Diferentemente dos americanos do Norte (1994)
Nosso povo, diferentemente dos americanos do Norte e de
quase todos os europeus, não se identifica com o Estado. Isso pode - se
atribuir ao fato geral de que o Estado é uma in concebível abstração. O Estado
é impessoal: nós só concebemos relações pessoais. Por isso, para nós, roubar
dinheiros públicos não é um crime. Somos indivíduos, não cidadãos. Aforismos
como o de Hegel - ”O Estado é a realidade da idéia moral” — nos parecem piadas
sinistras. Os filmes ela borados em Hollywood repetidamente propõem que se ad
mire o caso de um homem (geralmente um jornalista) que procura a amizade de um
criminoso para depois entregá-lo à polícia: nós, que temos a paixão da amizade
e consideramos a polícia uma máfia, sentimos que esse ”herói” dos filmes
americanos é um incompreensível canalha. Sentimos com D. Quixote que ”lá se
haja cada um com seu pecado” e que ”não é bom que os homens honrados sejam
verdugos dos outros homens”.
Essas palavras que acabei de pronunciar podem parecer
referir - se a nós, brasileiros. E não tenho dúvida de que, se ditas hoje por
um brasileiro diante de brasileiros, podem causar — a despeito da encantadora
elegância com que es tão dispostas, ou principalmente por causa dela — certo
mal-estar. Na verdade, são palavras de uma argumentação sobre o caráter
argentino a que Jorge Luis Borges recorreu mais de uma vez em seus impecáveis
escritos. O fato de que tal argumentação poderia provocar certo constrangimento
mesmo entre os argentinos de 1930 — quando suponho que ela foi pela primeira
vez levada a público - não parece ter passado despercebido do próprio Borges,
que, numa nota de pé de página completando a observação sobre a licença tácita
de roubar dinheiros públicos, faz a ressalva: ”Com provo um fato, não o
justifico ou desculpo”.
Mas, se decidi abrir esta conversa repetindo aquelas palavras
de Borges, não foi porque quisesse criar na sala esse mal - estar — embora,
indubitavelmente, ele me sirva para estabelecer o tipo de comunicação desejado:
se o fiz foi sobretudo porque me interessa ressaltar, antes de mais nada, o
risco que todos corremos — todos nós que falamos em nome de países perdedores
da História — de tomar as mazelas decorrentes do subdesenvolvimento por quase -
virtudes idiossincráticas de nossas nacionalidades. De fato, se olharmos o
texto de Borges de uma perspectiva brasileira, hoje – e apesar da ressalva —,
na medida mesma em que reconhecemos nossa identificação com o retrato que ele
nos oferece dos argentinos, nos damos conta do repúdio que recentemente nos
comprazemos em ostentar em face do conjunto da imagem que ali se nos apresenta
e, sobretudo, às observações específicas de que não somos cidadãos e de que, em
nosso íntimo, roubar dinheiros públicos não constitui crime. O que nos parece
sinistro, isso sim, é o fato de vermos a nossa incapacidade para a cidadania
guindada à condição de contrapartida de uma bela vocação individualista e de
aprendermos que nosso desrespeito aos dinheiros públicos nasce de uma quase
nobre rejeição dessa ”inconcebível abstração” que é o Estado.
No entanto, é justamente uma aproximação desse aspecto
difícil do contato com aquele texto que mais me interessa aqui, neste preâmbulo.
Saber em que medida podemos, sem nos iludir, fazer planos para o futuro - e
mesmo sonhar — a partir de um aproveitamento da originalidade de nossa condição
tomada em sua complexidade desafiadora. Na referência de Borges à estranheza
que nos causa o herói hollywoodiano tão magnificamente descrito por ele como ”geralmente
um jornalista” que usa a amizade como um meio para a delação, e, mais que tudo,
na afirmação, es colhida no Don Quixote, de que ”não é bom que os homens
honrados sejam verdugos dos outros homens”, encontramos alento para encarar a
nossa própria imagem sem nojo. Se a observação sobre os filmes de Hollywood soa
mais como uma confissão pessoal do que como uma constatação sociológica (a
rejeição ao estereótipo do jornalista delator não parece ter tido maior
expressão estatística na Argentina do que no Brasil: os filmes americanos, lá
como aqui, nunca padeceram de problemas de bilheteria por causa disso. Mas
Borges sabia - e nós sabemos - que uma confissão íntima sua pode, a depender do
contexto, revelar mais sobre o gosto argentino do que metros de papel de
cálculos estatísticos), a mera frase colhida no Quixote bastaria — se é verdade
que a nossa vida ou a vida dos argentinos confirma a beleza da forma em que ela
está expressa — para justificar um programa de transformação do mundo nas bases
de uma sensibilidade peculiar aos países do Mercosul. ”Não é bom que os homens
honrados sejam verdugos dos outros homens”, ou, em sua versão simplificada, ”lá
se haja cada um com seu pecado”- o tom dessas enunciações nos leva a admitir
que há algo de sábio em colocar o respeito pela individualidade para além dos
direitos de cidadão. O afeto com que as ouvimos pode decidir sobre sua natureza
de abominável resquício de engodo católico ou de verdadeira intuição do que há
de sagrado a ser preservado na solidão do indivíduo. A palavra pecado é uma
mera marca de atraso ou deve ser vista aqui como representante de um conceito
mais elástico do que aquele de crime: um conceito menos mensurável, qualitativo,
e não quantitativo, e, sobretudo, mais aberto ao perdão ? Não há, por outras
palavras, mais malícia na - do que idéia de pecado — com que cada um pode se
haver na de crime - que é um assunto de toda a sociedade ? Quero chegar a
perguntas de teor semelhante ao da seguinte: em que medida podemos discriminar
o que é, em nós, atraso em relação, por exemplo, às conquistas americanas de
direi tos dos cidadãos do que é vantagem nossa por não termos aquela obsessão,
que é uma obcecação, que os americanos têm de considerar passíveis de
julgamento público as mais íntimas, nuançadas e sutis ações do âmbito privado ?
Não sei a resposta para tal tipo de pergunta, mas seguramente não estou
satisfeito com as respostas que se tornaram doentia mente consensuais. Para mim
é óbvio que os Estados Uni dos, ao superar a situação de racismo
institucionalizado, em poucas décadas tinham um negro como chefe do Estado
Maior das suas Forças Armadas, três prefeitos negros nas suas três maiores
cidades, muitas aeromoças negras em seus aviões e crianças negras em seus
anúncios de televisão - enquanto nós não temos generais negros sequer e o nosso
único governador negro, o do Espírito Santo, teve sua filha barrada na entrada ”social”
de um prédio na capital do seu estado ; mas isso não nos deve levar a pensar
que institucionalizar o racismo teria sido necessariamente melhor para nós: o
que faz a enorme diferença entre o nazismo e outras formas de perseguição
assassina de raças e minorias é o fato de, no caso do nazismo, esses massacres
serem oficiais. Por outro lado, é igualmente óbvio para mim, ser absolutamente
insana a pretensão de colocar ”o povo”, como eles dizem lá, contra um homem que
teve a infelicidade de ter em seu quarto de hotel às duas da manhã uma mulher
que foi até ali por livre e espontânea vontade, mas depois apresentou queixa de
estupro aparentemente porque disse Não no último momento. Uma americana
interessantíssima, Camille Paglia, que aliás recorre freqüentemente às suas
origens católicas e mediterrâneas para contrapor - se a essas versões modernas
de puritanismo, trata com muito humor (e rancor) essa idéia de assumir o não
dito por uma mulher como NÃO mesmo. Essas perguntas, esse olhar de perto o
pequeno trecho do texto de Borges vêm por conta da minha ambição de fazer aqui
algo tão fora de moda no nosso finzinho de século — finzinho também de milênio
—, algo tão em desuso e desprestigio que temo que seu mero anúncio soe como uma
aberração: falar em tom DE PROFECIA UTÓPICA.
