria firmemente - e o tempo o confirmou — que Chico Buarque ou Edu Lobo ou Dori Caymmi ou Milton Nascimento não sairiam apequenados desse episódio: as assombrações, o reconhecimento do horrível tendem a engrandecer a arte, porque é da natureza da arte estar sozinha em seu poder de redimir. Assim, digam o que disserem, nós, os tropicalistas, éramos pessimistas, ou pelo menos namoramos o mais sombrio pessimismo. Sobre os joelhos do monumento construído como uma colagem cubista na letra da canção ”Tropicália”— de onde saiu o nome do movimento - diz-se que ”uma criança sorridente, feia e morta estende a mão”. É impossível imaginar uma combinação de palavras para serem cantadas numa canção popuIar com maior carga de dor sem esperança, impressão que se intensifica quando lembramos que o ”monumento” a que se alude no texto está ali naquele lugar nenhum, como um marco nacional que pudesse representar o Brasil estaria nessa praça, num salão nobre (acredito que é por essa razão que a expressão ”alegoria” foi tantas vezes repetida - para meu desagrado — a respeito do tropicalismo). Hoje, mais do que nunca, a imagem dessa criança, que ainda pede quando já de nada vale que se lhe dê, e é feia e sorri, nos aparece como capaz de dizer, a seu modo, num dos pontos da composição da colagem, tudo sobre o todo que, por sua vez, é abordado de outros modos e de diferentes distâncias em outros pontos, sem que o conjunto defina uma forma inteligível que se imponha de modo absoluto.

Dor sem esperança !... Quantas vezes ouvi dizer que o Brasil cansou de ser o país do futuro, ou que o Brasil era o país do futuro mas o futuro já chegou, já passou e o Brasil ficou aqui. O otimismo evidente da bossa nova não é tolo – e é por isso que ela nem sequer nos parecia otimista quando estávamos à beira de mergulhar no tropicalismo. O otimismo da bossa nova é o otimismo que parece inocente de tão sábio: nele estão — resolvidos provisória mas satisfatoriamente — todos os males do mundo.

De tal otimismo podemos dizer, lembrando Nietzsche mesmo, que é trágico. O cenho cerrado da esquerda festiva parece sério, quando é apenas bobo. O tropicalismo sempre quis estar à altura da bossa nova: eu vivo repetindo que o Brasil precisa chegar a merecer a bossa nova. A nossa desci da aos infernos se efetuou como estratégia de iniciação ao grande otimismo - ainda não superamos a fase sombria ini ciada em 1967. ”Alegria, alegria” era um começar a mexer no lixo - claro que ela trata da alegria real, mas apenas para ter mais eficácia no tratamento do tema fundamental que é o mesmo de ”Superbacana” e de ”Geléia geral”, a saber, uma visão autodepreciativa da nossa vida cotidiana e do seu quase nenhum valor no mundo. Zé Celso costumava falar no caráter masoquista da estética tropicalista com sua reprodução paródica do olhar do estrangeiro sobre o Brasil e sua eleição de tudo o que nos parecesse a princípio insuportável.

Eu mesmo lembro um exemplo revelador: na canção ”Baby” (cuja letra me foi quase toda ditada por Maria Bethânia), eu usei a palavra ”lanchonete” porque ela me dava náuseas quando lida em marquises ou ouvida em conversas. Ela me parecia uma mistura monstruosa de francês com inglês e era como o anúncio de uma vulgaridade intolerável que começava a tomar conta do mundo. Coloquei - a na canção e, se não posso dizer que aprendi a amá-la como o personagem do Dr. Strangelove aprendeu a amar a bomba, é certo que passei a usá-la com natural delicadeza, como se incluí-la numa canção significasse redimi-la — na verdade, eu creio que assim é. A primeira Coca-Cola da música popular brasileira, a de ”Alegria, alegria”, passou por caminhos semelhantes: eu detestava Coca-Cola e continuei detestando Coca-Cola até bastante tempo depois de ter incluído seu nome na famosa canção - na verdade, nunca cheguei a gostar muito desse refrigerante, apenas usei-o, a partir de determinado momento, como substituto do álcool para acompanhar o cigarro. Mas foi considerando o valor simbólico da Coca-Cola, que para nós queria dizer século XX e também hegemonia da cultura de massas americana (o que não deixava de ter seu teor de humilhação para nós), que a incluí, um pouco à maneira dos artistas plásticos pop, na letra da canção; e, afinal, o que é que me chamou a atenção no filme Terra em transe, de Glauber Rocha, senão a ostentação barroquizante de nossas falências, de nossas torpezas e de nossos ridículos? De todo modo, é numa canção tropicalista que se repete obsessivamente a frase ”aqui é o fim do mundo”— de fato, nunca canções disseram tão mal do Brasil quanto as canções tropicalistas, nem antes nem de pois. Com exceção, é claro, das canções posteriormente cria das pelos próprios compositores do movimento ou pelos seus descendentes algo remotos: os melhores roqueiros dos anos 80. É de volta de tais infernos que pretendo trazer visões utópicas.

