Gil contando o que Dominguinhos disse (1976)

Gil contando o que Dominguinhos disse. Gil confirmando o que Perinho Albuquerque contava sobre Dominguinhos. Dominguinhos lembrando as conversas atravessadas de meu pai e minha mãe: eu ficava ouvindo, minha mãe olhando para o infinito e meu pai olhando para o outro lado. Só um filme conseguiu captar isso: Vidas secas. Dominguinhos contando ao povo no Teatro Tereza Raquel. A vida entre poetas. Não fui ao teatro para ver Dominguinhos e Perinho e Moacir. Fiquei em casa assistindo à televisão e chorei vendo o enterro de Juscelino porque o povo cantava "Peixe vivo" e em Brasília milhares de automóveis brilhavam e logo depois eu estava apaixonado por um garoto falando sobre a Coca-Cola, um garoto tão carioca que pronuncia os cês da palavra Coca-Cola como se fossem gês e os as breves lusitanamente fechados, quase mudos, de modo que a palavra Coca-Cola fica quase reduzida à palavra gole, um garoto muito gostoso. A vida entre artistas. Eu cheio de preguiça, dentro da violência do mundo. No gravador, a voz linda do poeta Augusto de Campos, cantando o samba do Sr. Eurico. O poeta Waly Salomão 76 comenta a semelhança do canto de Augusto com o de Paulinho da Viola. A vida entre músicos. Augusto me disse uma vez que era um camicase. O radicalismo da viagem literária em que ele e seus amigos se meteram levou seu nome ao fogo das batalhas de uma guerra de beleza sem razão. A doçura impecável de sua voz me faz agora entrar em contato com a solidão do guerreiro, a sua felicidade escondida como uma saudade escondida, voz de alguém que só canta assim porque nunca canta assim a não ser quando o faz, alguém que está em outra, completamente nesta, alguém que está em outra dimensão. A peça é idêntica a um perfeito "antique" - o piano e o samba do Sr. Eurico, Augusto cantando com uma voz aguda cristalina afinadíssima como alguns cantores dos anos 30 - e, no entanto, não parece com nada. Deve ser um grande momento íntimo de um grande poeta. E ele que me considera um poeta. A vida entre os homens. Tome conta do destino, Xangô! O que é que você faz quando sua mulher está de saco cheio de você e ela declarou recentemente que a meu lado não tem mais prazer? Há pessoas com nervos de aço. Jorge Mautner fala tanto num novo sistema nervoso. Eu ando com a memória consideravelmente mais fraca do que antigamente. Jorge Salomão disse que falta de memória é sinal de muito boa saúde. Lembro que, na época em que eu fiz o circuito universitário no interior de São Paulo, eu cantava “Tudo se transformou" e "Nervos de aço" e "Tenho ciúme de tudo" e coisas assim de mágoas de amor, um tema que estivera sempre fora de meu repertório. Não sei se era pra encarar, constatar, exorcizar ou tudo isso ao mesmo tempo. Quer dizer, esse tema sempre estivera fora do meu repertório, não essas canções, que eu as conheço e canto “há horas", como diz Tuti Moreno. Mas eu lembro mais ou menos que nessa época era lindo cantá-las. Parecia um poeta cantando, um guerreiro cantando, com um novo sistema nervoso. Acho que hoje em dia não sei mais explicar. Acho que nunca soube. O que é que faz seu espírito eleger uma mulher para você? O que leva você a olhar no olho dessa mulher e dizer para si mesmo: isso é alto-astral, aconteça o que quer que esteja acontecendo, esse olho castanho sempre me fará bem? Que ponto é esse do amor, para além das emoções do amor, das vās paixões humanas, para além das dificuldades objetivas de construir um companheirismo genuíno entre um homem e uma mulher? Que ponto é esse que parece se mostrar invulnerável aos feitiços e às maldições? Não tem onde caiba: eu te amo. A vida entre os deuses. Nosso filhote cantando a "Casinha na Marambaia" - só a voz de Gal às vezes chega lá. E Donato. E a poesia de Jorge Ben. A crítica de música (não a grossura dos dragões e tinhorões da dependência do samba — camuflados ou não — mas a crítica mais inteligente) quebra a cara diante da música de Donato porque ela, de tão essencial, é igual ao supérfluo. Não há dúvida de que os complicados (o excelente Egberto e mesmo o genial Hermeto) são mais "fáceis” para a crítica do que Donato.

No anteprojeto dos Doces Bárbaros, Walter Smetak estava incluído. Ele terminou não participando porque a Universidade da Bahia não podia lhe dar licença demasiado longa e os componentes do dito grupo, então em formação, não tiveram determinação suficiente pra forçar mais essa barra, uma vez que eles estavam forçando tantas, dentro e fora deles mesmos. Acredito que foi uma medida natural de economia do organismo do grupo e, apesar da conseqüente frustração, um sinal de saúde.

Por falar em Doces Bárbaros: em nenhuma reportagem sobre o assunto se falou em Arena canta Bahia, um espetáculo que Gil, Bethânia, Caetano e Gal fizeram juntos em São Paulo (mais Tom Zé e Piti), sob a direção de Augusto Boal. Eu, na época, não gostava do espetáculo, mas Boal gostava e, sob muitos aspectos, seu trabalho era brilhante e foi importante na formação dos atuais componentes dos Doces Bárbaros. De todo modo, o espetáculo existiu e nem a Veja se referiu a ele. No mais, tudo na mais perfeita paz, como dizia um antigo compositor baiano. Digo isso porque nessa transação de Doces Bárbaros a gente está imitando um bocado os Novos Baianos. Como falou o Belchior, é sinal de admiração, vinho quanto + antigo etc. E como os Novos Baianos foram Doces Bárbaros antes... Xica da Silva de Cacá e Zezé e Walmor e etc. é um grande barato. Rogério me lembra (minha memória está ótima!) que o papo da letra de “Um índio" rolou aqui entre mim e ele, antes de a música ser feita. Lindo que ele esteja sempre nas transas. Fantástico. Que coisa genial, não é, Glauber? E Glauber está incrível. Desta vez encontrei com ele mais de verdade. Um pessoal dessas revistas mais novas falou que o jornalismo feito em tom pessoal morreu nos anos 60. Se for assim, a gente se fala pessoalmente. A vida entre os monstros.

Caetano Veloso.

REVISTA TA-TA-TA, RIO DE JANEIRO, DEZEMBRO DE 1976.

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005.

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