O desejo de esboçar novas utopias deve nascer em mim menos
da necessidade de contrastar com esse ambiente desencantado do que da
responsabilidade de compensar minha própria participação na criação do
sentimento de desencanto. Refiro-me aqui à minha atuação em música popular
desde meados da década de 60 e, sobretudo, às atitudes algo escandalosas e algo
superestimadas que, no final daquela década, ganharam o apelido de tropicalismo.
Esse movimento, no que me diz respeito, teve todas as características de uma
descida aos infernos. Para entender isso que acabo de dizer, é necessário
considerar o clima da MPB do meio dos anos 60, ou seja, os desenvolvimentos do
samba - jazz, o surgimento da canção engajada e, finalmente, a esdrúxula
conjugação dos dois, como uma espécie de otimismo superficial e ingênuo se
comparado com a densidade da bossa nova. Claro que é a bossa nova que tem fama
de otimista: as canções de protesto, com ou sem convenções rítmicas jazzísticas,
é que trouxeram as referências explícitas à miséria e à injustiça social e o
tom crítico. Não quero aqui fazer como esses filósofos franceses que começam
ameaçando o senso comum dizendo, por exemplo: ”comumente se pensa que Pelé é um
atlético negro que joga futebol e Xuxa uma loura bonitinha que ficou mais loura
e mais bonitinha”; e, quando era de esperar que então dissessem ”Pelé é uma
lourinha e Xuxa é um negrão”, concluem com algo como ”mas o fato é que vemos
Pelé, nos vídeos de sua fase áurea, tocar o gramado com leveza ao chegar de
volta de seus saltos acrobáticos, enquanto Xuxa usa roupas que são uma espécie
de paródia sé ria de uniforme militar”, ou seja, nada dizem que possa valer por
um desmentido do consenso. Parecem não querer nada além do frisson de sugerir
um paradoxo - e vê-lo em seguida esfumar-se. Espero, ao contrário, poder
convencer os aqui presentes de que, do ponto de vista dos que fizeram o tropicalismo,
a bossa nova de João Gilberto e Antônio Carlos Jobim significava violência,
rebelião, revolução e também olhar em profundidade e largueza, sentir com
intensidade e coragem, querer com decisão. E tudo isso implica enfrentar os
horrores da nossa condição: ninguém compõe ”Chega de saudade”, ninguém chega
àquela batida de violão sem conhecer não apenas os esplendores, mas também as
misérias da alma humana.
Em 1971, na fase final de meu exílio londrino, vim ao Brasil
a pedido de João Gilberto para gravar com ele e Gal Costa um programa especial
para a televisão. Numa conver sa depois da gravação, João me disse mais ou
menos o seguin te (na verdade, algumas frases ficaram marcadas tão nitida mente
em minha memória que ainda podem ser repetidas aqui literalmente):”Caitas, você
enfrentou tanto sofrimen to. Com vocês foi tudo assim de uma vez só. Que horror
!... Eu sei o que é isso. Comigo, Caitas, foi a mesma coisa. Vo cê pensa que
não é a mesma coisa ? Só que comigo foi aos pouquinhos, essa prisão, esse
exílio, essa violência, todo dia, todo dia”.
A atmosfera bem-pensante que encontrei nos ambientes de
música popular em 1966, quando cheguei ao Rio, decididamente não fazia jus ao
que está contido nessa confissão. Essa atmosfera insinuava que os grandes
talentos jovens se resguardassem, dissessem o que era certo dizer e fizessem o
que era certo fazer. Não é assim que se faz um Noel Rosa, não é assim que se
faz um Dorival. Não é assim que se faz um Wilson Batista. E certamente não é
assim que se faz um João Gilberto, não é assim que se faz um Tom Jobim. Era um
otimismo tolo crer na força dos ideais de justiça social transformados em
slogans nas letras das músicas e em motivação de programas de atuação. Os
tropicalistas em que nos tornamos são da linhagem daqueles que consideram tolo
o otimismo dos que pensam poder encomendar à História salvações do mundo.
Naturalmente não víamos o tolo otimismo como o motor das atitudes de Nara Leão
ou Carlos Lyra — ambos bossa - novistas de primeira hora e grandes como os
grandes — quando eles, em parte influenciados pelo Cinema Novo e pelo Teatro de
Arena, iniciaram o movimento de politização da moderna canção brasileira pós -
bossa nova: era, por um lado, a força dos temas sociais que se impunha, por
outro, a força da música popular brasileira, essa onda imensa que já vem de lá
de trás e que não pode deixar de arrastar tudo ; víamos antes o risco de que
aqueles artistas e suas obras fossem reduzidos à ideologia difusa que eles
criam servir. Temíamos também que assim os lessem nossos companheiros de
geração. Mas também aqui, dada a força dos talentos individuais e o sentido profundo
que percebíamos em tantas das suas escolhas, encorajávamo-nos a fazer o que
afinal fizemos, mais para revelar dimensões insuspeitadas na beleza de suas
produções do que para negar-lhes o valor. Mas essas revelações nos aproximavam
ora do sentimentalismo real e hipócrita dos puteiros, ora da voz bruta das
lavadeiras da tradição, ora do comercialismo de Roberto Carlos e do significado
da música na TV, ora do homossexualismo de Assis - Valente, ora da mera
macaqueação dos americanos etc. Enfim, muitas identificações não aceitáveis
para eles - embora nós soubéssemos que disso também se fazia a sua possível
grandeza -, e não é por outra razão que muitas vezes eles (nossos colegas e
suas obras) vieram a aparecer como objetos das colagens tropicalistas: tanto
Roberto Carlos em pessoa quanto a Carolina, de Chico Buarque, se tornaram
personagens de canções tropicalistas. Não foram os únicos (Carmen Miranda,
Paulinho da Viola, Noel Rosa me vêm à lembrança sem es forço, mas há muitos que
foram referidos de modo cifrado ou foram objeto de imitação ou caricatura), mas
o caso da Carolina merece talvez atenção especial. A Carolina apareceu na letra
da canção ”Baby” entre ”gasolina” e ”margarina”, na canção ”Marginália II”(música
de Gil com letra de Torquato Neto) junto a uma ”miss”, e, finalmente, foi gravada
por mim numa versão que fazia da própria canção uma personagem que, passando
pelas dependências oficiais da presidência militarizada da República (afinal, a
canção tinha sido gravada por Agnaldo Rayol como uma das ”favoritas do
presidente” Costa e Silva), veio cair num programa de calouros mirins da
televisão baiana no meu período de confinamento em Salvador, depois da cadeia,
tornando-se assim a representante da depressão nacional - e da minha depressão
pessoal — pós - A1-5.
