Don't look black? O Brasil entre dois mitos: Orfeu e a democracia racial (2000)

Em 1956 estreava no Rio a peça Orfeu da Conceição. O público entusiástico que lotou os teatros onde ela foi representada era proporcional à importância das implicações desse acontecimento. Com efeito, naquele momento dava-se o encontro entre Vinicius de Moraes e Antônio Carlos Jobim - passo decisivo para a invenção da bossa nova; um elenco de atores negros pela primeira vez protagonizava um espetáculo teatral no Brasil; e a peça, transpondo o mito de Orfeu para as favelas cariocas, coroava a vitória do projeto brasileiro de guindar o samba à forma de expressão privilegiada da nacionalidade. Três anos mais tarde, o filme francês Orfeu negro, inspirado na peça, arrebataria corações não-brasileiros e ganharia a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro. Dizer que esse filme não foi recebido com entusiasmo no Brasil é um understatement. O contraste entre o fascínio que Orfeu negro exerceu no exterior e o desprezo que lhe dedicaram os brasileiros é tão gritante que convida à reflexão sobre a solidão do Brasil. O fato de se lançar agora um novo filme inspirado na peça de Vinicius, e de se tratar, desta vez, de um filme produzido e dirigido por brasileiros reaviva a questão. 

Não faz muito tempo, li no NYT um artigo de David Byrne em que uma sonora declaração de ódio ao conceito de world music funciona como alerta contra o risco de os formadores de opinião atuantes nos países ricos virem a sentir-se no direito de decidir o que é e o que não é autêntico na produção artística de países pobres. O caso do filme Orfeu negro, nesse sentido, chega a ser caricatural. Com efeito, freqüentemente somos acusados de inautênticos por não nos parecermos suficientemente com o que os estrangeiros viram naquele filme. Sobretudo tem sido teimosa a incapacidade deles de entender a rejeição dos brasileiros ao filme de Marcel Camus. O sucesso de público que o novo Orfeu, dirigido por Carlos Diegues, obteve no Brasil no ano passado aprofunda o debate. Não pretendo julgar comparativamente os dois trabalhos. Fui crítico de cinema de um jornal provinciano na extrema juventude, mas retomar a atividade agora seria duplamente inoportuno: eu centraria o foco nesses filmes particulares, quando o que interessa aqui é uma discussão de caráter mais geral; e, depois, tendo feito a trilha sonora do novo Orfeu, tornei-me “parte interessada”. As comparações, inevitáveis, devem, portanto, referir-se às reações suscitadas pelos dois filmes, não a eles mesmos enquanto obras de arte. Revendo Orfeu negro e acompanhando algumas projeções de Orfeu em favelas, o que mais me comoveu foi reconhecer a propriedade do insight de Vinicius ao conceber a peça: o Brasil revela qualquer coisa de essencial a seu respeito através do mito de Orfeu. E o filme de Camus, com seu irrealismo e ingenuidade, sobretudo quando traduzido pelo olhar virgem do estrangeiro incauto, parece realizar à perfeição o contato direto com essa verdade inconsciente. Para além do que já era francamente admirável desde a primeira visão (a Mira, de Lourdes de Oliveira, Léa Garcia com o namorado marinheiro, o diálogo entre Orfeu e o faxineiro da repartição burocrática, o menino que toca pandeiro - sem falar nas canções), as próprias cores fantasiosas (tão diferentes das do Rio) e o clima geral de "macumba para turista" me pareceram agora conferir à fita um ar onírico de iconografia religiosa popular que enternece. Desde a tropicália que aprendi a acolher com grato interesse os modos dos estrangeiros nos verem, e Orfeu negro não estava, quanto a isso, numa posição essencialmente diferente da de Carmen Miranda. Assim, é com esse grão de sal que devem ser lidas minhas sinceras lembranças do clima em que a rejeição a Orfeu negro se deu no Brasil, bem como a ênfase na importância de os espectadores não-brasileiros abrirem-se ao realismo do novo filme. Em suma: seria bom se os estrangeiros pudessem entender melhor tanto por que as platéias brasileiras hostilizaram o primeiro quanto por que elas aplaudem o segundo.