Quando saímos do Brasil em 1969 rumo ao exílio em Londres, passamos antes por Portugal. Meu amigo Roberto Pinho me pediu que o acompanhasse até Sesimbra, onde ele tinha um encontro com um senhor português que cuidava do castelo medieval da colina e era tido como alquimista. Lembro de umas ovelhas de chifres revirados, que se punham perto do velho, como se fossem animais de estimação. E do mar muito azul rodeando de longe as muralhas de pedra. A certa altura, Roberto pediu que eu cantasse ”Tropicália” para o alquimista ouvir. Não lembro se cantei ou se apenas recitei as palavras da letra. Mas estou seguro de que comuniquei a íntegra do texto ao português. Ao final, este me olhou com uma expressão exultante e, com uma piscadela cúmplice a Roberto, apresentou a mais insólita interpretação de ”Tropicália” de que eu já tivera notícia. Tudo na letra era tomado à letra e valorado positivamente. ”Eu organizo o movimento”, por exemplo, significava que, não necessariamente eu, mas alguma força que podia dizer ”eu” através de mim, organizava um importante movimento, e ”inauguro o monumento no Planalto Central do país” era clara e meramente uma referência a Brasília como realização da profecia de D. Bosco. E pronto. Nenhum traço de ironia era notado, nenhum desejo de denúncia do horror que vivíamos então. Não lembro se sublinhei o trecho ”uma criança sorridente, feia e morta estende a mão” quando tentei explicar-lhe que minhas motivações para compor a canção tinham sido o oposto de um ufanismo, mas é certo que tentei discutir o assunto. Ele, que a princípio me parecera não imaginar outra razão possível para que eu escrevesse tal canção a não ser a certeza feliz de um destino grandioso para o Brasil, não se mostrou surpreso diante de meus protestos e, rindo para Roberto e repetindo ”eu sei, eu sei”, arrematou: ”O que sabem as mães sobre seus filhos?”. Naturalmente, eu entendi que ele estava certo de conhecer melhor as intenções da minha composição do que eu. Isso não era novidade para mim: eu já sabia então que as canções têm vida própria e que outros podem revelar-lhes sentidos de que seu autor não teria suspeitado. Tampouco me era de todo desconhecido o aspecto positivo que aquela canção dava à sua representação do Brasil. E, mais que isso, eu não era inocente do fato de que toda paródia de patriotismo é uma forma de patriotismo as sim mesmo - não eu, o tropicalista, aquele que antes ama o que satiriza (e, lembrando aqui da Coca-Cola e da lanchonete, não satiriza facilmente o que odeia). Mas que aquele homem não quisesse levar em consideração que na minha canção eu descrevia um monstro e que esse monstro confirmara sua monstruosidade agredindo - me a mim era algo que à medida que ia acontecendo ia-se-me tornando mais fascinante do que irritante.

Mas também eu não estava ali de todo inocente do fato de que eu não era estranho aos interesses que uniam meu amigo Roberto e aquele suposto alquimista. O ponto de ligação entre eles era o professor Agostinho da Silva, um intelectual português que foi perseguido por Salazar e veio para o Brasil, onde participou da formação da Universidade da Paraíba, da Universidade de Brasília, e que, durante o período dos grandes projetos culturais da Universidade da Bahia no fim dos anos 50 e início dos 60, organizou e dirigiu o Centro de Estudos Afro-Orientais em Salvador e disseminou uma forma de sebastianismo erudito de inspiração pessoana que atraiu algumas pessoas que me pareciam atraentes. Não foi sem pensar neles que eu incluí a declamação de um poema de Mensagem, de Fernando Pessoa, no happening que foi a apresentação da canção ”É proibido proibir” num concurso de música popular na televisão em 1968. Um dos pontos mais ricos em sugestões para o estudo do tropicalismo foi essa apresentação de uma composição primária em que eu, por sugestão do empresário Guilherme Araújo, repetia a frase que os estudantes franceses do maio de 68 tomaram aos surrealistas, acompanhado do conjunto de rock mais moderno do Brasil de então (e o mais e melhor influenciado pelos Beatles) — os Mutantes —, com uma introdução planejada pelo músico erudito Rogério Duprat inspirada na música de vanguarda. Eu usava uma roupa de plástico brilhante verde e preta e colares de correntes e tomadas, e meu cabelo parecia uma mistura do de Jimi Hendrix com o dos seus acompanhantes ingleses no Experience; no meio do número, eu gritava o poema de Pessoa:

Esperai! Caí no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.

Que importa o areal e a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É O que eu me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.

Mas eu não tinha embarcado na viagem desses sebastianistas, nem como estudioso nem como, digamos assim, militante. Apenas me parecera interessante que houvesse gente falando no Reino do Espírito Santo e numa futura civilização do Atlântico Sul numa época em que todo o mundo falava em mais-valia e nas teses científicas de transformar o mundo através da classe operária. Essas coisas me atraíam não por místicas (tenho um espontâneo horror de misticismos), mas por excêntricas. E sobretudo foi por causa disso que eu entrei em contato com o livro Mensagem, que revelou para mim a grandeza da poesia de Fernando Pessoa. Conhecia o Fernando Pessoa do ”Poema em linha reta” e da ”Ode marítima”, também o do poema do outro Menino Jesus e, naturalmente, o poeminha do fingidor: eram os poemas que as meninas citavam, que muita gente lia em voz alta para mim, cujos trechos eram repetidos de cor e que uma vez ou outra eu mesmo lia no exemplar de algum colega de faculdade. Sabia dos heterônimos e de algum folclore sobre sua vida e juntava aqueles poemas ao repertório de poesia brasileira moderna (Vinicius, Drummond, Bandeira e Cecília, e depois também Cabral) e isso era (com os negros de Castro Alves e os índios de Gonçalves Dias mais os ciganos de Lorca) toda a poesia que eu conhecia. Com Mensagem era o Pessoa do poeminha do fingidor que se adensava. Cada peça curta era um labirinto de formas e sentidos e, mais importante que tudo, não me parecia possível que se demonstrasse mais fundo conhecimento do ser da língua portuguesa do que nesses poemas. Meu poeta favorito - e o que eu mais extensamente li — era João Cabral de Melo Neto. E diante dele tudo parecia derramado e desnecessário. Assim também os poemas de Álvaro de Campos — que eram os mais queridos das meninas. Mas com Mensagem eu me sentia em presença de algo mais profundo quanto a tratar com as palavras — por causa de cada sílaba, cada som, cada sugestão de idéia parecer estar ali como uma necessidade de existência mesma da língua portuguesa: como se aqueles poemas fossem fundadores da língua ou sua justificação final.