Eu imaginava, e depois vim a saber, que ela não era uma das favoritas
de Chico Buarque. Mas ter tido uma visão aguda sobre o sentido mais profundo da
arte desses nossos colegas não fazia — não faz — de nós, necessariamente,
artistas melhores que eles: muitas vezes - quem sabe a maioria das vezes — é
quando se é inocente da grandeza que se é grande de fato. Nós queríamos trazer
a tudo que dissesse respeito à música popular a luz da perda da inocência e,
para isso, fizemos muitas caretas e usamos muitas máscaras. Eu cria firmemente
- e o tempo o confirmou — que Chico Buarque ou Edu Lobo ou Dori Caymmi ou
Milton Nascimento não sairiam apequenados desse episódio: as assombrações, o
reconhecimento do horrível tendem a engrandecer a arte, porque é da natureza da
arte estar sozinha em seu poder de redimir. Assim, digam o que disserem, nós,
os tropicalistas, éramos pessimistas, ou pelo menos namoramos o mais sombrio
pessimismo. Sobre os joelhos do monumento construído como uma colagem cubista
na letra da canção ”Tropicália”— de onde saiu o nome do movimento - diz-se que ”uma
criança sorridente, feia e morta estende a mão”. É impossível imaginar uma
combinação de palavras para serem cantadas numa canção popuIar com maior carga
de dor sem esperança, impressão que se intensifica quando lembramos que o ”monumento”
a que se alude no texto está ali naquele lugar nenhum, como um marco nacional
que pudesse representar o Brasil estaria nessa praça, num salão nobre (acredito
que é por essa razão que a expressão ”alegoria” foi tantas vezes repetida -
para meu desagrado — a respeito do tropicalismo). Hoje, mais do que nunca, a
imagem dessa criança, que ainda pede quando já de nada vale que se lhe dê, e é
feia e sorri, nos aparece como capaz de dizer, a seu modo, num dos pontos da
composição da colagem, tudo sobre o todo que, por sua vez, é abordado de outros
modos e de diferentes distâncias em outros pontos, sem que o conjunto defina
uma forma inteligível que se imponha de modo absoluto.
Dor sem esperança !... Quantas vezes ouvi dizer que o Brasil
cansou de ser o país do futuro, ou que o Brasil era o país do futuro mas o
futuro já chegou, já passou e o Brasil ficou aqui. O otimismo evidente da bossa
nova não é tolo – e é por isso que ela nem sequer nos parecia otimista quando estávamos
à beira de mergulhar no tropicalismo. O otimismo da bossa nova é o otimismo que
parece inocente de tão sábio: nele estão — resolvidos provisória mas satisfatoriamente
— todos os males do mundo.
De tal otimismo podemos dizer, lembrando Nietzsche mesmo,
que é trágico. O cenho cerrado da esquerda festiva parece sério, quando é
apenas bobo. O tropicalismo sempre quis estar à altura da bossa nova: eu vivo
repetindo que o Brasil precisa chegar a merecer a bossa nova. A nossa desci da
aos infernos se efetuou como estratégia de iniciação ao grande otimismo - ainda
não superamos a fase sombria ini ciada em 1967. ”Alegria, alegria” era um
começar a mexer no lixo - claro que ela trata da alegria real, mas apenas para
ter mais eficácia no tratamento do tema fundamental que é o mesmo de ”Superbacana”
e de ”Geléia geral”, a saber, uma visão autodepreciativa da nossa vida
cotidiana e do seu quase nenhum valor no mundo. Zé Celso costumava falar no caráter
masoquista da estética tropicalista com sua reprodução paródica do olhar do
estrangeiro sobre o Brasil e sua eleição de tudo o que nos parecesse a
princípio insuportável.
Eu mesmo lembro um exemplo revelador: na canção ”Baby” (cuja
letra me foi quase toda ditada por Maria Bethânia), eu usei a palavra ”lanchonete”
porque ela me dava náuseas quando lida em marquises ou ouvida em conversas. Ela
me parecia uma mistura monstruosa de francês com inglês e era como o anúncio de
uma vulgaridade intolerável que começava a tomar conta do mundo. Coloquei - a
na canção e, se não posso dizer que aprendi a amá-la como o personagem do Dr.
Strangelove aprendeu a amar a bomba, é certo que passei a usá-la com natural
delicadeza, como se incluí-la numa canção significasse redimi-la — na verdade,
eu creio que assim é. A primeira Coca-Cola da música popular brasileira, a de ”Alegria,
alegria”, passou por caminhos semelhantes: eu detestava Coca-Cola e continuei
detestando Coca-Cola até bastante tempo depois de ter incluído seu nome na
famosa canção - na verdade, nunca cheguei a gostar muito desse refrigerante,
apenas usei-o, a partir de determinado momento, como substituto do álcool para
acompanhar o cigarro. Mas foi considerando o valor simbólico da Coca-Cola, que
para nós queria dizer século XX e também hegemonia da cultura de massas
americana (o que não deixava de ter seu teor de humilhação para nós), que a incluí,
um pouco à maneira dos artistas plásticos pop, na letra da canção; e, afinal, o
que é que me chamou a atenção no filme Terra em transe, de Glauber Rocha, senão
a ostentação barroquizante de nossas falências, de nossas torpezas e de nossos
ridículos? De todo modo, é numa canção tropicalista que se repete
obsessivamente a frase ”aqui é o fim do mundo”— de fato, nunca canções disseram
tão mal do Brasil quanto as canções tropicalistas, nem antes nem de pois. Com
exceção, é claro, das canções posteriormente cria das pelos próprios
compositores do movimento ou pelos seus descendentes algo remotos: os melhores
roqueiros dos anos 80. É de volta de tais infernos que pretendo trazer visões
utópicas.
Quando saímos do Brasil em 1969 rumo ao exílio em Londres,
passamos antes por Portugal. Meu amigo Roberto Pinho me pediu que o
acompanhasse até Sesimbra, onde ele tinha um encontro com um senhor português
que cuidava do castelo medieval da colina e era tido como alquimista. Lembro de
umas ovelhas de chifres revirados, que se punham perto do velho, como se fossem
animais de estimação. E do mar muito azul rodeando de longe as muralhas de pedra.
A certa altura, Roberto pediu que eu cantasse ”Tropicália” para o alquimista
ouvir. Não lembro se cantei ou se apenas recitei as palavras da letra. Mas
estou seguro de que comuniquei a íntegra do texto ao português. Ao final, este
me olhou com uma expressão exultante e, com uma piscadela cúmplice a Roberto,
apresentou a mais insólita interpretação de ”Tropicália” de que eu já tivera
notícia. Tudo na letra era tomado à letra e valorado positivamente. ”Eu
organizo o movimento”, por exemplo, significava que, não necessariamente eu,
mas alguma força que podia dizer ”eu” através de mim, organizava um importante
movimento, e ”inauguro o monumento no Planalto Central do país” era clara e
meramente uma referência a Brasília como realização da profecia de D. Bosco. E
pronto. Nenhum traço de ironia era notado, nenhum desejo de denúncia do horror
que vivíamos então. Não lembro se sublinhei o trecho ”uma criança sorridente,
feia e morta estende a mão” quando tentei explicar-lhe que minhas motivações
para compor a canção tinham sido o oposto de um ufanismo, mas é certo que
tentei discutir o assunto. Ele, que a princípio me parecera não imaginar outra
razão possível para que eu escrevesse tal canção a não ser a certeza feliz de
um destino grandioso para o Brasil, não se mostrou surpreso diante de meus
protestos e, rindo para Roberto e repetindo ”eu sei, eu sei”, arrematou: ”O que
sabem as mães sobre seus filhos?”. Naturalmente, eu entendi que ele estava
certo de conhecer melhor as intenções da minha composição do que eu. Isso não
era novidade para mim: eu já sabia então que as canções têm vida própria e que
outros podem revelar-lhes sentidos de que seu autor não teria suspeitado.
Tampouco me era de todo desconhecido o aspecto positivo que aquela canção dava
à sua representação do Brasil. E, mais que isso, eu não era inocente do fato de
que toda paródia de patriotismo é uma forma de patriotismo as sim mesmo - não
eu, o tropicalista, aquele que antes ama o que satiriza (e, lembrando aqui da
Coca-Cola e da lanchonete, não satiriza facilmente o que odeia). Mas que aquele
homem não quisesse levar em consideração que na minha canção eu descrevia um monstro
e que esse monstro confirmara sua monstruosidade agredindo - me a mim era algo
que à medida que ia acontecendo ia-se-me tornando mais fascinante do que
irritante.
