Fellini e Giulieta (1997)
Um dos acontecimentos mais marcantes de minha formação pessoal foi assistir a La strada, aos quinze, no Cine Subaé, em Santo Amaro da Purificação, a cidadezinha no interior da Bahia onde nasci. A cara de Giulietta Masina ficou no fundo de minha alma como se fosse uma instância metafísica universal. Mas o que me fez chorar - e passar o dia inteiro sem poder comer - foi constatar que Zampano, cambaleando na praia na cena final, olhava pela primeira vez para o céu. Eu pensava repetidas vezes abismado: é a história de um homem que nunca olhou para o céu e só o faz depois de destroçado. As estrelas do Louco - as estrelas que o Louco reencontrava nas pedras e em Gelsomina - revelavam-se agora ao brutamontes por intermédio da ausência de quem ele não soubera reconhecer como único amor maior de sua vida, como seu destino.
Passei o resto da adolescência sonhando que conversava com Federico e Giulietta. Nessas conversas eu quase desvendava o mistério de minha própria vida. Nas tardes as sombrosas, eu passava horas tocando o tema de La strada no piano. Santo Amaro era a cidade dos Vitelloni: seu Agnelo Rato Grosso, um açougueiro mulato semi-alfabetizado que tocava trombone na banda de música, saiu do cinema chorando e dizendo: “Este filme é a vida da gente".
Depois vimos Le notti di Cabiria e a maestria de Fellini e de Masina se confirmou madura e exuberante: aqui Masina realmente era, mais que um rosto ou uma entidade, uma atriz extraordinária. E Fellini, um diretor com pulso para grandes cenas de multidão, atmosferas urbanas complexas e onirismo transbordantes. Ainda hoje, acho Cabiria o filme mais perfeito que ele dirigiu.
La dolce vita seria o primeiro de uma série de filmes em que aquelas características de grandiosidade diziam que tinham chegado para ficar. Era um filme inquietante: fui vê-lo umas dez vezes quando ele foi lançado em Salvador. Foi o maior triunfo de Fellini e parece ter-lhe, a um tempo, aberto e fechado todas as portas da criação. Daí em diante, ele passou a fazer filmes que pareciam precisar mostrar que ele podia fazer tudo o que quisesse, mas as produções que lhe eram possíveis é que o prendiam nessa estranha espécie de liberdade.
Uma liberdade real, no entanto - uma liberdade de manter-se em contato com os pontos essenciais de sua verdade pessoal -, essa liberdade nunca o abandonou. Ela ressurge a cada instante em que a magia se instaura inesperadamente numa cena, na relação do som ou do silêncio com o movimento das personagens, na reconstrução inspirada da observação profunda de um aspecto da realidade. Para mim, isso é tão verdadeiro que, mesmo depois de parecer escravizado pela profusão de fantasmas e de bizarrias que todos esperavam de um filme dele, obras como E la nave va... e Amarcord se provaram tão perfeitas, a meus olhos, quanto Le notti di Cabiria – e tão profundas quanto La strada. Com efeito, E la nave va... é um dos maiores filmes do final do século.
Sou de um país estranho. Fellini se orgulhava de o título de La strada ter se mantido no original em todos os países do mundo. Ele não sabia que no Brasil o título tinha sido mudado para o mais vulgar - mas não impertinente — Na estrada da vida.
Faço música popular e sou apaixonado por cinema. Minha música está cheia de imagens invisíveis que vieram das grandes telas. As imagens escondidas no mais fundo de meu som, as que marcam mais decisivamente seu sentido, vieram dos filmes de Fellini.
Caetano Veloso.
O GLOBO, SEGUNDO CADERNO, 4 DE OUTUBRO DE 1997.
Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005.