Um crítico do jornal francês Libération, comentando o Orfeu de Diegues, deplora que Arto Lindsay (cujo nome ele leu nos créditos como co-produtor das gravações da trilha sonora) tenha introduzido música rap em algumas seqüências. “Diegues não precisa disso", diz o crítico francês. “Ele sabe fazer a música melódica passar de uma cena a outra como se saísse das vielas do morro." Ora, a música rap é justamente a que ininterruptamente sai das ruelas dos morros cariocas nos dias de hoje. Ela está no filme como um elemento documental, colocado ali pelo diretor. A música melódica é que representa o elemento artificial e ficcional.

As favelas mudaram muito de 1959 para cá. Em geral, o nível material foi elevado, com a alvenaria substituindo o zinco, e o papelão e cimento cobrindo a lama dos becos. Os bandidos que antes assaltavam casas passaram-se para o mais rentável tráfico de drogas e construíram um sistema de poder cujas lutas internas e cuja independência em relação à lei e à repressão se sustentam em armas de uso militar muito superiores às da polícia.

Grupos de rap, compostos de favelados, vêm criando um estilo que reflete esse ambiente, com uma ênfase no confronto de raças nunca antes vista na nossa cultura popular, o que faz com que todo o movimento (é assim que os praticantes do hip-hop brasileiro se referem ao fenômeno que desencadeiam) ilustre a hipótese de o Brasil tender hoje para o birracialismo, em oposição simétrica a uma tendência americana para o multirracialismo. Um desses grupos, os Racionais Mcs, já chegou a vender perto de 1 milhão de cópias do seu último disco, exibindo-se principalmente em favelas e negando-se a aparecer nas grandes redes de TV.

O novo Orfeu foi realizado tendo essas realidades como pano de fundo. Como não ver no equívoco do crítico do Libération ao atribuir a Lindsay a presença do rap na favela uma distorção semelhante à descrita por Byrne em seu artigo contra os cultores paternalistas da world music? Mas ali se tratava da breve resenha de um crítico de cinema despretensioso e que não conhece o Brasil.

No entanto, algo não de todo diferente se encontra num texto muito mais longo assinado pelo historiador Kenneth Maxwell, e que saiu com grande destaque no jornal Folha de S.Paulo. Esse respeitado luso-brasilianista, com livros publicados sobre fatos importantes de nossa história colonial, conta que se interessou pelo Brasil ao ver Orfeu negro no início dos anos 60, em Cambridge. Tendo visto o novo Orfeu agora em São Paulo, declara-se primeiro espantado com uma cena em que um "branco de classe média" é executado por um bando de traficantes “na maioria pretos"; depois, decepcionado por ver Orfeu usando dreadlocks; e, finalmente, desconfiado do gorro na cabeça do chefe do tráfico, que lhe pareceu “mais adequado ao frio de Chicago do que ao calor do Rio".

Bem, o cara que os traficantes executam é um favelado como eles, e quanto a isso os diálogos não deixam dúvidas; os dreadlocks de Orfeu são quase tão comuns no Brasil quanto na Jamaica e, além de serem usados há já muitos anos pelo cantor-ator que faz o papel, remetem a Carlinhos Brown, cuja figura pública confessadamente inspirou os roteiristas na construção do novo Orfeu; e, por fim, quem vive no Rio sabe que o raro é encontrar um traficante favelado sem gorro.

A que devemos creditar tão exibido desconhecimento do cotidiano do Brasil por parte de um estudioso do país que o visita com freqüência? Maxwell sugere uma resposta quando diz que, amante de Orfeu negro, teve de fazer esforço para aceitar que os brasileiros descartassem o filme de Camus como "exotismo para turista". Com o passar do tempo, no entanto, chegou à conclusão de que a reação "da classe média brasileira" contra o filme se assemelhava à da polícia baiana, que, na década de 30, prendia os turistas que fossem flagrados fotografando “crianças não-brancas” nas ruas de Salvador (aqui ouço um eco distorcido de Tristes trópicos) e lhes confiscava os rolos de negativos: nos dois casos, perceber-se-ia o horror dos brasileiros de parecerem pretos aos olhos dos estrangeiros.

