Discretamente aqui no Verbo (1972)

Discretamente aqui no Verbo porque há essa casinha na ladeirinha que sobra da Ladeira do Mauá com boa vizinhança. Sem política.

O tropicalismo foi uma árvore de mil frutos. Digo isso sem orgulho, sem remorso. Os frutos pecos e podres se espalharam pelo chão e ninguém melhor instalado para sentir-lhes o fedor do que os fuçadores de raízes. Mas o que pinta de araçá devez não é fácil, como disse Marquinhos citando Lu no Porto da Barra, semana passada.

Vida mansa.

Estou contente, até certo ponto, de vez que, como eu esperava, a minha volta ao Brasil, a minha decisão de vir morar aqui no Brasil deixou à vontade pessoas que tinham necessidade de discutir e não apenas louvar o meu trabalho. Minha proximidade, a certeza de que eu sou real, vulnerável, traz de volta à terra minha lenda. Para minha alegria imensa, pois lá em Londres vez em quando dava por mim atravessando paredes, como um fantasma.

Vida mansa, como disse. Mas também há certas coisas que, com tempo, gostaria de rediscutir, discutir, descurtir etc. Ou seja: minha volta também me põe à vontade pra conversar com algumas pessoas sobre determinadas coisas. Com tempo. Mas acontece que não só alguns saudavelmente se descontraíram para reiniciar um papo comigo, como também alguns outros se alvoroçaram doentes para me esquartejar e me lançar ao caldeirão. Assim fica impossível para mim, porque eu quero ficar aqui na Bahia um tempão, nesse sol, nessa burrice, nessa preguiça e se começa logo essa excitação em torno de mim não dá pé. Quando eu estava fora eu sabia que, com a minha volta, a imprensa mudaria de tom quando falasse a meu respeito. Vim com um show descontraído, olhando pra as pessoas descontraidamente na platéia, olhando descontraidamente para o presente da música brasileira, para o passado comigo dentro e com o Chico dentro e com a Elis dentro. Nada mais. Deu certo: os jornalistas se descontraíram, a fofoca carioca se descontraiu um pouco, todo mundo se descontraiu um pouco. Mas deu errado: todo mundo se desnorteou um pouco também, mais uma vez. E aí o ódio de novo. Ainda por não entender. E eu morto de preguiça. Responder mesmo, jamais. Não quero mais preocupêchons comigo.

Contudo, há, deve haver, algumas pessoas que merecem saber como eu me portaria diante de determinadas questões. Eis:

O que talvez tenha dificultado tudo desde sempre é o fato de nunca antes ter havido no Brasil uma figura popular com tanta pinta de intelectual quanto eu. Não sou um mito nacional, na medida em que Pelé o é, na medida em que Roberto Carlos o é. Nem pretendo sê-lo. O minguado mito Caetano Veloso é bem mais uma coisa assim como o mito Glauber Rocha. Mas eu apareço na televisão, um número muito maior de pessoas me conhece de cara e nome, alguns discos meus fizeram sucesso (nunca, contudo, vendi tantos discos quanto, por exemplo, Tim Maia). Como Glauber (mais ou menos involuntariamente) tornei-me uma caricatura de líder intelectual de uma geração. Nada mais. Um ídolo para consumo de intelectuais, jornalistas, universitários em transe. Só que jogando sem grandes grilos nos apavorantes meios de comunicação de massa. Isso, creio, é o que fez com que se esperasse demais de mim. Na sua miséria, a intelectualidade brasileira viu em mim um porta-estandante, um salvador, um bode expiatório. Agora sente-se mais descansada ao ver que pode jogar sobre as costas de uma pessoa como eu a responsabilidade por coisas que não seriam da alçada de qualquer deus. Tais como:

A tão exaustivamente discutida (e melhor do que ninguém pelo tropicalismo, depois do cinema novo) necessidade que têm os povos subdesenvolvidos de imitar padrões internacionais.

