FH (03/07/2011)

Aos 80, o Fernando Henrique que foi chamado de maconheiro pelos partidários de Jânio Quadros (um hilário populista de direita que falava como se os gramáticos que só existem na cabeça de Possenti tivessem ganho a guerra) faz campanha para a descriminalização da maconha. Na pré-estreia de “Quebrando o tabu” ele brincava com o plano de escrevermos juntos um livro-depoimento intitulado “fiz um filme com Fernando Grostein Andrade e sobrevivi”. Era uma referência a um tempo irritada e carinhosa ao jovem diretor paulista que, antes de fazer com ele esse estudo demolidor da Guerra às Drogas de Nixon, Reagan e Bushes, fez o documentário acidental sobre minha excursão com o show de “A foreign sound”.

FH estava mais cool do que nunca. Ele apresentou o filme no mesmo tom em que aparece numa de suas cenas dizendo que nada fez a respeito da questão quando era presidente porque então não sabia o que sabe agora. Seu melhor momento é quando comenta a temática pedestre da pintura holandesa, comparando-a aos arroubos religiosos e aristocráticos dos pintores italianos ou espanhóis: o pragmatismo que possibilita a mirada serena dos modernos batavos relativamente ao uso e comércio das drogas é da mesma natureza da sensibilidade que pintava comedores de batata, pessoas comuns, cenas indigentes. Nessa fala do ex-presidente a forma permanece despretensiosa, mas o fundo é denso. Em quase todas as outras sequências ele exibe uma leveza que quase confirma a acusação de mera eleição de um tema para enfeitar o terceiro ato de uma vida chique.

Eu adoro que o nome escolhido para a nova moeda tenha sido “real”. É nome de dinheiro em português desde sempre: está no inconsciente do povo — e, usado hoje, ressalta que deixou de indicar realeza para indicar realidade. De todo modo era finalmente livrar nossa moeda da cruz que a nomeava e pesava sobre ela, esmagando-a. De quem terá sido a ideia? Não procurei saber antes de escrever estas notas. Sobre todos os nomes dos arquitetos do plano e nomeadores da obra paira a assinatura de quem liderou a empreitada. É uma beleza de alegria alguém chegar aos 80 anos tendo feito isso.

O PT foi contra, xingou, esperneou, esbravejou, mas depois se sentiu mais capaz de fazer os governos que fez. Uma das coisas mais deselegantes do Brasil da última década foi a rejeição ao nome e à figura de Fernando Henrique. A carta de Dilma agora foi, desde os belos dias da transição entre o segundo mandato de FH e o primeiro de Lula, a única luz na treva da ingratidão e da desfaçatez. Luz intensamente brilhante, já que Lula ele mesmo nunca agiu de modo parecido, sempre ecoando a feíssima fórmula “herança maldita”, lançada por Zé Dirceu em entrevista que se seguiu à comovente festa da posse do torneiro pernambucano. O fato é que Fernando Henrique elegeu Lula. Não apenas este é feliz continuidade daquele, mas o primeiro agiu como quem no íntimo torcia para ver o operário lá. Serra não queria ser identificado com o governo que saía: não seria boa tática eleitoral. Mas a verdade é que ele discordava da política econômica, manteve-se sempre à esquerda dela, jamais teria feito o que Palocci fez (vejam que, mesmo agora, enfrentando Dilma, ele insistia em restringir mais a independência do Banco Central). O desejo íntimo de FH de que Lula se elegesse, no entanto, era visivelmente de outra ordem. Era emocional, sentimental, histórico-melodramático. Eu votei em Lula com sentimento semelhante — e chorei na cabine. Parece que não há oposição e que não há PSDB, porque toda a política possível desde então nasceu desse momento sentimental de FH. É bom.

Meu camarada André Nassif, economista, me explicou que pode-se dizer que o governo Lula recebeu sim uma herança má porque “no primeiro mandato do FH, houve uma estratégia de crescer e manter a inflação pós-Real baixa e sob controle com base em financiamentos externos (os economistas chamam isso de ‘crescer com poupança externa’, estratégia que o professor Bresser Pereira, que se desligou do PSDB, tanto combate): acelerou-se a permissão para o livre fluxo de capitais de curto prazo. Isso, aliado a câmbio semifixo e a juros elevados, fez subir enormemente tanto a dívida interna como a externa. Tá bom: os tucanos com razão dizem que isso se agravou com a turbulência ocorrida durante a primeira eleição de Lula. Mas àquela altura as dívidas já eram bem elevadas”. Papo de economista é assim mesmo meio difícil de entender. Mas gosto de ouvir quem fala assim (não em economês, mas de modo equilibrado). Nada a ver com a histeria dos “blogueiros progressistas”.

Me contaram, na época, que FH falou meu nome na primeira entrevista como presidente. Uma vez, depois de um show em Brasília, ele me convidou para visitar o Alvorada. Gostei muito de ouvi-lo (e a Dona Ruth) sobre o significado simbólico do palácio — e da cidade. Também sobre as obras de arte que o Alvorada contém. Uma afirmação do Brasil era o cerne do que FH teria dito que gostava em minha visão das coisas. Como diz Zé Miguel, paulistas sentem ou um déficit de brasilidade ou uma superioridade sobre o país. FH falando à “Piauí” foi horrível. Parecia dizer: “Se eu, que estou acima dessa gente que nem sabe marchar, não consertei, não esperem que o Brasil saia do horror que sempre foi.” Eram conversas descuidadas, embora tristemente reveladoras. Mas elas não se sobrepõem à inspiração que foi sua passagem pelo poder máximo.

Caetano Veloso.

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