No excelente ensaio "Don't look back", Charles Perrone adverte que os textos não-brasileiros por ele citados e que ressaltam a questão racial ao falar do filme de Camus “demonstrate how foreign intervention, in cinema and its critique, can be surprisingly stimulating and productive for related debate and self-scrutiny". Sem dúvida. Evidência de que, embora errada, a leitura sugerida por Maxwell da rejeição ao filme de Camus como tentativa de esconder nossa negritude não é uma fantasia forjada no vazio; encontra-se no press-release de seu lançamento, onde se lê que “num país como o Brasil, com uma população de 65 milhões de pessoas, das quais quase 20 milhões são pretas, a idéia de fazer esse filme pareceu a princípio estranha a muitos dos 45 milhões de brancos".

Mas Maxwell não parece levar em conta que, em primeiro lugar, a peça, encenada com negros, não encontrou antipatia semelhante, pelo contrário. Em segundo lugar, Vinicius de Moraes, autor da peça e responsável pela decisão de encená-la com um elenco inteiramente negro, detestou o filme ao vê-lo, e a tal ponto que se retirou no meio da projeção (no Palácio Presidencial, então ainda no Rio), vociferando que seu Orfeu tinha sido “desfigurado”. Seria demasiado ilógico atribuir essa reação de Vinicius a negrofobia. E em terceiro lugar: dado o sucesso da peça, a expectativa a respeito do filme era de otimismo e excitação. A glória que Orfeu negro conhecera na Europa enchia os brasileiros de orgulho e esperança. E é claro que todos sabiam que ele era protagonizado por negros. Como então atribuir a decepção a preconceitos racistas?

Uma anedota reveladora, no entanto, traz uma luz diferente à questão. Em meados dos anos 70, Carlos Diegues, justamente o diretor de novo Orfeu, fez um filme sobre a lendária Chica da Silva, uma escrava negra que, no século XVIII, tornara-se uma dama poderosa no mundo das minas de diamante do Brasil Central. Ao negociar com um grande distribuidor, Diegues ouviu deste que, embora ele próprio tivesse achado o filme excelente, estava decidido a programá-lo numa sala pequena, pois, dizia ele, "o público brasileiro não gosta de filme com crioulo". Diegues, que queria ver seu filme nas salas do grande circuito, propôs-lhe uma aposta. O distribuidor colocou o filme nas grandes salas apenas porque estava certo de ter a aposta ganha. Xica da Silva estourou nas bilheterias, tornando-se um dos maiores sucessos de público da história do cinema brasileiro.

A afirmação do distribuidor sobre o gosto do público brasileiro assemelha-se ao press-release de Orfeu negro. Ambos falam em nome de um preconceito que parecem não ter, mas que atribuem ao público. Não é absurdo imaginar que o distribuidor de Xica da Silva estivesse sob a influência da lembrança do fracasso brasileiro de Orfeu negro e interpretasse esse fracasso em termos semelhantes aos de Maxwell e outros observadores estrangeiros. As caixas registradoras desmentiram seus prognósticos. Mas isso não prova que no Brasil não existe racismo. Antes expõe as ansiedades de brasileiros e estrangeiros ao tratar o assunto. Esse é de fato um tema crucial para o autoconhecimento das Américas - e o Brasil ocupa lugar singular no panorama. Freqüentemente vejo surpresa - às vezes um estranho prazer - no olhar de quem flagra evidência de racismo entre brasileiros. Mas o que me surpreende é que tais flagrantes possam provocar espanto tão cândido. Será que os comentaristas mais exigentes acreditavam mesmo que em algum lugar do Novo Mundo o pecado original da brutalidade da escravização de africanos tivesse se esvanecido por milagre?

Não obstante, em toda parte nas Américas a evidência da identidade básica dos seres humanos encontrou meios de se impor, precária mas tenazmente, sobre as teorias racistas que amparavam as práticas brutais. E nenhum de nós temos direito de jogar fora o acervo conquistado nesse processo. A experiência brasileira deve ser enriquecida com as críticas ao mito da “democracia racial”, não desqualificada por elas.