A intolerância crítica por parte das gerações mais novas com relação às anteriores. (O tropicalismo tratou seus antecessores com amor e humor.) A existência da Bahia. (O tropicalismo mal tratou do assunto.) A existência do carnaval. (O tropicalismo mal tratou do assunto.) A influência das modas culturais francesas sobre os intelectuais brasileiros (e argentinos, certamente). O episódio “É proibido proibir” resume-se no seguinte: Guilherme Araújo, meu empresário, me mostrou na Manchete uma reportagem sobre os acontecimentos de maio em Paris que eu não quis ler pois tenho preguiça de ler. Lembro-me que ele mesmo virou a página e disse: é engraçado, eles pixaram coisas lindas nas paredes. Esta frase aqui é linda — "é proibi do proibir”. Eu falei. É lindíssima. Ele falou — faça uma música usando esse negócio como refrão. Eu disse – tá. Passou. Eu não fiz. Daí ele me cobrou. Eu disse, faço. Fiz. Achei meio boba, mas bonitinha. Todo mundo na hora achou bonita. No dia seguinte eu já a achava péssima. Até hoje só gosto do ritmo e de uma parte da letra que diz "eu digo sim, eu digo não ao não". Veio o festival da Globo. Eu não tinha nenhuma música bacana pra botar. Nem muita vontade de entrar no festival. Só me convenci a concorrer quando decidi pegar aquela música que eu não gostava e fazer uma esculhambação com o festival. A canção foi escondida pelo happenning e pelas vaias. Sérgio Ricardo ficou intrigado nos bastidores ao ver minha alegria: "não entendo como vocês podem ficar tão contentes de serem vaiados". Quando voltei para repetir a música já o Gil tinha sido desclassificado (o que me enfureceu porque eu achava o número dele genial) enquanto o meu “É proibido proibir” tinha merecido do júri as melhores notas. Entrei no teatro decidido a dar um esporro. E dei. Disse que o júri era incompetente e a platéia burra ou coisa assim. Tá no disco.

Até hoje me orgulho de tê-lo feito. E me congratulo comigo mesmo pelo fato daquela canção estar esquecida. De fato, falou-se muito do escândalo, mas o disco não vendeu e, de todas as canções que eu escrevi desde “Alegria, Alegria” pra cá, “É proibido proibir” é uma das menos conhecidas do público. Jamais admitirei que alguém a tome como típica do movimento tropicália ou do meu trabalho em particular.

A adesão dos filhos de família ao hábito de fumar maconha, tomar LSD ou qualquer outra droga. (O tropicalismo jamais tratou do assunto. Eu jamais tratei do assunto. Apesar de, na época, a imprensa falada e escrita ter feito todo o esforço para identificar o nosso trabalho com esse tipo de coisa. Lembro-me de ter visto alguns desses imbecis que andam na televisão tentando provar por A + B que na letra de Alegria, Alegria eu estava querendo me referir a drogas. Era de morrer de rir. Que malabarismos lógicos foram precisos! É que a imprensa é quem necessita de recorrer a essas coisas pra ir sobrevivendo. A imprensa toda sabia que excitação causava sugerir que, como na Inglaterra dos Beatles e nos Estados Unidos de Bob Dylan, os jovens músicos do Brasil também tomavam drogas terríveis. Para a perene decepção de todos (todos, sem exceção), eu venho atravessando todos esses anos sem um charo. E tenho horror a porre de lança-perfume, anestesia de dentista, bolinha e bebedeira.) 

Discretamente, no Verbo. Quero que todo mundo que gosta de mim de verdade fique sabendo que eu quero ficar sempre mais tempo na Bahia do que em qualquer outro lugar. Quero, se possível, trabalhar aqui mesmo e só sair pra dar umas olhadas aqui e ali. Era o que eu queria fazer desde sempre. Eu gosto mesmo é daqui da Cidade do Salvador. Quero que todo mundo saiba que eu continuo achando João Gilberto o maior artista brasileiro e que tudo mais vá pra o inferno.

Beijos.

Caetano Veloso, junho de 1972.

Fonte: Alegria, Alegria (Org. Waly Salomão), Rio de Janeiro, Pedra Q Ronca, 1977.

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