Mas também eu não estava ali de todo inocente do fato de que
eu não era estranho aos interesses que uniam meu amigo Roberto e aquele suposto
alquimista. O ponto de ligação entre eles era o professor Agostinho da Silva,
um intelectual português que foi perseguido por Salazar e veio para o Brasil,
onde participou da formação da Universidade da Paraíba, da Universidade de
Brasília, e que, durante o período dos grandes projetos culturais da
Universidade da Bahia no fim dos anos 50 e início dos 60, organizou e dirigiu o
Centro de Estudos Afro-Orientais em Salvador e disseminou uma forma de
sebastianismo erudito de inspiração pessoana que atraiu algumas pessoas que me
pareciam atraentes. Não foi sem pensar neles que eu incluí a declamação de um
poema de Mensagem, de Fernando Pessoa, no happening que foi a apresentação da
canção ”É proibido proibir” num concurso de música popular na televisão em
1968. Um dos pontos mais ricos em sugestões para o estudo do tropicalismo foi
essa apresentação de uma composição primária em que eu, por sugestão do
empresário Guilherme Araújo, repetia a frase que os estudantes franceses do
maio de 68 tomaram aos surrealistas, acompanhado do conjunto de rock mais
moderno do Brasil de então (e o mais e melhor influenciado pelos Beatles) — os
Mutantes —, com uma introdução planejada pelo músico erudito Rogério Duprat inspirada
na música de vanguarda. Eu usava uma roupa de plástico brilhante verde e preta
e colares de correntes e tomadas, e meu cabelo parecia uma mistura do de Jimi
Hendrix com o dos seus acompanhantes ingleses no Experience; no meio do número,
eu gritava o poema de Pessoa:
Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.
Que importa o areal e a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É O que eu me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.
Mas eu não tinha embarcado na viagem desses sebastianistas, nem como estudioso nem como, digamos assim, militante. Apenas me parecera interessante que houvesse gente falando no Reino do Espírito Santo e numa futura civilização do Atlântico Sul numa época em que todo o mundo falava em mais-valia e nas teses científicas de transformar o mundo através da classe operária. Essas coisas me atraíam não por místicas (tenho um espontâneo horror de misticismos), mas por excêntricas. E sobretudo foi por causa disso que eu entrei em contato com o livro Mensagem, que revelou para mim a grandeza da poesia de Fernando Pessoa. Conhecia o Fernando Pessoa do ”Poema em linha reta” e da ”Ode marítima”, também o do poema do outro Menino Jesus e, naturalmente, o poeminha do fingidor: eram os poemas que as meninas citavam, que muita gente lia em voz alta para mim, cujos trechos eram repetidos de cor e que uma vez ou outra eu mesmo lia no exemplar de algum colega de faculdade. Sabia dos heterônimos e de algum folclore sobre sua vida e juntava aqueles poemas ao repertório de poesia brasileira moderna (Vinicius, Drummond, Bandeira e Cecília, e depois também Cabral) e isso era (com os negros de Castro Alves e os índios de Gonçalves Dias mais os ciganos de Lorca) toda a poesia que eu conhecia. Com Mensagem era o Pessoa do poeminha do fingidor que se adensava. Cada peça curta era um labirinto de formas e sentidos e, mais importante que tudo, não me parecia possível que se demonstrasse mais fundo conhecimento do ser da língua portuguesa do que nesses poemas. Meu poeta favorito - e o que eu mais extensamente li — era João Cabral de Melo Neto. E diante dele tudo parecia derramado e desnecessário. Assim também os poemas de Álvaro de Campos — que eram os mais queridos das meninas. Mas com Mensagem eu me sentia em presença de algo mais profundo quanto a tratar com as palavras — por causa de cada sílaba, cada som, cada sugestão de idéia parecer estar ali como uma necessidade de existência mesma da língua portuguesa: como se aqueles poemas fossem fundadores da língua ou sua justificação final.
Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
"Que farei eu com esta espada ?”
Ergueste-a, e fez-se.
O fato de este livro (o único que Pessoa publicou em vida na
nossa língua) ter como tema o mito da volta de d. Sebastião e da grandiosidade
de um adiado destino português enobrecia, a meus olhos, os interesses daquele
grupo de pessoas que cultivavam tais mitos. De modo que, em Sesimbra, eu passei
gradativamente do espanto de ver minha canção ”Tropicália” resgatada por uma
visão que anulava sua contundência crítica à relativa adesão à perspectiva
dessa visão: comecei a ver ”Tropicália” - e a pensar o tropicalismo — também à
luz do sebastianismo, ou melhor, da minha versão do sebastianismo, que
consistia em minhas adivinhações (de resto ainda hoje pouco informadas) do que
fosse o sebastianismo deles. Eu sabia que essa dimensão também estava em Glauber
e, naturalmente, em Ariano Suassuna; aquele, um tropicalista assumido, este, um
inimigo mortal do tropicalismo. Eu, no entanto, sempre fui cético.
Já no meu segundo ano de exílio em Londres, por causa do
mesmo Glauber - que então filmava Cabeças cortadas na Catalunha e queria
conversar comigo pessoalmente sobre nobres tarefas e mesquinhas fofocas do
cinema brasileiro — fui a Barcelona. Por causa dos amigos que fiz ali através de
Glauber, vi a amargura com que o povo da Catalunha sofria sua anexação a
Castela e a humilhação de ter a sua língua materna esmagada pelo castelhano.
Ainda era a Espanha de Franco e, na Catalunha, era a época da nova canção cata
lã de Pi de La Serra, Joan Manuel Serrat e Pau Riba. Um dia ouvi de um dos
produtores do filme de Glauber a versão da descoberta da América que começava
por dar Colombo como catalão de nascimento. Ele o afirmava com a mesma paixão
com que ouvi alguns sebastianistas brasileiros e portugueses falar em provas de
que Colombo era português. Só anos depois é que um amigo no Brasil me deu de
presente um livro de Unamuno em que ele falava de Portugal e da língua
portuguesa com muito carinho e muita delicada observação (ressaltar que a
palavra ”luar” não tem tradução em nenhuma outra língua não é o menos
interessante dos exemplos); pois bem, nesse livro Unamuno falava da sensação de
culpa que o pensamento das línguas portuguesa e catalã traz à alma de um
escritor espanhol. Mas, naquele momento, em Barcelona, eu senti a identificação
de Portugal com a Catalunha nas suas criações de fantasias compensa tórias. O
poema ”Os Colombos”, do Pessoa de Mensagem, redime esse sentimento e, na sua
grandeza, é já uma superação de toda a inferioridade ao passo que propõe uma
transcendência da mágoa.
No entanto, o português não é o catalão. Não só Portugal não
ficou anexado à Espanha, como espalhou sua língua pelo mundo. E aqui estamos,
falando português neste imenso pedaço do continente sul-americano. Somos muitos
milhões. Nunca chegamos a ser um país bom. E grande parte de nossas mazelas vem
do fato de sermos portugueses. Ou, melhor dizendo, vem no bojo da maré baixa da
cultura mediterrânea ou sul-européia, que, por sua vez, é uma marola da grande
fuga da onda civilizatória das regiões quentes para regiões frias: Babilônia,
Egito, Grécia e Roma deram lugar a Inglaterras e Alemanhas e Canadás; Roma
ainda está inteira em nós a assistir à aclimatação de suas conquistas em
territórios bárbaros, onde as idéias de agasalho, presteza e precisão se
superdesenvolveram comandadas pela vitalidade de homens determinados, os quais
como que trans formaram a chama da corrida humana em implacável e penetrante
luz fria. O Renascimento, o Ocidente moderno, é fortemente mediterrâneo --
Leonardo e Camões -, mas seus desenvolvimentos boreais é que nos trouxeram até
onde estamos, para o bem e para o mal, sobretudo por causa da figura de Lutero.