Todo começo é involuntário.
Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.

À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
"Que farei eu com esta espada ?”
Ergueste-a, e fez-se.

O fato de este livro (o único que Pessoa publicou em vida na nossa língua) ter como tema o mito da volta de d. Sebastião e da grandiosidade de um adiado destino português enobrecia, a meus olhos, os interesses daquele grupo de pessoas que cultivavam tais mitos. De modo que, em Sesimbra, eu passei gradativamente do espanto de ver minha canção ”Tropicália” resgatada por uma visão que anulava sua contundência crítica à relativa adesão à perspectiva dessa visão: comecei a ver ”Tropicália” - e a pensar o tropicalismo — também à luz do sebastianismo, ou melhor, da minha versão do sebastianismo, que consistia em minhas adivinhações (de resto ainda hoje pouco informadas) do que fosse o sebastianismo deles. Eu sabia que essa dimensão também estava em Glauber e, naturalmente, em Ariano Suassuna; aquele, um tropicalista assumido, este, um inimigo mortal do tropicalismo. Eu, no entanto, sempre fui cético.

Já no meu segundo ano de exílio em Londres, por causa do mesmo Glauber - que então filmava Cabeças cortadas na Catalunha e queria conversar comigo pessoalmente sobre nobres tarefas e mesquinhas fofocas do cinema brasileiro — fui a Barcelona. Por causa dos amigos que fiz ali através de Glauber, vi a amargura com que o povo da Catalunha sofria sua anexação a Castela e a humilhação de ter a sua língua materna esmagada pelo castelhano. Ainda era a Espanha de Franco e, na Catalunha, era a época da nova canção cata lã de Pi de La Serra, Joan Manuel Serrat e Pau Riba. Um dia ouvi de um dos produtores do filme de Glauber a versão da descoberta da América que começava por dar Colombo como catalão de nascimento. Ele o afirmava com a mesma paixão com que ouvi alguns sebastianistas brasileiros e portugueses falar em provas de que Colombo era português. Só anos depois é que um amigo no Brasil me deu de presente um livro de Unamuno em que ele falava de Portugal e da língua portuguesa com muito carinho e muita delicada observação (ressaltar que a palavra ”luar” não tem tradução em nenhuma outra língua não é o menos interessante dos exemplos); pois bem, nesse livro Unamuno falava da sensação de culpa que o pensamento das línguas portuguesa e catalã traz à alma de um escritor espanhol. Mas, naquele momento, em Barcelona, eu senti a identificação de Portugal com a Catalunha nas suas criações de fantasias compensa tórias. O poema ”Os Colombos”, do Pessoa de Mensagem, redime esse sentimento e, na sua grandeza, é já uma superação de toda a inferioridade ao passo que propõe uma transcendência da mágoa.

No entanto, o português não é o catalão. Não só Portugal não ficou anexado à Espanha, como espalhou sua língua pelo mundo. E aqui estamos, falando português neste imenso pedaço do continente sul-americano. Somos muitos milhões. Nunca chegamos a ser um país bom. E grande parte de nossas mazelas vem do fato de sermos portugueses. Ou, melhor dizendo, vem no bojo da maré baixa da cultura mediterrânea ou sul-européia, que, por sua vez, é uma marola da grande fuga da onda civilizatória das regiões quentes para regiões frias: Babilônia, Egito, Grécia e Roma deram lugar a Inglaterras e Alemanhas e Canadás; Roma ainda está inteira em nós a assistir à aclimatação de suas conquistas em territórios bárbaros, onde as idéias de agasalho, presteza e precisão se superdesenvolveram comandadas pela vitalidade de homens determinados, os quais como que trans formaram a chama da corrida humana em implacável e penetrante luz fria. O Renascimento, o Ocidente moderno, é fortemente mediterrâneo -- Leonardo e Camões -, mas seus desenvolvimentos boreais é que nos trouxeram até onde estamos, para o bem e para o mal, sobretudo por causa da figura de Lutero. Os Estados Unidos são a última expressão dessa grande movimentação que, ao atingir o Extremo Oriente pelo Japão e Tigres Asiáticos neocapitalistas e pela China comunista, está, parece, em vias de fazer algum tipo de desvio de rota ou virada de orientação. Não temos como mensurar quanto devemos a esses minuciosos e limpos pecadores do Norte - Prometeus do fogo gelado que nos acenam com comunicações rápidas e computadorizadas de informações cada vez mais complexas e mais fácil mente manipuláveis. E também com prescrições legais que têm em conta uma pluralidade de comportamentos nunca antes imaginada numa sociedade humana. Cresci desprezando os entreguistas que adoram servir de lacaios do capital americano: na sua forma arrogante de mostrar submissão vejo a mais abominável expressão de heteronomia. Mas sinto uma verdadeira identificação com americanos do tipo de Gertrude Stein, Walt Whitman, John Cage (e também, em larga medida, os artistas plásticos pop dos anos 60), que apostam numa afirmação da América. Enquanto muitos dos nossos amigos americanos ”liberais” de esquerda me causam não raro certo dissabor quando fazem uma mistura de mistificação da Europa com mistificação do ”Terceiro Mundo” para negar o que há de perigosamente sugestivo na experiência americana. Quando Camille Paglia diz que detesta a opinião pseudo-esquerdista dos meios universitários americanos de que a ”Grande, Má e Feia América é uma sociedade corrupta, vazia e gananciosa que toda essa gente maravilhosa e benévola do resto do mundo olha com nojo”, não posso deixar de concordar com ela. Amo os Estados Unidos. Apenas não exijo do Brasil menos do que levar mais longe muito do que se deu ali e, mais importante ainda, mudar de rumo muitas das linhas evolutivas que levaram até espantosas conquistas tecnológicas, estéticas, comportamentais e legais. Sei que, por um lado, o Japão fez e faz isso em escala considerável, principalmente no que diz res peito ao aspecto tecnológico, mas não só, e, por outro, que o Brasil não parece encontrar sequer os meios de esforçar - se para se tornar capaz de fazê-lo. Mas há algo nos Estados Unidos que não encontramos no Japão: a América, o trans lado, a terra nova e os grandes espaços ; a implantação de uma idéia em terreno tornado virgem pela incapacidade mesma de considerar as culturas indígenas; a imigração variada, européia e asiática, que trouxe mais nuances e diferentes problemas ao panorama social já na base violenta mente problematizado pela vinda forçada dos negros; um ar de liberdade de movimentos que nenhum lugar de cultura autóctone sedimentada pode de fato conhecer - e isso o Brasil tem em comum com os Estados Unidos e com todos os países americanos. E talvez o caso do Brasil nos induza a esperar dele experiências mais extremas.