No início do século XX, os europeus hesitavam em investir no Brasil porque temiam a "insalubridade dos trópicos". Como relata Thomas Skidmore em Preto no branco, um escritor brasileiro que escreveu em francês um livro para ser publicado na Europa como esforço de propaganda queixava-se de que, até ali (1891), seus amigos franceses “sabiam apenas que havia negros e macacos no Brasil – e meia dúzia de brancos de cor duvidosa”. O sonho brasileiro de “branqueamento" via miscigenação e imigração européia visava, pois, criar uma nação aceitável. A inversão de sinal no julgamento do mestiço, marcada pela publicação, nos anos 30, de Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, representou a liberação de uma auto-imagem racialmente eufórica dos brasileiros, e a expressão “democracia racial” insinuou-se como um rótulo adequado a essa euforia. Ela se tornou também o alvo obsessivo das críticas de cientistas sociais e militantes políticos, de tal forma que quase se pode falar num mito do mito da democracia racial.

No livro Orpheus and power, Michael Hanchard, ao interpretar o insucesso do movimento negro brasileiro, quase nos convence de que o nosso alegado multirracialismo só serviu para atrasar os negros brasileiros na solução de seus problemas. Muitos militantes negros daqui rezam por essa cartilha. Aparentemente, esses militantes receitam o antigo princípio americano de “uma gota de sangue” para o problema do negro no Brasil. Mas o “branqueamento", que no Brasil foi um projeto coletivo, pode ser pensado com franqueza como um sonho inevitável para os povos das Américas, e o reconhecemos, como projetos individuais, nas perucas louras de Ella Fitzgerald, nos cabelos descoloridos de Tina Turner e Whitney Houston - e na esfinge Michael Jackson.

Para mim, as reações negativas a Orfeu negro no Brasil se deveram a angústias nacionais referentes ao cinema, não à raça. Nos anos 50, a classe média multirracial a que eu pertencia tinha muito mais vergonha do nosso cinema do que dos nossos negros. Ouvir brasileiros dizendo, de modo inconvincente, por alto-falantes fanhosos, diálogos que não eram belos nem faziam a história andar era um tormento de que sonhávamos nos livrar. Em Orfeu negro, ter de ouvir vozes sulistas dublando malandros do Rio; ver as alas das escolas de samba dançando em um andamento quatro vezes mais rápido do que a música que se ouve (a qual, aliás, se compõe de descuidadas colagens de batucadas que saltam grosseiramente de um ritmo a outro); acompanhar as cenas do desfile ao som de um samba em tudo diferente dos sambas-enredos; e ainda ver nessas manobras a intenção de impressionar os que não conheciam a cidade e seu povo era condenar-se à frustração quanto a um indicador de potência no seio da modernidade: o cinema.

Kenneth Maxwell, em seu artigo, nos acusa de temer ser arcaicos e de insistirmos em cultuar o progresso. “Não aprenderam a lição", diz ele. Talvez isso signifique, no fundo, que todo avanço deve ser apanágio da Inglaterra do século XIX e dos Estados Unidos do século XX. Godard, quando Orfeu negro foi lançado, deplorou o fato de Orfeu conduzir um bondinho passadista, em vez de, por exemplo, ser um daqueles trocadores de "lotação", figuras realmente poéticas que seguravam o dinheiro dobrado ao comprido entre dois dedos — e protestou por Eurídice não chegar ao Rio de avião, “no lindo aeródromo Santos Dumont, entre o mar e os arranha-céus”. Era o comentário de um crítico-artista: as marcas confusas do “progresso" na vida urbana do Rio eram captadas em toda a sua poesia nesse seu filme hipotético.

Um filme real, realista e nada godardiano (embora desta vez Eurídice chegue de avião), o novo Orfeu de Carlos Diegues pode, como previu Maxwell, não atrair jovens do Primeiro Mundo para o Brasil, mas não será talvez melhor que seja assim? Não creio. É preferível que esta discussão continue. Seja como for, temos de reconhecer com Robert Stam, autor do importante Tropical multiculturalism, que "it would be a serious mistake to see Carlos Diegues's Orfeu, as are make of Marcel Camus's Black Orpheus. The slums, for Diegues, are a place of creativity and injustice". A conjunção de injustiça com criatividade é difícil de equacionar, tanto para cineastas quanto para espectadores. O Brasil, nas duas posições, tenta provar que vale a pena o esforço.

Caetano Veloso.

NEW YORK TIMES (SOB O TÍTULO "ORPHEUS, FROM CARICATURE", TRADUZIDO POR ANA MARIA BAHIANA), 20 DE AGO DE 2000.

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005. 

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