Os Estados Unidos são a última expressão dessa grande movimentação que, ao
atingir o Extremo Oriente pelo Japão e Tigres Asiáticos neocapitalistas e pela
China comunista, está, parece, em vias de fazer algum tipo de desvio de rota ou
virada de orientação. Não temos como mensurar quanto devemos a esses minuciosos
e limpos pecadores do Norte - Prometeus do fogo gelado que nos acenam com
comunicações rápidas e computadorizadas de informações cada vez mais complexas
e mais fácil mente manipuláveis. E também com prescrições legais que têm em
conta uma pluralidade de comportamentos nunca antes imaginada numa sociedade
humana. Cresci desprezando os entreguistas que adoram servir de lacaios do capital
americano: na sua forma arrogante de mostrar submissão vejo a mais abominável
expressão de heteronomia. Mas sinto uma verdadeira identificação com americanos
do tipo de Gertrude Stein, Walt Whitman, John Cage (e também, em larga medida,
os artistas plásticos pop dos anos 60), que apostam numa afirmação da América.
Enquanto muitos dos nossos amigos americanos ”liberais” de esquerda me causam
não raro certo dissabor quando fazem uma mistura de mistificação da Europa com
mistificação do ”Terceiro Mundo” para negar o que há de perigosamente sugestivo
na experiência americana. Quando Camille Paglia diz que detesta a opinião
pseudo-esquerdista dos meios universitários americanos de que a ”Grande, Má e
Feia América é uma sociedade corrupta, vazia e gananciosa que toda essa gente
maravilhosa e benévola do resto do mundo olha com nojo”, não posso deixar de
concordar com ela. Amo os Estados Unidos. Apenas não exijo do Brasil menos do
que levar mais longe muito do que se deu ali e, mais importante ainda, mudar de
rumo muitas das linhas evolutivas que levaram até espantosas conquistas
tecnológicas, estéticas, comportamentais e legais. Sei que, por um lado, o
Japão fez e faz isso em escala considerável, principalmente no que diz res
peito ao aspecto tecnológico, mas não só, e, por outro, que o Brasil não parece
encontrar sequer os meios de esforçar - se para se tornar capaz de fazê-lo. Mas
há algo nos Estados Unidos que não encontramos no Japão: a América, o trans
lado, a terra nova e os grandes espaços ; a implantação de uma idéia em terreno
tornado virgem pela incapacidade mesma de considerar as culturas indígenas; a
imigração variada, européia e asiática, que trouxe mais nuances e diferentes
problemas ao panorama social já na base violenta mente problematizado pela
vinda forçada dos negros; um ar de liberdade de movimentos que nenhum lugar de
cultura autóctone sedimentada pode de fato conhecer - e isso o Brasil tem em
comum com os Estados Unidos e com todos os países americanos. E talvez o caso
do Brasil nos induza a esperar dele experiências mais extremas.
E aqui é o momento de tentar fazer o que fiz questão de
frisar como sendo perigoso naquele arrazoado de Borges a respeito do modo de
ser argentino: considerar vantajosas até mesmo as condições adversas com que a
História nos presenteou; fazer, por exemplo, do fato de não termos sido eficientes
o suficiente no extermínio dos índios como os nossos irmãos do Norte -- cuja
eficácia nesse campo aprendemos a aplaudir nos filmes em que outro herói
hollywoodiano prova ser tão freqüente quanto o jornalista delator: o matador de
índios -, e mesmo do fato de vermos que ainda estamos efetuando, com atraso,
esse extermínio, uma oportunidade de nos tornarmos índios ao passo que nos reconhecemos
ultra-ocidentais. E aqui quero citar um daqueles filósofos franceses cujas
manias caricaturei mais cedo, mas que parece ser mesmo um grande sujeito. É
Gilles De leuze, que, naquele hilariante livro candidamente chamado O que é a
filosofia?, numa inacreditavelmente convincente jogada retórica, diz do
filósofo que ele ”deve tornar-se índio para que o índio não sofra a miséria de
ser índio”. Mas só ganha o direito de arriscar tais inversões quem se sabe engajado
num sonho grande e luminoso. Só na perspectiva do país artista superior que nós
temos o dever de perceber que a História nos sugere que sejamos é que podemos
revalorar aspectos do nosso atraso como sinais de que casualmente escapamos de
uma escravidão maior no misterioso desvelar do nosso destino.
Sei que posso ter apenas aumentado a confusão ao sublinhar o
namoro do tropicalismo com o pessimismo profundo. Não apenas uma paródia de
samba exaltação é ainda um samba exaltação assim mesmo, mas também, e talvez
sobretudo, Jorge Ben - o autor da totalmente afirmativa e isenta de intenções
irônicas ”País tropical”– era - como Jorge Ben Jor hoje é — nosso herói
estético e psicológico. Contudo, eu creio ser quase desnecessário dizer que a
alegria pura - beleza pura — de Ben / Ben Jor é da mesma natureza daquela da
bossa nova, apenas aqui num caso individual de expressão extrovertida agressiva.
De resto, Jorge Ben surgiu no rastro da bossa nova e foi ainda sob sua luz que
criou a variante primária e vitalista de samba moderno que, mais tarde, pôde
casar com formas de rythm'n'blues, soul e funk. A canção ”País tropical” é mais
do que o avesso da canção ”Tropicalia”: ela é o canto do homem alegre do país
que os tropicalistas tinham em mira no seu primeiro movimento de tentativa de
sair do reino das sombras. O artista Jorge Ben Jor é o homem que habita o país
utópico trans-histórico que temos o dever de construir e que vive em nós. No
entanto, as minhas canções ainda são predominantemente longos e enfadonhos
inventários de imagens jornalísticas intoleráveis do nosso cotidiano usadas
como autoflagelação e como que olhadas de fora: até essa coisa desagradável de
pronunciar o nome de outro país como emblemático repositório de mazelas sociais.
Eu odeio esse negócio de dizer o nome do Haiti naquela canção. Outro dia li que
o meu colega Aldir Blanc - co-autor de tantos sambas magníficos - reivindicava
a autoria da comparação do Brasil com o Haiti (e talvez da minha referência à
minha ”Menino do Rio” ligada a isso): eu não brigaria por ela. Só suporto — e
mal — essa referência explícita ao Haiti (o único país americano onde uma
revolução escrava foi vitoriosa e fundadora da nacionalidade) porque meti ali a
forma verbal ”reze”. Mas — embora talvez para pessoas parecidas comigo (pois me
custa crer nessas coisas) seja difícil engolir esta - nós somos escravos das
canções que fazemos: elas são canções, querem nascer do mundo das canções que é
um mundo com características próprias, nós freqüentemente as queremos fazer do
modo como não queríamos que elas fossem. O país utópico, eu o quero abordar
aqui.
Uma das vantagens da nossa abominável situação é podermos
pensar que tudo ainda está por fazer. Dito assim, isso parece um lugar-comum
estéril. E, pior, pode trazer a seguinte pergunta como complemento: e se
justamente o Brasil tivesse sido uma grande oportunidade que se perdeu
irremediavelmente, deixando-nos apenas com a degradação social que é
demasiadamente complexa para servir de papel em branco ou ponto de partida, ou
seja, se estivermos diante da mera entropia, e não do caos inicial de onde se
pode extrair uma ordem bela? O fato é que tanto nas canções de 67 como nas de
agora o que eu vejo é a tensão entre esses dois últimos termos. Entropia — caos.
