Gal (1970)
Gal, seu disco é bacana. Seu
disco é muito bacana mesmo. Cada ano sai melhor. Cada vez que eu leio um
comentário sobre cinema em revista brasileira eu gosto mais do seu disco. Cada
música nova que eu faço eu gosto mais do seu disco. Cada vez que eu sinto a
barra. E a barra não está leve. Cada vez que eu vejo televisão colorida, cada
papo sinistro que eu alimento, cada supergroup que aparece. Seu disco é bacana.
Você deve ter brigado muito por ele. Com você mesma, com alguém, com alguma
coisa. Se não brigou para fazê-lo, ainda vai brigar por tê-lo feito. Seu disco
é muito mais bacana do que o outro que você fez antes. Eu falo que você deve,
de alguma forma, ter brigado pra fazer o disco como você fez, porque eu acho
que ele é seu demais. E não é fácil a pessoa chegar inteira até o fim de um
disco. Você chegou aqui, no disco, e você está maravilhosa. O show que você
está fazendo com Macao deve ser terrível. Mandem notícias logo. Eu estou legal.
Gil fez uma música linda para você. Venha ouvir. Eu estou apaixonado por
“Pulsars e quasars”. É um sub blue, uma supercanção de amor gravada num disco
voador de tampa de panela, um disco voador daqueles que só existem na revista O
Cruzeiro. Uma estrela cabeluda desbrilha no vídeo do barraco, qualquer coisa
assim. Você está mesmo uma figura dápesa. E Macao. E Mariah? Ah, põe aquela
estrela cabeluda num vídeo do Pinga, atrás da Rua Rio de São Pedro. A Rua Rio
de São Pedro é fogo. Você pode dizer que eu sou saudosista. Eu sou mesmo. Mas
eu estou é tentando falar de “Pulsars e quasars” e Capinam, o autor da letra, é
mais saudosista ainda do que eu. Agora, a cultura e a civilização, elas que se
danem. Ou não. Meu nome é Gal, nasci em Santo Amaro da Purificação, Bahia,
tenho 27 anos, admiro Macalé, Erasmo, Mariah, Orlando Silva, Augusto de Campos,
uma porrada de gente. Mas tem certas ostras e certos teiús de brejo que nem
morta! Outro dia eu fiz uma carta pra Bob dizendo isso mesmo. Agora eu estou
pensando em mandar esta carta através do Pasquim em vez de mandar direto pra
você. Porque estou falando de seu disco e, como o pessoal que compra o Pasquim
quer mesmo é ficar por dentro (quer mesmo?), isso pode ser útil. Eu, no momento,
só teria uma coisa a aconselhar a quem quer ficar por den tro - a audição do
disco de Gal Costa.
É isso mesmo. Que se danem.
Anyway. Ferro na boneca. Eu quero a geral, com Errol Flinn da Conceição agitando
a bandeira do Esporte Clube Bahia. Quero o identifisi, o identudo-gui, o
identido-ni, o identado-ca e mais uma porção dos identifisignificados novos
seres que virão do fundo do céu, do alto do chão. Quero os pulsares, os
quasares, os santamarenses geniais como Dinailton. Quero escrever alguma coisa
que tenha o mesmo feeling do seu disco, Gal, mas não consigo. Seu disco é mesmo
muito bacana.
Caetano Veloso.
O PASQUIM, 19 DE FEVEREIRO DE
1970
O texto se refere ao LP Gal,
Philips, 1969.
Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005