Histórias do clube da esquina (1996)
Nos anos 70, um grupo de mineiros
se afirmou no cenário da música popular brasileira com profundas conseqüências
para sua história, tanto no âmbito doméstico quanto no internacional. Eles
traziam o que só Minas pode trazer: os frutos de um paciente amadurecimento de
impulsos culturais do povo brasileiro, o esboço (ainda que muito bem-acabado)
de uma síntese possível. Minas pode desconfiar das experiências arriscadas e,
sobretudo, dos anúncios arrogantes de duvidosas descobertas. Mas está se
preparando para aprofundar as questões que foram sugeridas pelas descobertas
anteriores cuja validade foi confirmada pelo tempo. Em Minas o caldo engrossa,
o tempero entranha, o senti mento se verticaliza.
Márcio Borges é a pessoa indicada
para escrever sobre a experiência daqueles garotos mineiros nos anos 70 não
apenas por ser ele próprio um dos letristas mais atuantes e representativos do
grupo, mas por ter sido ele a induzir Milton Nascimento a compor. E Milton
Nascimento foi - é - o pólo, o elemento catalisador, o próprio lugar de
inspiração do movimento. Quando Milton surgiu num festival da TV Excelsior de
São Paulo cantando uma composição de Baden Powell, Gil me chamou a atenção para
a originalidade do seu talento. Essa observação Gil viria a confirmar quando
ouviu as primeiras composições de Milton. Eu, no entanto, se fiquei
impressionado com a presença pessoal do colega recém-chegado (sua beleza
nobilíssima de máscara africana, sua atmosfera a um tempo celestial e triste,
sua aura mística e sexual), não fui capaz de detectar a grandeza musical de seu
trabalho, num primeiro momento. Vi-lhe a seriedade de intenções e sinceridade
de tom desde sempre, mas eu sou baiano (amante das aparências) e estava
engajado num programa de regeneração da música brasileira através da
carnavalização do deboche e do escândalo — através da paródia e da autoparódia -
e não via ali muito além de um desenvolvimento daquilo que Edu Lobo já vinha
fazendo de interessante, ou seja, um desdobramento da bossa nova que abrangia
estilizações das formas nordestinas. Claro que, em breve, veria que muito do
que nós, baianos, tínhamos sublinhado - a saber: rock, pop, sobretudo Beatles,
além da América espanhola — também estava incorporado ao repertório de
interesses de Milton. Mas todo esse conjunto de informações desempenhava
funções distintas em seu trabalho e no nosso. Sem apresentar ruptura com as
conquistas da bossa nova, exibindo especialmente uma continuidade em relação ao
samba-jazz carioca, Milton sugeriu uma fusão que - partindo de premissas muito
outras e de uma perspectiva brasileira – confluía com a fusion inaugurada por
Miles Davis. Essa fusão brasileira desconcertou e apaixonou os próprios
seguidores da fusion americana. Quando Milton estava com o show num teatro à
beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, em 1972, eu vim da Bahia — para onde tinha
voltado depois do exílio – e fiquei tão impressionado com o que vi e ouvi ali
quanto os músicos do Weather Report que visitaram o Rio pouco antes ou pouco
depois. Talvez por razões – e com conseqüências — diferentes, mas no mínimo com
a mesma intensidade. A profundidade que eu percebi ali só fez se intensificar
para mim desde então. Orgulho-me de não ter me entregue a um repúdio puro e
simples do que era diferente de mim. E de, por isso, poder hoje ter um diálogo
enriquecedor com essa diferença. O que me levou a isso foi minha reverência
pela música: Milton sempre foi obviamente para mim um músico muito maior do que
eu.
Para contar sobre o lado de
dentro dessa história de mineiros, sobre a vida vista do ângulo daquela esquina
que nomeou o grupo famoso, Márcio Borges, sensível, poeta, cheio de
inteligência e amor, mostrou-se generoso o bastante para decidir-se a escrever
para nós este livro.
Caetano Veloso.
Prefácio ao livro de Márcio
Borges, Os sonhos não envelhecem: histórias do Clube da Esquina, São Paulo,
Geração, 1996.
Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005.