Mas eu, eu mesmo, não o mero escravo das canções, penso os aspectos entrópicos
como problemas a superar - deveres severos: temos de começar por ler com
singeleza os sinais de trânsito nas cidades. Por outro lado, amo o caos; não
apenas como caldo de onde se destilará a nova ordem bonita, mas como desordem
atual. O adjetivo ”bonita” escolhido para qualificar a futura ordem desejada me
parece revelar que o colorido do caos - o desequilíbrio onde viceja a violência
e a perversão e também o talento excepcional e a inventividade, os caprichos e
os relaxos, as vanguardas estéticas e os exotismos sexuais —, o colorido desse
caos, dizia, é absolutamente indispensável à composição da nação sonhada, da
estamparia das vestes do povo desse país do futuro. Ninguém disse melhor a
natureza do nó que estamos a tentar desatar do que Antonio Cicero — um
intelectual de formação filosófica acadêmica que trabalha também com música
popular — nestas palavras que reli citadas por Carlos Diegues num belo artigo
sobre futuro e Brasil: ”Podemos dizer que o paradoxo do Brasil está em, sendo
capaz de oferecer a prefiguração da solução de alguns problemas que poucos
países conseguem efetivamente enfrentar, não ter conseguido efetivamente
enfrentar alguns problemas que muitos outros países já resolveram total ou
parcialmente”.
Tudo o que eu disse - e tudo o que estou por dizer - está
contido nessa fórmula de Cicero; e não creio que eu possa dizer melhor: apenas
dou testemunho de como em mim esse modo de encarar o Brasil se desenvolveu com
o colorido próprio das minhas idiossincrasias e das minhas limitações.
Todo povo frustrado pode fazer fantasias compensatórias. Mas
o que pensar quando estamos na situação de criar tais fantasias e temos como
matéria real um país novo, imenso, tropical, mestiço e de fala portuguesa -
quer dizer, usando uma das línguas do Sul da Europa que mais têm sofrido
humilhações históricas depois de ser a que mais se espalhou pelo mundo, a
língua em que se escreveu o épico inaugural da dominação européia sobre o globo,
o grande épico da expansão ocidental? E, no entanto, freqüentemente somos
catalogados como não fazendo parte do ”Ocidente”. Devemos pensar assim: o mundo
em que vivemos parece - se mais com o mundo da história remota da humanidade,
quando violentos avanços tecnológicos foram feitos, do que com Grécia e Roma.
Estas se entregaram ao cultivo das artes, das leis e das idéias, num ambiente
tecnologicamente estável amparado na mão - de - obra escrava. O curioso é que
qualquer desvio extra - ocidental do curso da História atual - mesmo que seja a
temida e pouco falada liderança da China sobre os não - ocidentais numa ação
contra os atuais países ricos (eventualidade que já ouvi referida em tom alar
mista na boca de conservadores americanos e em tom auspicioso na boca de
sebastianistas portugueses) - - poderá levar a uma retomada da ênfase greco-romana
nas virtudes pessoais e sociais, em detrimento do furor tecnológico. Ou seja:
pode levar o Ocidente de volta ao Ocidente.
Um amigo meu, um dos mais significativos representantes da
contracultura dos anos 60, que sempre me impressionou pela inteligência ao
mesmo tempo livre e realista, enlouqueceu. Antes de sua loucura tornar - se
fato consumado, ele me confidenciou que tinha chegado ao limite de sua capa
cidade de pensar, em busca de uma alternativa para a cultura ocidental, e não
conseguia sair dela: suas respostas e soluções eram intransponíveis. No entanto,
muito de sua energia gasta no esforço de ir além não apenas da injustiça tinha
sido social, da mediocridade e do subdesenvolvimento, mas também do estágio em
que encontrara a religião, o sexo e a própria concepção do lugar do homem na
natureza. Sendo paulista, o fato de ser brasileiro era para ele um acaso de
muito pouca importância para que fosse sequer considerado infeliz: a
perspectiva brasileira e a língua portuguesa eram para ele uma ferramenta
neutra. É assim que eu quero pensar. Mas, desde o início, sempre considerei
meus desejos de mudar o mundo como sinal de um movimento interno da História do
Brasil, e cada pensamento ambicioso meu um esboço de aventura da própria língua
portuguesa. Eu sei que os cultores de mitos medievais que sirvam de inspiração
para extremados nacionalismos modernos são a semente das regressões totalitaristas:
um professor português de literatura, autoridade em história das relações entre
modernismo brasileiro e modernismo português, me disse um dia a respeito do
professor Agostinho da Silva que, a princípio, temeu que suas idéias, afinal,
se identificassem com as de Salazar. Às vezes algumas afirmações instigantes de
Ariano Suassuna sobre o Brasil a mim me soam aparentadas com a famosa frase de
Salazar ”prefiro ver Portugal pobre do que Portugal diferente”. Ao contrário,
eu penso que o Brasil deve tornar-se o mais diferente de si mesmo que lhe for
possível, para encontrar-se. E também saber livrar-se da pobreza que desumaniza
sua população. Devemos, em primeiro lugar, aprender a observar as formalidades
relativas aos direitos humanos e nos tornar destros para a tecnologia. Devemos
estar à vontade na versão de Ocidente que veio do Norte. E superá-la. Não se
trata de uma adaptação ao que é ocidental, como se espera de países asiáticos e
africanos. Somos ocidentais. Mas Ocidente sempre significou transcendência da
particularidade cultural, ambição de tomar nas mãos a história da espécie.
Assim, amar a língua portuguesa é amar sua capacidade como instrumento
universal; falar português é livrar-se da prisão do português.
Outro dia, um economista americano esteve aqui no Rio - um
que fazia propaganda do livre-mercado como salvador das vítimas do Estado e
aconselhava a que abríssemos nossa rede de vôos domésticos às empresas aéreas
americanas —, esse economista (aliás, um americano negro) esteve aqui e disse
que se orgulhava de só falar inglês e não querer aprender nada de outras
línguas, pois o inglês é a língua do futuro. Ao ler essas declarações, pensei
imediatamente: não é assim que eu amo a língua portuguesa. A língua em que
Fernando Pessoa escreveu: ”O Ocidente, futuro do passado”... Para nós, não se
deve tratar de uma adaptação ao que hoje se chama de Ocidente, mas de uma sua
retomada radical que implique uma sua superação. Nesse estágio está a minha
loucura.
Naturalmente, tenho capacidade para a sensatez: mesmo sem
estudar a Constituição de 88, concluo que há conquistas ali devem ser
defendidas, com unhas e dentes, contra qualquer ameaça — o exemplo indiscutível
que me ocorre é a independência que foi dada ao Ministério Público. Mas não me
sinto inclinado a participar do horror ao capital estrangeiro ou da defesa das
estatais. Quando leio artigos de Roberto de Campos vêm-me à mente, em primeiro
lugar, perguntas. Desde o tropicalismo - desde antes do tropicalismo - que me
interessa saber o que o Brasil diria ao mundo se ele pudesse se fortalecer; o
modelo econômico para chegar a esse fortalecimento sendo de importância
secundária. É evidente que, em 1963, os comandantes da economia mundial não
deixariam o Brasil fazer as reformas que as parcelas minimamente esclarecidas
de seu povo exigiam. Menos ainda a revolução comunista que algumas elites
políticas preconizavam. Aquelas parcelas minimamente esclarecidas estão longe
de ser uma pequena minoria: foram elas que quase elegeram Lula em 89. Mas uma
cubanização do Brasil — com sua extensão territorial, sua industrialização e o
tamanho de sua economia — teria sido uma hecatombe política mundial. Porém, o
que me interessa é perguntar: com uma revolução bem-sucedida, o que o Brasil
daria ao socialismo, o que o socialismo brasileiro daria ao mundo? Hoje é fácil
responder que talvez nada: dado o histórico de nossa incompetência, apenas
somaríamos ao sombrio mundo comunista mais um gigante com cãibras burocráticas
e boçalidade policial. Mas o fato é que nos impediram - e nós mesmos, afinal,
nos negamos — esse caminho e temos sido levados à condição de maior fracasso
econômico do continente, sendo visível o gosto da imprensa americana em opor
nossa inépcia à propalada maturidade atingida, nesse campo, pelo Chile, pelo
México, pela Argentina — e não só! Há um alívio em ver que não é mais preciso
pensar que, para onde for o Brasil, irá a América Latina, pois o Brasil não vai
a lugar nenhum.
