Lisboa revisitada (1970)
Lisboa revisitada: Santo Antônio
veio a Alfama / E anda metido em cantigas / Lá no céu já chega a fama / Da
graça das raparigas. Parque Mayer, não longe do Rossio. O Prato do dia, o
teatro de revistas português não está só perto do teatro de revistas carioca na
sua fase anterior a Tem bububu no bobobó, mas também dos ingênuos bailes
pastoris de Dona. Sinhazinha Baptista em Santo Amaro. Os músicos jovens que
trabalham na televisão são saudosistas da bossa nova. E odeiam o fado. Falam em
harmonias complicadas e procuram explicar a “decadência” da música brasileira
nos últimos anos. Um deles me disse que a bossa nova havia sido um milagre
dentro da realidade brasileira e que por isso não lhe foi possível subsistir: o
povo brasileiro não tem nível para coisas avançadas como o que o Tom fez, como
o que Edu fez etc. Ele dizia achar muito triste que, depois de ter atingido o
nível musical que nós atingimos, nós tivéssemos voltado para um tratamento
harmônico primário.
A platéia portuguesa me fez
tremer de medo: a chamada terra mãe é fogo. Parecia que as famílias de Santo
Antônio Além do Carmo, de Santo Amaro, de São Félix, de Cachoeira tinham se
reunido no auditório da televisão e, sendo de onde eram, conheciam muito bem,
na sua cegueira, todos os meus segredos.
O sol estava muito claro e
Portugal é bonito.
Alguns meses (não poucos) em
Londres me fizeram capaz de gostar de alguma arquitetura que não seja
portuguesa e eu descobri a beleza de Paris. Lisboa mudou muito com isso: tornou-se
de algum modo uma Bahia sem sangue, o que ela tem sido para tanta gente, uma
Bahia filtrada pela Suíça. Ai, meu Deus, o que é isto?, uma juba de leão? Se
aparecesses de noite, cagava-me toda. Ai, flores. Ai, Jesus. Isto é um homem ou
uma mulher? Navegar é preciso. Videoteipe, mormaço.
O programa de estúdio saiu muito
bem cortado e muito bem iluminado. Pensei comigo que isso, tal como a bossa
nova no Brasil, havia sido um milagre. Durante a feitura do programa ninguém
sabia quem era responsável por quê. O Baixinho e o Abujamra são considerados a
equipe de Sérgio Mendes junto dos produtores portugueses, em matéria de
organização. Cantei “Os argonautas” com tanta timidez que os meus amigos
músicos-carpideiras-da-bossa-nova acharam genial: de fados como este nós
gostamos. Eu tinha dito durante o programa que "Os argonautas” não era um
fado. E não é mesmo. Pela Alfama gritos ecoam, vindos da Parreirinha, da Nau
Cat'rineta. Viver não é preciso. Em Paris, Nara grava uma antologia da bossa
nova e o seu “Desafinado" me comove. Nara brincando com o milagre, ainda
não reconciliada com o amor, o sorriso e a flor. E sem barquinho.
Navegar não é preciso. Todos
acham que eu falo de mais. Você bem sabe: eu sou rapaz de bem. E a minha onda é
do vai-e-vem. O Rio de Janeiro continua lindo e eu, como estou virando cronista,
vivo cantando as músicas de Juca Chaves, aquelas do tempo em que ele era o
cronista de um Brasil engraçado. A bossa nova era a essência dessa graça e era
natural como todos os milagres. Meus amigos portugueses dizem coisas sobre a
bossa nova, Juca Chaves diz coisas sobre a bossa nova, Nara. Vai, minha tristeza,
e diz a ela que sem ela não pode ser. Diz-lhe numa prece que ela regresse
porque não posso mais sofrer.
Chega de saudade.
Caetano Veloso.
O PASQUIM, 12 DE AGOSTO DE 1970.