E aqui é o momento de tentar fazer o que fiz questão de frisar como sendo perigoso naquele arrazoado de Borges a respeito do modo de ser argentino: considerar vantajosas até mesmo as condições adversas com que a História nos presenteou; fazer, por exemplo, do fato de não termos sido eficientes o suficiente no extermínio dos índios como os nossos irmãos do Norte -- cuja eficácia nesse campo aprendemos a aplaudir nos filmes em que outro herói hollywoodiano prova ser tão freqüente quanto o jornalista delator: o matador de índios -, e mesmo do fato de vermos que ainda estamos efetuando, com atraso, esse extermínio, uma oportunidade de nos tornarmos índios ao passo que nos reconhecemos ultra-ocidentais. E aqui quero citar um daqueles filósofos franceses cujas manias caricaturei mais cedo, mas que parece ser mesmo um grande sujeito. É Gilles De leuze, que, naquele hilariante livro candidamente chamado O que é a filosofia?, numa inacreditavelmente convincente jogada retórica, diz do filósofo que ele ”deve tornar-se índio para que o índio não sofra a miséria de ser índio”. Mas só ganha o direito de arriscar tais inversões quem se sabe engajado num sonho grande e luminoso. Só na perspectiva do país artista superior que nós temos o dever de perceber que a História nos sugere que sejamos é que podemos revalorar aspectos do nosso atraso como sinais de que casualmente escapamos de uma escravidão maior no misterioso desvelar do nosso destino.

Sei que posso ter apenas aumentado a confusão ao sublinhar o namoro do tropicalismo com o pessimismo profundo. Não apenas uma paródia de samba exaltação é ainda um samba exaltação assim mesmo, mas também, e talvez sobretudo, Jorge Ben - o autor da totalmente afirmativa e isenta de intenções irônicas ”País tropical”– era - como Jorge Ben Jor hoje é — nosso herói estético e psicológico. Contudo, eu creio ser quase desnecessário dizer que a alegria pura - beleza pura — de Ben / Ben Jor é da mesma natureza daquela da bossa nova, apenas aqui num caso individual de expressão extrovertida agressiva. De resto, Jorge Ben surgiu no rastro da bossa nova e foi ainda sob sua luz que criou a variante primária e vitalista de samba moderno que, mais tarde, pôde casar com formas de rythm'n'blues, soul e funk. A canção ”País tropical” é mais do que o avesso da canção ”Tropicalia”: ela é o canto do homem alegre do país que os tropicalistas tinham em mira no seu primeiro movimento de tentativa de sair do reino das sombras. O artista Jorge Ben Jor é o homem que habita o país utópico trans-histórico que temos o dever de construir e que vive em nós. No entanto, as minhas canções ainda são predominantemente longos e enfadonhos inventários de imagens jornalísticas intoleráveis do nosso cotidiano usadas como autoflagelação e como que olhadas de fora: até essa coisa desagradável de pronunciar o nome de outro país como emblemático repositório de mazelas sociais. Eu odeio esse negócio de dizer o nome do Haiti naquela canção. Outro dia li que o meu colega Aldir Blanc - co-autor de tantos sambas magníficos - reivindicava a autoria da comparação do Brasil com o Haiti (e talvez da minha referência à minha ”Menino do Rio” ligada a isso): eu não brigaria por ela. Só suporto — e mal — essa referência explícita ao Haiti (o único país americano onde uma revolução escrava foi vitoriosa e fundadora da nacionalidade) porque meti ali a forma verbal ”reze”. Mas — embora talvez para pessoas parecidas comigo (pois me custa crer nessas coisas) seja difícil engolir esta - nós somos escravos das canções que fazemos: elas são canções, querem nascer do mundo das canções que é um mundo com características próprias, nós freqüentemente as queremos fazer do modo como não queríamos que elas fossem. O país utópico, eu o quero abordar aqui.