No entanto, a escandalosa insensatez também me guia. O já
citado professor Agostinho da Silva costuma dizer que Portugal já civilizou
Ásia, África e América — falta civilizar Europa. Tal inversão petulante
encontra eco dentro de mim. Descartado o risco de ser a expressão do
ressentimento contra a luminosidade boreal vitoriosa, por parte de obscuros perdedores
da História, essa exortação se identifica com minha idéia de radicalização do
Ocidente implicando sua superação. Nessa perspectiva, o Brasil não precisa
provar que tem caráter e é uma promessa de originalidade. Nem a má imagem que
dele se fazem hoje os brasileiros, nem a emigração em grandes números para
países mais ricos podem apagar a força do que somos nem o sentido que tem o modo
como o acaso nos tem tratado. A Irlanda, do meio do século XIX ao início do
século XX, esmagada sob a opressão inglesa, perdeu, por emigração, metade de
sua população. As coisas lá nunca se acertaram: a ira santa contra a Inglaterra
levou os irlandeses até a prática de um terrorismo que não se pode chamar de ”esquerda”.
Ninguém, no entanto, ao pronunciar o nome da Irlanda, pensa num mero e pedestre
fracasso. E não se pensa só em Joyce, Wilde, U2, Sinead O'Connor, Yeats ou Neil
Jordan, que marcaram o mundo usando a língua do opressor — pensa - se no fogo
irlandês, na teimosia, nos cabelos de Maureen O'Hara e no álcool. A Irlanda
pode nunca superar suas chagas, mas é algo cuja grandeza reconhecemos. Mas o
Brasil, que não é apêndice da língua inglesa, é algo cuja grandeza em potência
se põe na condição de país novo americano, com o mito da tabula rasa e o mito
da democracia racial. Mas ”o mito é o nada que é tudo”. A insensatez, assim, me
leva a dizer que, pelo Brasil, o gosto da civilização ocidental inicial —
Grécia, Roma - e o gosto mediterrânico e florestal — Israel (grande mente
Israel, que nunca foi potência econômica ou militar para dar ao mundo o arsenal
de idéias e estilos que deu), mas também o islã e Jesus (filhos de Israel), e
Olodumaré, Dioniso, Uirá — podem e devem tomar nas mãos as rédeas do mundo,
fazendo - o transcender o estágio nórdico e sua ênfase bárbara na tecnologia.
Assim, um dia, passando pela porta da puc no Rio, vi vários
jovens de ambos os sexos entrando nos jardins da universidade, em meio a outros
transeuntes que esperavam o ônibus, carregavam encomendas etc. Pensei na
informalidade das roupas de todos. E lembrei de como, em 66, me parecera um
escândalo de repressão que alguns cinemas em São Paulo exigissem paletó e
gravata. Pensei em como, nos anos 60, lutamos contra hierarquias e
superindividualizamos a moda. Depois, dos anos 70 em diante, muitas vezes sofri
ao ver a vulgaridade dos trajes anarquicamente usados em toda parte: senhoras
em bermudas apertadas e camisetas com a cara do Mickey entrando em bancos;
aeroportos cheios de pernas peludas sustentando verdadeiros cartazes com
palavras em inglês. O equivalente hoje da elegância discreta é a farda jeans
com blusa e sapatos para todas as classes - e o resto parece lixo. No entanto,
há, sobretudo em cidades praianas — mas recentemente observei sensação
semelhante no interior de Minas - como o Rio de Janeiro ou Salvador, uma
alegria da informalidade e da exibição ao sol e ao vento de grande parte do
corpo. Essa alegria apenas está pervertida, conspurcada pelo clima de autodesprezo
moral, pela ignorância e pela corrupção. Imaginei então o Brasil encontrando e
inventando naturalmente novas formas de vestir. E novas e mais delicadas
hierarquizações dessas formas. Uma nova civilização de belas, leves e solenes roupas
pequenas no cobrir e grandes no significar e no encantar. Vi o Egito. Um novo
Egito. Vi Atenas imensa e sem escravos. Imaginei a sutil diferença entre a
veste do aluno e a do mestre, na Universidade Brasileira. E a variedade das
roupas de inverno no Sul.
Um dos mistérios de nosso tempo é o que chamamos de arte
moderna. Uma das suas maiores fascinações, a idéia de vanguarda. Outro dia,
aqui mesmo neste museu, fui convidado pelo poeta Haroldo de Campos a participar
de uma leitura da peça nô japonesa Hagoromo (O manto de plumas). A tradução de
Haroldo era também uma homenagem a Hélio Oiticica, e me sugeriram que eu usasse
um seu parangolé numa espécie de performance. Esses objetos enigmáticos, feitos
para vestir, foram virando, à medida que eu tentava comentá-los, o que eles
devem ter sido desde sempre para Hélio: a roupa transcendental. E, enquanto eu
ridicularizava, ao mesmo tempo, a impossibilidade de a gente se decidir diante
de criações tão arrojadas e a nova costura japonesa (na verdade, amo
intensamente ambas), fui realizando tantas modalidades de usar o parangolé, que
atingi o ponto em que para mim era vívida a relação que Haroldo fazia entre a
experiência de Hélio e a peça nô — o que levara a apelidar sua tradução de
Parangoromo. O manto de plumas da peça é o que possibilita a volta do ser
celestial anjo-anja ao céu do céu. Nessa perspectiva o parangolé ganha seu
sentido final de roupa-não-roupa da transcendência permanente.
Vi então Haroldo como um poeta altíssimo que me induzira a
essa revelação. Ele tinha vinculado a subida ao monte sagrado da peça nô à
subida de Hélio ao morro da Mangueira, alando anjos mulatos com mantos
eternamente ilegíveis e eternamente sugestivos. O figurinista Cao me disse que
o artista plástico Luciano Figueiredo lhe explicou as rígidas normas que Hélio
se impunha na execução dos parangolés. Devem ser os rigores do programa de
criação de um mundo novo. E, tendo sido o nome de uma instalação de Hélio de
1966, que, via homem do Cinema Novo Luís Carlos Barreto, veio a apelidar aquela
minha canção - ”Tropicália” — que, por sua vez, deu nome ao movimento -
tropicalismo —, enfiei a relação Japão-parangolé-Céu-Mangueira, que Haroldo
sugerira, numa interpretação dos parangolés como uma profecia de Hélio.
Claro que eu gostaria que surgissem figurinistas brasileiros
tão avant-garde quanto os japoneses. Mas o que eu es pero do Brasil é uma
revolução na história do traje, pontuada por algumas personalidades, mas de
força coletiva.
