Iansã Francisco: quanta luz (1975)

Os mais velhos nada me contaram sobre como talvez Oxalá tenha dirigido o destino de minha gente pelo lado branco. Maria Bethânia é a brecha aberta pelo raio de lansă, através da qual nós entramos em contato com o lado vermelho. Hoje em dia todos sabemos que sem esse acontecimento nós não seríamos capazes de vislumbrar o que significa a existência de Olorum porque não estaríamos caminhando com a dificuldade necessária para sentir as forças reais que dançam sobre este planeta. Assim é essa história contada do modo certo, mas o surgimento de Maria Bethânia entre nós já era uma presença vermelha em nós antes do tempo do seu surgimento no tempo porque a gente intui que tudo se repete sempre e sempre está sempre se repetindo no amor de Olorum, assim é essa história do surgimento de Maria Bethânia entre nós como uma luz vermelha se repetindo no amor de Olorum.

Quando André Midani, chefe da empresa gravadora onde eu trabalho, me falou para trabalhar um espetáculo para Chico Buarque e Maria Bethânia, eu aceitei sem medo, sem planos, sem euforia, sem psicanálise, sem julgamento. Quando Chico me disse que a gente já tinha falado nisso antes, eu lembrei da Bahia e de Rony e disse que sim, que a gente já tinha falado nisso. Quando pensei no espetáculo, decidi que ele abriria com o "Sinal fechado" e fecharia com uma música a ser composta por Chico e por mim, tendo como tema a serena e brutal alegria de ver que coisas como Chico e Bethânia estarem aí sempre repetidamente surgindo eram incuráveis, invencíveis, indestrutíveis. Quando pedi a Chico para cantar "Quem te viu, quem te vê", ele entendeu e achou bonito. Quando pedi a Chico para cantar a “Carolina”, ele se recusou e eu entendi e achei muito bonito.

Quando o Canecão fez a proposta a Bethânia e Chico, e eles aceitaram a proposta do Canecão, eu apaguei todas as idéias de espetáculo que eu tinha na cabeça e no coração e tudo que eu já contei antes, mas continuei religiosamente aceitando o que eu já não sabia o que era. Quando fui ao Canecão para ver o local e o público, Dedé estava comigo e estávamos os dois sozinhos e era a última apresentação do espetáculo Brasileiro, profissão: esperança e Olga do Alakêtu estava lá e eu senti a severidade do olhar de Iansã quando ela respondeu secamente ao cumprimento que eu tentei lhe dirigir num tom demasiadamente carinhoso para as poucas relações que eu tenho com ela - que beleza! que majestade! que força de sinceridade tão profunda que me encheu de sabedoria sobre o que em psicanálise tanto se chama de aceitação das frustrações - e isso depois de ter visto emocionado o espetáculo Brasileiro, profissão: esperança (vimos o espetáculo e não o local e o público, uma vez que o público era atento e silencioso e o local bem equipado: o Canecão não é um lugar onde gente barulhenta come e bebe enquanto um show tenta se dar, mas um feio edifício onde uma gente não muito bonita mas muito aplicada se dedica com enorme seriedade ao que se chama diversão, uma gente incrivelmente “real”, um lugar talvez demasiadamente "real"). Quando saímos do Canecão, eu e Dedé estávamos com dor de cabeça de tanto chorar, por causa do modo como a gente sentiu estranhamente o tempo, vendo esse avesso do Cassino da Urca, um Rio de Janeiro dos anos 50 (as canções tão lindas de Dolores e Maria - que Deus os tenha em bom lugar) apresentado à moda dos 60 (opiniosamente) por e para um Rio de Janeiro demasiadamente real (um impressionante Paulo Gracindo da Rádio Nacional à TV Globo, uma linda Clara Nunes da Rádio Globo, um público como paulistas olhando para o Rio, uns filmes lindíssimos de surfistas do Arpoador).

Quando nos reunimos na casa de Chico para bolar um espetáculo para o Canecão - Osvaldo Loureiro, Ruy Guerra, Chico e eu -, várias perguntas surgiram e todas procuravam um sentido ou uma justificativa para que Bethânia e Chico se apresentassem juntos no Canecão. Quando eu disse que havia milhões de razões para explicar isso e que eu, de minha parte, só podia dizer duas (primeiro, o fato de ser uma boa grana para os dois; e, segundo, o fato de Bethânia ser de Gêmeos e de Chico ser de Gêmeos e de o show estar para estrear em Gêmeos), isso não causou nenhum mal-estar na sala.