Uma das vantagens da nossa abominável situação é podermos pensar que tudo ainda está por fazer. Dito assim, isso parece um lugar-comum estéril. E, pior, pode trazer a seguinte pergunta como complemento: e se justamente o Brasil tivesse sido uma grande oportunidade que se perdeu irremediavelmente, deixando-nos apenas com a degradação social que é demasiadamente complexa para servir de papel em branco ou ponto de partida, ou seja, se estivermos diante da mera entropia, e não do caos inicial de onde se pode extrair uma ordem bela? O fato é que tanto nas canções de 67 como nas de agora o que eu vejo é a tensão entre esses dois últimos termos. Entropia — caos. Mas eu, eu mesmo, não o mero escravo das canções, penso os aspectos entrópicos como problemas a superar - deveres severos: temos de começar por ler com singeleza os sinais de trânsito nas cidades. Por outro lado, amo o caos; não apenas como caldo de onde se destilará a nova ordem bonita, mas como desordem atual. O adjetivo ”bonita” escolhido para qualificar a futura ordem desejada me parece revelar que o colorido do caos - o desequilíbrio onde viceja a violência e a perversão e também o talento excepcional e a inventividade, os caprichos e os relaxos, as vanguardas estéticas e os exotismos sexuais —, o colorido desse caos, dizia, é absolutamente indispensável à composição da nação sonhada, da estamparia das vestes do povo desse país do futuro. Ninguém disse melhor a natureza do nó que estamos a tentar desatar do que Antonio Cicero — um intelectual de formação filosófica acadêmica que trabalha também com música popular — nestas palavras que reli citadas por Carlos Diegues num belo artigo sobre futuro e Brasil: ”Podemos dizer que o paradoxo do Brasil está em, sendo capaz de oferecer a prefiguração da solução de alguns problemas que poucos países conseguem efetivamente enfrentar, não ter conseguido efetivamente enfrentar alguns problemas que muitos outros países já resolveram total ou parcialmente”.

Tudo o que eu disse - e tudo o que estou por dizer - está contido nessa fórmula de Cicero; e não creio que eu possa dizer melhor: apenas dou testemunho de como em mim esse modo de encarar o Brasil se desenvolveu com o colorido próprio das minhas idiossincrasias e das minhas limitações.

Todo povo frustrado pode fazer fantasias compensatórias. Mas o que pensar quando estamos na situação de criar tais fantasias e temos como matéria real um país novo, imenso, tropical, mestiço e de fala portuguesa - quer dizer, usando uma das línguas do Sul da Europa que mais têm sofrido humilhações históricas depois de ser a que mais se espalhou pelo mundo, a língua em que se escreveu o épico inaugural da dominação européia sobre o globo, o grande épico da expansão ocidental? E, no entanto, freqüentemente somos catalogados como não fazendo parte do ”Ocidente”. Devemos pensar assim: o mundo em que vivemos parece - se mais com o mundo da história remota da humanidade, quando violentos avanços tecnológicos foram feitos, do que com Grécia e Roma. Estas se entregaram ao cultivo das artes, das leis e das idéias, num ambiente tecnologicamente estável amparado na mão - de - obra escrava. O curioso é que qualquer desvio extra - ocidental do curso da História atual - mesmo que seja a temida e pouco falada liderança da China sobre os não - ocidentais numa ação contra os atuais países ricos (eventualidade que já ouvi referida em tom alar mista na boca de conservadores americanos e em tom auspicioso na boca de sebastianistas portugueses) - - poderá levar a uma retomada da ênfase greco-romana nas virtudes pessoais e sociais, em detrimento do furor tecnológico. Ou seja: pode levar o Ocidente de volta ao Ocidente.

Um amigo meu, um dos mais significativos representantes da contracultura dos anos 60, que sempre me impressionou pela inteligência ao mesmo tempo livre e realista, enlouqueceu. Antes de sua loucura tornar - se fato consumado, ele me confidenciou que tinha chegado ao limite de sua capa cidade de pensar, em busca de uma alternativa para a cultura ocidental, e não conseguia sair dela: suas respostas e soluções eram intransponíveis. No entanto, muito de sua energia gasta no esforço de ir além não apenas da injustiça tinha sido social, da mediocridade e do subdesenvolvimento, mas também do estágio em que encontrara a religião, o sexo e a própria concepção do lugar do homem na natureza. Sendo paulista, o fato de ser brasileiro era para ele um acaso de muito pouca importância para que fosse sequer considerado infeliz: a perspectiva brasileira e a língua portuguesa eram para ele uma ferramenta neutra. É assim que eu quero pensar. Mas, desde o início, sempre considerei meus desejos de mudar o mundo como sinal de um movimento interno da História do Brasil, e cada pensamento ambicioso meu um esboço de aventura da própria língua portuguesa. Eu sei que os cultores de mitos medievais que sirvam de inspiração para extremados nacionalismos modernos são a semente das regressões totalitaristas: um professor português de literatura, autoridade em história das relações entre modernismo brasileiro e modernismo português, me disse um dia a respeito do professor Agostinho da Silva que, a princípio, temeu que suas idéias, afinal, se identificassem com as de Salazar. Às vezes algumas afirmações instigantes de Ariano Suassuna sobre o Brasil a mim me soam aparentadas com a famosa frase de Salazar ”prefiro ver Portugal pobre do que Portugal diferente”. Ao contrário, eu penso que o Brasil deve tornar-se o mais diferente de si mesmo que lhe for possível, para encontrar-se. E também saber livrar-se da pobreza que desumaniza sua população. Devemos, em primeiro lugar, aprender a observar as formalidades relativas aos direitos humanos e nos tornar destros para a tecnologia. Devemos estar à vontade na versão de Ocidente que veio do Norte. E superá-la. Não se trata de uma adaptação ao que é ocidental, como se espera de países asiáticos e africanos. Somos ocidentais. Mas Ocidente sempre significou transcendência da particularidade cultural, ambição de tomar nas mãos a história da espécie. Assim, amar a língua portuguesa é amar sua capacidade como instrumento universal; falar português é livrar-se da prisão do português.