Uma das razões por que eu gosto de manter uma produção de
canções ”de massa” é a vontade de reequilibrar a média da criação pop
brasileira a cada passo, em detrimento de um possível afastamento para
pesquisar algo fundador. É como se fosse um não querer estar demasiado à frente,
ou acima, ou à margem. Talvez o Hélio já tivesse, antes de morrer, começado a
me desprezar por isso. Mas, para mim, é irresistível: o fato de uma canção como
”Filhos de Ghandi”, de Gil, ter desencadeado, por sua beleza específica, uma
avassaladora mudança da postura do negro na Cidade da Bahia, fazendo renascer
aquele afoxé quase extinto e multiplicando o surgimento de outros, é, para mim,
de grande importância como sugestão de para onde dirigir a ambição.
O psicanalista italiano afrancesado Contardo Calligaris, que,
tendo se apaixonado pelo Brasil, escreveu um livro devastador das nossas
possíveis esperanças, respira por um momento para dizer, diante da estapafúrdia
estranheza das letras dos blocos afro de Salvador e suas descrições de um Egito
idealizado, que talvez nessas projeções dos poetas populares do Carnaval da
Bahia esteja o nosso único esboço de um projeto de identidade e nacionalidade.
Nesses Egitos e Madagascares e Etiópias de delírio, podem estar o país (que nós
não somos) e o nome (que nós não temos).
Mas meu nome é Caetano porque nasci no dia de São Caetano e
o nome do país é Brasil por causa do pau. E só os idiotas tomam a antropofagia
de Oswald de Andrade como uma metáfora — justificativa de ecletismos impotentes.
A versão tropicalista levou ao Egito dos blocos, à regeneração do mercado de
música popular no Brasil, à elevação do nível intelectual de sua produção e sua
crítica, a outro tipo de diálogo com os estrangeiros. Para mim tem grande
significação que a canção ”Sampa” leve muitos paulistanos a me agradecer por eu
ter despertado o narcisismo básico de que a cidade necessitava para poder
seguir e que já parecia quase irremediavelmente perdido.
Outro europeu que também se espantou com a liberdade com que
escolhemos e a freqüência com que usamos os prenomes no Brasil, o antropólogo
Claude Lévi-Strauss (aliás, personagem da minha canção ”O estrangeiro”, por ter
achado a Baía da Guanabara muito feia), no capítulo dos seus Tristes trópicos
dedicado a São Paulo, onde ele faz um retrato em princípio desalentador da vida
intelectual brasileira (Oswald de Andrade deve ter-lhe parecido mais indigesto
do que ao Calligaris), diz que aqui, no contato com seus alunos da então recém-inaugurada
USP, aprendeu, vendo-os ”transpor em poucos anos uma diferença intelectual que
se poderia supor da ordem de muitas décadas, como morrem e como nascem as
sociedades”; e que ”essas grandes subversões da História, que parecem, nos
livros, resultar do jogo de forças anônimas agindo no coração das trevas, podem
também, num claro instante, realizar-se pela resolução viril de um punhado de
crianças bem-dotadas”. Na canção ”Um índio” – um dos momentos de tentativa de
superação do pessimismo tropicalista e que, na verdade, se parece muito com
esta palestra aqui — eu inseri o verso ”num claro instante”, tirado ipsis
litteris da edição brasileira de Tristes trópicos que o próprio Lévi-Strauss (que
certamente odiaria ouvir algo seu metido numa canção pop) ajudou a traduzir.
No início desta conversa, distingui entre fazer projetos
para o futuro e sonhar. Nossos projetos devem ser no senti do de resolvermos o
problema da distribuição de renda entre nós, de amadurecermos uma noção de
cidadania, de elevar nosso nível de competência. Nossos sonhos devem ser imensos
e de libérrima originalidade. Um jornalista americano, que outro dia me
entrevistava, estranhou que, em minhas ambições para o Brasil, eu enfatizasse a
originalidade, e não a força, a riqueza ou o poder. De fato, não penso num
superdesenvolvimento de nosso poderio militar nem numa dominação econômica de
outros povos. Penso no poder transforma dor dos nossos jeitos se apenas sairmos
da miséria.
O índio daquela minha canção é o mesmo índio dos árcades e
dos românticos — símbolo da nacionalidade que, na Bahia, vemos a cada 2 de
julho desfilar em procissão que supera qualquer paródia tropicalista — mas é
também o Juruna que se elegia deputado, é um representante da tribo que Egberto
Gismonti fora visitar e é um sobrevivente da última chacina ou o espírito de um
dos seus mortos; em suma, é um personagem muito mais complexo e com o qual
temos muito maior intimidade. E dele se diz que virá ”mais avançado que a mais
avançada das mais avançadas das tecnologias”. O que será que nos faz pensar,
num país atrasado quanto às pesquisas científicas e às conquistas da
informática, que podemos daqui antever ou entrever melhor o espírito do homem
que saberá organizar belamente sua vida a partir de um sentir-se não num
universo, mas, usando a expressão que li no último livro daquele que foi na
verdade o primeiro influenciador do tropicalismo - o francês Edgar Morin -, num
”pluriverso polimorfo” que a novíssima ciência (que descobriu os pulsares
exatamente no ano 1968) nos insinua?
Depois de tanto falar, e com tanta pose, fica-me faltando explicar
porque disse ter sido ou ser o tropicalismo superestimado. Como – se eu aceito
falar num evento para o qual se convidaram verdadeiros grandes poetas? E como
faço tantas referências a autores sérios com tamanho ar de bonomia? E como
vinculo as imensas ambições (dignificadas pela citação pertinente de tantos
nomes célebres) ao movimento tropicalista? Bom, em primeiro lugar, vale lembrar
o que se lia nos muros de Paris em 68: ”Cultura é como geléia: quanto menos se
tem mais se espalha”. Não conheço de Unamuno, por exemplo, quase nada além do
que usei aqui nesse arrazoado. Uma vez, respondendo a uma minha provocação
irresponsável, José Guilherme Merquior nos chamou, a mim e a todos os
componentes do mundo dos espetáculos, de subintelectuais de miolo mole. Sempre
achei essa expressão bem cunhada. A meu ver ela não perde sua força cômica por
eu ser capaz de escrever assim. Mas o que me leva a reafirmar que houve uma
superestimação do tropicalismo é a certeza de que, apesar da boutade de
Merquior, há um consenso hoje, no Brasil, a respeito da grandeza do fizemos,
quando quase nada fizemos além de chamar a atenção para o fato de que temos um
dever de grandeza.
Acho que nós, brasileiros, nos contentamos com muito pouco.
Os nossos discos daquela época - sobretudo os meus - são de um amadorismo
imperdoável. Esse é um problema que vimos tentando superar a pouco e pouco, mas,
à medida que conseguimos alguns avanços, os anos desfazem as configurações que
deram momentum aos sentidos que insinuamos. Mas ainda acho que eu estar hoje
aqui, dizendo o que disse, porta, em combinação rítmica com resto de minhas
atividades, algum teor de poesia não de todo desprezível. E essa poesia quer
dizer, pelo menos, que há graça em existirmos.
Para finalizar, eu quero dizer uma poesia. São estes versos
do poeta romântico maranhense Sousândrade, que se riam para mim meramente
enigmáticos se não me parecessem uma formulação adensada do meu próprio
pensamento:
A União, estados de amor.
Floral: sub - espinhos daninhos
Espinhal: sub - flor e mais flor.
Conferência proferida no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 26 de outubro de 1993, no contexto do evento Enciclopédia da Virada do Século / Milênio. Uma versão reduzida, sob o título ”Utopia Z”, foi publicada na Folha de S.Paulo, Caderno Livros, 1994.
Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005.