Quando lembrei que eu era de Leão e Ruy Guerra era de Leão e Osvaldo era de Leão, isso animou a sala. Mas Chico lembrou que tanto ele quanto Bethânia estavam completando dez anos de carreira profissional. Aí Ruy Guerra falou em história e poesia e aí ele teve muitas idéias e Osvaldo decidiu coisas como transformar o Canecão em arena ou circo e botar passistas de escolas de samba. Osvaldo representava o Canecão porque o Canecão é que tinha sugerido o nome dele. Eu o achei legal de cara e achei que ele era de Leão. Ruy Guerra é muito bacana, muito apaixonado. Mas foi Chico que pegou um papel e uma caneta e armou um show. Já estava amanhecendo e Chico disse muito claramente o que queria cantar e perguntou o que Bethânia queria cantar e eu só sabia que ela queria coisa nova do Chico e “Foi assim" de Lupicínio. Bethânia estava em São Paulo representando a Cena muda.

Quando o show de Chico Buarque e Maria Bethânia ia estrear, Gil esteve aqui no Rio e foi comigo ver o ensaio geral. Entre a noite daquela reunião na casa de Chico e essa noite do ensaio geral eu não sei o que passou porque eu não acompanhei os trabalhos. Daí meu susto ao ler meu nome entre os créditos do show. Mas, vendo o ensaio, Gil e eu ficamos deslumbrados como diante de uma pedra muito grande como aquelas que ficam perto de Milagres. Bethânia estava cantando com orquestra com desenvoltura, sem direção de Fauzi Arap, sem bom teatro, “Sem açúcar”, lançada pelos astros e pelo dinheiro na verdadeira verdade da sua profissão. Chico estava lindo, sempre cantando sozinho a fluência de suas rimas, “Flor da idade”, e Gil me disse encantado: "Que barato é a gente morar na Bahia e vir ao Rio de vez em quando porque a gente vê tão claramente". Chico sempre sozinho, "Gota d'água”, os seus olhos transparentes. Eu pensei em pedir para tirar o meu nome da porta porque ali não tinha nada da minha "autoria", mas depois me entreguei a Deus pensando lucidamente que ali não havia nada que fosse da autoria de ninguém.

Quando o show estreou, Bethânia estava achando ruim a declaração de Ruy Guerra no jornal, porque ali ele aparentemente tentava se desresponsabilizar do que quer que viesse a ser o show e deixava a "culpa" escorregar para a escolha do repertório dela. O Canecão estava cheio de "Rio de Janeiro", acho que nunca houve tanto "Rio de Janeiro" no Canecão antes. Muita atenção para as aspas. O Acaso foi impiedoso: o "desamparo" em que Chico e Berré foram lançados chegou até a falta de som e o “Rio de Janeiro" presente se viu diante de um pobre rico palco giratório, uns ladrõezinhos estilizados, um arremedo de escola de samba e a evidência de Bethânia cantando “Gita" (sob uma evocação que não parece ter partido da mesma platéia que reclamava quando o show terminou). Quando o show terminou Ruy Guerra me deu um beijo e ele estava alegre e éramos dois leões numa alegria acima do ego, sem autoria.

Eu amo ver este show. Amei na estréia e o tenho assistido várias vezes. Acho que é porque é uma transa sem ego, digo, sem inteligência, digo, com graça, digo, com alguma sabedoria. Sobre ego: há anos que eu penso em tentar fazer com Chico umas versões de canções de Bob Dylan para Bethânia cantar. Com Chico porque ele também é de gêmeos como Bob Dylan e Bethânia, e eu acho que ele escreve num ritmo parecido com o de Bob Dylan, deve ser por causa do signo. Vendo Bethânia cantar “Gita" eu senti que ela estava realizando por outros caminhos esse sonho meu. Um dos lances de Raul Seixas é ser uma tradução de Bob Dylan. Eu perguntei a Bethânia de quem tinha sido a idéia e ela me disse: "De Fauzi". Que lindo que também Fauzi esteja presente e ausente nisso na medida em que Ruy, eu e Osvaldo estamos para que a luz pinte. Alguma luz.

Sobre sabedoria: o que Francisco fala com os passarinhos não pode ser traduzido para a inteligência que fala sobre Francisco.

Caetano Veloso.

MÚSICA DO PLANETA TERRA, NO 1. RIO DE JANEIRO, 1975.

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005.

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