Outro dia, um economista americano esteve aqui no Rio - um que fazia propaganda do livre-mercado como salvador das vítimas do Estado e aconselhava a que abríssemos nossa rede de vôos domésticos às empresas aéreas americanas —, esse economista (aliás, um americano negro) esteve aqui e disse que se orgulhava de só falar inglês e não querer aprender nada de outras línguas, pois o inglês é a língua do futuro. Ao ler essas declarações, pensei imediatamente: não é assim que eu amo a língua portuguesa. A língua em que Fernando Pessoa escreveu: ”O Ocidente, futuro do passado”... Para nós, não se deve tratar de uma adaptação ao que hoje se chama de Ocidente, mas de uma sua retomada radical que implique uma sua superação. Nesse estágio está a minha loucura.

Naturalmente, tenho capacidade para a sensatez: mesmo sem estudar a Constituição de 88, concluo que há conquistas ali devem ser defendidas, com unhas e dentes, contra qualquer ameaça — o exemplo indiscutível que me ocorre é a independência que foi dada ao Ministério Público. Mas não me sinto inclinado a participar do horror ao capital estrangeiro ou da defesa das estatais. Quando leio artigos de Roberto de Campos vêm-me à mente, em primeiro lugar, perguntas. Desde o tropicalismo - desde antes do tropicalismo - que me interessa saber o que o Brasil diria ao mundo se ele pudesse se fortalecer; o modelo econômico para chegar a esse fortalecimento sendo de importância secundária. É evidente que, em 1963, os comandantes da economia mundial não deixariam o Brasil fazer as reformas que as parcelas minimamente esclarecidas de seu povo exigiam. Menos ainda a revolução comunista que algumas elites políticas preconizavam. Aquelas parcelas minimamente esclarecidas estão longe de ser uma pequena minoria: foram elas que quase elegeram Lula em 89. Mas uma cubanização do Brasil — com sua extensão territorial, sua industrialização e o tamanho de sua economia — teria sido uma hecatombe política mundial. Porém, o que me interessa é perguntar: com uma revolução bem-sucedida, o que o Brasil daria ao socialismo, o que o socialismo brasileiro daria ao mundo? Hoje é fácil responder que talvez nada: dado o histórico de nossa incompetência, apenas somaríamos ao sombrio mundo comunista mais um gigante com cãibras burocráticas e boçalidade policial. Mas o fato é que nos impediram - e nós mesmos, afinal, nos negamos — esse caminho e temos sido levados à condição de maior fracasso econômico do continente, sendo visível o gosto da imprensa americana em opor nossa inépcia à propalada maturidade atingida, nesse campo, pelo Chile, pelo México, pela Argentina — e não só! Há um alívio em ver que não é mais preciso pensar que, para onde for o Brasil, irá a América Latina, pois o Brasil não vai a lugar nenhum.

No entanto, a escandalosa insensatez também me guia. O já citado professor Agostinho da Silva costuma dizer que Portugal já civilizou Ásia, África e América — falta civilizar Europa. Tal inversão petulante encontra eco dentro de mim. Descartado o risco de ser a expressão do ressentimento contra a luminosidade boreal vitoriosa, por parte de obscuros perdedores da História, essa exortação se identifica com minha idéia de radicalização do Ocidente implicando sua superação. Nessa perspectiva, o Brasil não precisa provar que tem caráter e é uma promessa de originalidade. Nem a má imagem que dele se fazem hoje os brasileiros, nem a emigração em grandes números para países mais ricos podem apagar a força do que somos nem o sentido que tem o modo como o acaso nos tem tratado. A Irlanda, do meio do século XIX ao início do século XX, esmagada sob a opressão inglesa, perdeu, por emigração, metade de sua população. As coisas lá nunca se acertaram: a ira santa contra a Inglaterra levou os irlandeses até a prática de um terrorismo que não se pode chamar de ”esquerda”. Ninguém, no entanto, ao pronunciar o nome da Irlanda, pensa num mero e pedestre fracasso. E não se pensa só em Joyce, Wilde, U2, Sinead O'Connor, Yeats ou Neil Jordan, que marcaram o mundo usando a língua do opressor — pensa - se no fogo irlandês, na teimosia, nos cabelos de Maureen O'Hara e no álcool. A Irlanda pode nunca superar suas chagas, mas é algo cuja grandeza reconhecemos. Mas o Brasil, que não é apêndice da língua inglesa, é algo cuja grandeza em potência se põe na condição de país novo americano, com o mito da tabula rasa e o mito da democracia racial. Mas ”o mito é o nada que é tudo”. A insensatez, assim, me leva a dizer que, pelo Brasil, o gosto da civilização ocidental inicial — Grécia, Roma - e o gosto mediterrânico e florestal — Israel (grande mente Israel, que nunca foi potência econômica ou militar para dar ao mundo o arsenal de idéias e estilos que deu), mas também o islã e Jesus (filhos de Israel), e Olodumaré, Dioniso, Uirá — podem e devem tomar nas mãos as rédeas do mundo, fazendo - o transcender o estágio nórdico e sua ênfase bárbara na tecnologia.

