Gente (15/01/2012)

Ouvi Elis pela primeira vez vendo-a na televisão. Foi em Salvador — e nós, os baianos que chegaram ao eixão na esteira da estreia de Bethânia no Opinião, já tínhamos um esboço de visão da música popular numa perspectiva brasileira. Tive reação semelhante à que muitos tiveram: finalmente uma cantora moderna, em pleno domínio de seus recursos aparecia na cena profissional — e já embalada para alcançar massas de ouvintes. Era indubitavelmente um largo passo dado. Éramos todos, Elis e nós, esforços de criação dentro do universo exigente que foi o imediato pós-bossa nova.

Sempre conto que, na minha imaginação, Bethânia, Gal, Gil e eu faríamos algo marcante. Dos quatro, Gal e eu éramos os mais radicalmente joãogilbertianos. E eu talvez mais do que Gal. Bethânia tinha um temperamento e um talento que a levavam para além das marcas estilísticas do supercool de João. Gil, por ser o que mais era capaz de apreender os acordes e as levadas de violão do mestre, sentia-se livre para cruzar a fronteira. Gal desejava entrar cada vez mais fundo no mundo desdramatizado da bossa pura. Eu, que me julgava um observador útil, capaz apenas de contribuir com acompanhamento crítico e conversas teóricas (o que não me impedia de fazer umas musiquinhas), tinha João como paradigma e, por isso, interessava-me pelo desvelamento do ser da canção como forma. Assim, o canto e violão dele se opunham, dentro de mim, ao samba-jazz dos grupos instrumentais (ou voco-instrumentais) que se desenvolveram no Beco das Garrafas. Elis, cantando na TV, num videotape dos que chegavam de avião às províncias (ainda não havia televisão em rede), era a realização brilhante do estilo que me parecia oposto ao de João.

Mas a evidência de competência, talento e desenvoltura era mais forte do que meus esquemas críticos. O fato bruto de que alguém estivesse dominando divisões complicadas das frases rítmicas e exibindo com espontânea segurança o entendimento de cada nota cantada (o modo como ela instintivamente cuidava da afinação) era em si mesmo um acontecimento na cena brasileira, um acontecimento que me obrigava a pôr tudo em novo patamar. Bem, tudo o que eu imaginava para meus três amigos era algo que tivesse esse poder — mas por outras vias, a partir de outros elementos, sempre nascidos da atenção a João. Assim, vi uma tensão natural entre nosso projeto e o acontecimento Elis. Tive quase um sentimento de ciúme. Sobretudo me senti com maiores responsabilidades e excitado por desafios mais altos.

Nada disso nunca se desmentiu. Depois de Elis, teríamos que fazer algo mais radical. Bethânia esteve sempre fora da questão, já que ela tinha um estilo assombrosamente desenvolvido e totalmente independente da estética da bossa nova. Mas ela mal tinha se decidido pela música: havia sonhado em ser atriz, escrevia e fazia joias de metal. Sua voz e sua intensidade pessoal é que a puxaram para o canto, através do interesse despertado em quem a ouvia. O modo extrovertido, o tom expressionista, que contrastava com a sobriedade da bossa nova, tudo isso ela tinha em comum com Elis. Mas eram figuras opostas. Pôr as duas em comparação, dentro da cabeça, era como contrapor Sarah Vaughan a Edith Piaf. Mas o que acontecia era que, com Elis, eu era levado a pensar assim, em termos mundiais, considerando figuras nascentes de nossa canção com divas do grande mundo.

Bem, o ambiente de criação de música popular no Brasil estava se diversificando. Era a época de Edu — e Nara tinha aberto o leque do repertório, saindo das salas sofisticadas e indo ao morro e ao sertão. Mas, fosse Edu, Nara ou nós, todos parecíamos treinados em ambientes de teatro, cineclubes e diretórios acadêmicos. Elis era uma menina que gostava de Ângela Maria e se tornara um fenômeno infanto-juvenil em Porto Alegre. A evidência de seu talento chamou a atenção de produtores que sonharam em fazer dela uma nova versão de Celly Campello, o que resultou em quatro LPs que, depois do estouro de “Arrastão”, foram banidos de sua discografia oficial — não tão diferente assim do que aconteceu com o 78 RPM de João, gravado no início dos anos 50. Seja como for, Elis vinha do mundo da música comercial, enquanto Nara, Edu e nós vínhamos dos ambientes intelectualizados.

O Beco das Garrafas e Armando Pittigliani compuseram a Elis genial que, logo formatada por Solano Ribeiro, veio a ser aquela espantosa explosão de musicianship que eu vi na TV.

Todos os encontros e desencontros que tive com Elis tiveram esse histórico como pano de fundo. Rogério, seu irmão, me deu de presente os quatro LPs pré-“Arrastão”, numa época em que eu, deslumbrado pelo prazer que dava assistir aos shows dessa cantora que nunca estava fora de sintonia com a música, via mais de uma vez seus espetáculos. Desde que voltei de Londres (coincidindo, em parte, com o período em que ela mostrou sua versão do cool), eu via Elis cantar exclusivamente para me sentir bem. Ela influenciou gerações de cantores, lançou multidões de autores, briguei com a “Veja” por causa do modo com essa revista publicou a notícia da sua morte (briga que nunca mais achei jeito de desfazer), e hoje a gente sabe que Björk a admira, que quem entende de música no mundo sabe que ela é uma das maiores que já houve. Ela me escreveu um bilhete pedindo perdão pelo que fez com “Gente”. E saúdo sua memória com um amor muito pessoal, particular e cheio de conteúdos peculiares.

Caetano Veloso.

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