Assim, um dia, passando pela porta da puc no Rio, vi vários jovens de ambos os sexos entrando nos jardins da universidade, em meio a outros transeuntes que esperavam o ônibus, carregavam encomendas etc. Pensei na informalidade das roupas de todos. E lembrei de como, em 66, me parecera um escândalo de repressão que alguns cinemas em São Paulo exigissem paletó e gravata. Pensei em como, nos anos 60, lutamos contra hierarquias e superindividualizamos a moda. Depois, dos anos 70 em diante, muitas vezes sofri ao ver a vulgaridade dos trajes anarquicamente usados em toda parte: senhoras em bermudas apertadas e camisetas com a cara do Mickey entrando em bancos; aeroportos cheios de pernas peludas sustentando verdadeiros cartazes com palavras em inglês. O equivalente hoje da elegância discreta é a farda jeans com blusa e sapatos para todas as classes - e o resto parece lixo. No entanto, há, sobretudo em cidades praianas — mas recentemente observei sensação semelhante no interior de Minas - como o Rio de Janeiro ou Salvador, uma alegria da informalidade e da exibição ao sol e ao vento de grande parte do corpo. Essa alegria apenas está pervertida, conspurcada pelo clima de autodesprezo moral, pela ignorância e pela corrupção. Imaginei então o Brasil encontrando e inventando naturalmente novas formas de vestir. E novas e mais delicadas hierarquizações dessas formas. Uma nova civilização de belas, leves e solenes roupas pequenas no cobrir e grandes no significar e no encantar. Vi o Egito. Um novo Egito. Vi Atenas imensa e sem escravos. Imaginei a sutil diferença entre a veste do aluno e a do mestre, na Universidade Brasileira. E a variedade das roupas de inverno no Sul.

Um dos mistérios de nosso tempo é o que chamamos de arte moderna. Uma das suas maiores fascinações, a idéia de vanguarda. Outro dia, aqui mesmo neste museu, fui convidado pelo poeta Haroldo de Campos a participar de uma leitura da peça nô japonesa Hagoromo (O manto de plumas). A tradução de Haroldo era também uma homenagem a Hélio Oiticica, e me sugeriram que eu usasse um seu parangolé numa espécie de performance. Esses objetos enigmáticos, feitos para vestir, foram virando, à medida que eu tentava comentá-los, o que eles devem ter sido desde sempre para Hélio: a roupa transcendental. E, enquanto eu ridicularizava, ao mesmo tempo, a impossibilidade de a gente se decidir diante de criações tão arrojadas e a nova costura japonesa (na verdade, amo intensamente ambas), fui realizando tantas modalidades de usar o parangolé, que atingi o ponto em que para mim era vívida a relação que Haroldo fazia entre a experiência de Hélio e a peça nô — o que levara a apelidar sua tradução de Parangoromo. O manto de plumas da peça é o que possibilita a volta do ser celestial anjo-anja ao céu do céu. Nessa perspectiva o parangolé ganha seu sentido final de roupa-não-roupa da transcendência permanente.

Vi então Haroldo como um poeta altíssimo que me induzira a essa revelação. Ele tinha vinculado a subida ao monte sagrado da peça nô à subida de Hélio ao morro da Mangueira, alando anjos mulatos com mantos eternamente ilegíveis e eternamente sugestivos. O figurinista Cao me disse que o artista plástico Luciano Figueiredo lhe explicou as rígidas normas que Hélio se impunha na execução dos parangolés. Devem ser os rigores do programa de criação de um mundo novo. E, tendo sido o nome de uma instalação de Hélio de 1966, que, via homem do Cinema Novo Luís Carlos Barreto, veio a apelidar aquela minha canção - ”Tropicália” — que, por sua vez, deu nome ao movimento - tropicalismo —, enfiei a relação Japão-parangolé-Céu-Mangueira, que Haroldo sugerira, numa interpretação dos parangolés como uma profecia de Hélio.

Claro que eu gostaria que surgissem figurinistas brasileiros tão avant-garde quanto os japoneses. Mas o que eu es pero do Brasil é uma revolução na história do traje, pontuada por algumas personalidades, mas de força coletiva.

Uma das razões por que eu gosto de manter uma produção de canções ”de massa” é a vontade de reequilibrar a média da criação pop brasileira a cada passo, em detrimento de um possível afastamento para pesquisar algo fundador. É como se fosse um não querer estar demasiado à frente, ou acima, ou à margem. Talvez o Hélio já tivesse, antes de morrer, começado a me desprezar por isso. Mas, para mim, é irresistível: o fato de uma canção como ”Filhos de Ghandi”, de Gil, ter desencadeado, por sua beleza específica, uma avassaladora mudança da postura do negro na Cidade da Bahia, fazendo renascer aquele afoxé quase extinto e multiplicando o surgimento de outros, é, para mim, de grande importância como sugestão de para onde dirigir a ambição.

O psicanalista italiano afrancesado Contardo Calligaris, que, tendo se apaixonado pelo Brasil, escreveu um livro devastador das nossas possíveis esperanças, respira por um momento para dizer, diante da estapafúrdia estranheza das letras dos blocos afro de Salvador e suas descrições de um Egito idealizado, que talvez nessas projeções dos poetas populares do Carnaval da Bahia esteja o nosso único esboço de um projeto de identidade e nacionalidade. Nesses Egitos e Madagascares e Etiópias de delírio, podem estar o país (que nós não somos) e o nome (que nós não temos).

Mas meu nome é Caetano porque nasci no dia de São Caetano e o nome do país é Brasil por causa do pau. E só os idiotas tomam a antropofagia de Oswald de Andrade como uma metáfora — justificativa de ecletismos impotentes. A versão tropicalista levou ao Egito dos blocos, à regeneração do mercado de música popular no Brasil, à elevação do nível intelectual de sua produção e sua crítica, a outro tipo de diálogo com os estrangeiros. Para mim tem grande significação que a canção ”Sampa” leve muitos paulistanos a me agradecer por eu ter despertado o narcisismo básico de que a cidade necessitava para poder seguir e que já parecia quase irremediavelmente perdido.

Outro europeu que também se espantou com a liberdade com que escolhemos e a freqüência com que usamos os prenomes no Brasil, o antropólogo Claude Lévi-Strauss (aliás, personagem da minha canção ”O estrangeiro”, por ter achado a Baía da Guanabara muito feia), no capítulo dos seus Tristes trópicos dedicado a São Paulo, onde ele faz um retrato em princípio desalentador da vida intelectual brasileira (Oswald de Andrade deve ter-lhe parecido mais indigesto do que ao Calligaris), diz que aqui, no contato com seus alunos da então recém-inaugurada USP, aprendeu, vendo-os ”transpor em poucos anos uma diferença intelectual que se poderia supor da ordem de muitas décadas, como morrem e como nascem as sociedades”; e que ”essas grandes subversões da História, que parecem, nos livros, resultar do jogo de forças anônimas agindo no coração das trevas, podem também, num claro instante, realizar-se pela resolução viril de um punhado de crianças bem-dotadas”. Na canção ”Um índio” – um dos momentos de tentativa de superação do pessimismo tropicalista e que, na verdade, se parece muito com esta palestra aqui — eu inseri o verso ”num claro instante”, tirado ipsis litteris da edição brasileira de Tristes trópicos que o próprio Lévi-Strauss (que certamente odiaria ouvir algo seu metido numa canção pop) ajudou a traduzir.

No início desta conversa, distingui entre fazer projetos para o futuro e sonhar. Nossos projetos devem ser no senti do de resolvermos o problema da distribuição de renda entre nós, de amadurecermos uma noção de cidadania, de elevar nosso nível de competência. Nossos sonhos devem ser imensos e de libérrima originalidade. Um jornalista americano, que outro dia me entrevistava, estranhou que, em minhas ambições para o Brasil, eu enfatizasse a originalidade, e não a força, a riqueza ou o poder. De fato, não penso num superdesenvolvimento de nosso poderio militar nem numa dominação econômica de outros povos. Penso no poder transforma dor dos nossos jeitos se apenas sairmos da miséria.

O índio daquela minha canção é o mesmo índio dos árcades e dos românticos — símbolo da nacionalidade que, na Bahia, vemos a cada 2 de julho desfilar em procissão que supera qualquer paródia tropicalista — mas é também o Juruna que se elegia deputado, é um representante da tribo que Egberto Gismonti fora visitar e é um sobrevivente da última chacina ou o espírito de um dos seus mortos; em suma, é um personagem muito mais complexo e com o qual temos muito maior intimidade. E dele se diz que virá ”mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias”. O que será que nos faz pensar, num país atrasado quanto às pesquisas científicas e às conquistas da informática, que podemos daqui antever ou entrever melhor o espírito do homem que saberá organizar belamente sua vida a partir de um sentir-se não num universo, mas, usando a expressão que li no último livro daquele que foi na verdade o primeiro influenciador do tropicalismo - o francês Edgar Morin -, num ”pluriverso polimorfo” que a novíssima ciência (que descobriu os pulsares exatamente no ano 1968) nos insinua?

Depois de tanto falar, e com tanta pose, fica-me faltando explicar porque disse ter sido ou ser o tropicalismo superestimado. Como – se eu aceito falar num evento para o qual se convidaram verdadeiros grandes poetas? E como faço tantas referências a autores sérios com tamanho ar de bonomia? E como vinculo as imensas ambições (dignificadas pela citação pertinente de tantos nomes célebres) ao movimento tropicalista? Bom, em primeiro lugar, vale lembrar o que se lia nos muros de Paris em 68: ”Cultura é como geléia: quanto menos se tem mais se espalha”. Não conheço de Unamuno, por exemplo, quase nada além do que usei aqui nesse arrazoado. Uma vez, respondendo a uma minha provocação irresponsável, José Guilherme Merquior nos chamou, a mim e a todos os componentes do mundo dos espetáculos, de subintelectuais de miolo mole. Sempre achei essa expressão bem cunhada. A meu ver ela não perde sua força cômica por eu ser capaz de escrever assim. Mas o que me leva a reafirmar que houve uma superestimação do tropicalismo é a certeza de que, apesar da boutade de Merquior, há um consenso hoje, no Brasil, a respeito da grandeza do fizemos, quando quase nada fizemos além de chamar a atenção para o fato de que temos um dever de grandeza.

Acho que nós, brasileiros, nos contentamos com muito pouco. Os nossos discos daquela época - sobretudo os meus - são de um amadorismo imperdoável. Esse é um problema que vimos tentando superar a pouco e pouco, mas, à medida que conseguimos alguns avanços, os anos desfazem as configurações que deram momentum aos sentidos que insinuamos. Mas ainda acho que eu estar hoje aqui, dizendo o que disse, porta, em combinação rítmica com resto de minhas atividades, algum teor de poesia não de todo desprezível. E essa poesia quer dizer, pelo menos, que há graça em existirmos.

Para finalizar, eu quero dizer uma poesia. São estes versos do poeta romântico maranhense Sousândrade, que se riam para mim meramente enigmáticos se não me parecessem uma formulação adensada do meu próprio pensamento:

Brasil é braseiro de rosas
A União, estados de amor.
Floral: sub - espinhos daninhos
Espinhal: sub - flor e mais flor.

Caetano Veloso.  
 

Conferência proferida no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 26 de outubro de 1993, no contexto do evento Enciclopédia da Virada do Século / Milênio. Uma versão reduzida, sob o título ”Utopia Z”, foi publicada na Folha de S.Paulo, Caderno Livros, 1994.

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005.

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