London london (1970)
Reouvindo Luiz Gonzaga, Lua,
molhando os pés no riacho, que água fresca, nosso senhor! Uma casa com varanda
dando para o norte, centro, sul inteiro onde reinou o baião: se eu mereci minha
coroa de rei, colírio moura Brasil, triângulo das secas. Não é absolutamente
verdade que Luiz Gonzaga tenha abastardado a música nordestina numa redução
comercial. Ele criou formas novas adequadas a um público que comprava discos.
Você que já conheceu Luiz Gonzaga no rádio e no disco não venha agora com onda
carioca careca. Ele foi o cara que, no seu tempo, mais e melhor explorou a
riqueza possível dos novos meios técnicos. Ele inventou uma forma de conjunto,
um tipo de arranjo, um uso do microfone. Ele sugeriu uma engenharia de som. Se
você é surdo, azar o seu. Luiz Gonzaga - como Roberto Carlos — mereceu sua
coroa de rei. E a honrou.
Reouvindo os quatro crioulos e as
duas rainhas da Rosa de Ouro. Relembrando a Rosa de Ouro. A melhor coisa já
feita sobre música carioca. Clementina, cadê você? Onde estão os tamborins?
Nasceste de uma semente, à beira de uma nascente: não podes morrer. Viver
somente de cartaz não chega.
Reouvindo Gilberto Gil. A Rua de
Torquato que o tempo ninguém mais canta. Ele falava nisso todo dia, coragem
para suportar, beira-mar, luzia, luluza: Avenida São João em preto e cinza,
hotel cineasta, Rua Chile descendo pela Castro Alves até o mar azul dois mil e
um em cinerama. Rogério Duprat com seus violinos atrás do trio elétrico.
Karnaval.
Reouvindo Aracy, camisa amarela.
Bem chumbado, atravessado. Último desejo. Ela tem direito de dizer que todo o
resto é uma “merde alors".
Reouvindo Bethânia, para dizer
adeus. Onde quer que eu vá, sei que vou sozinha. Ali tem muita coisa. Estou
falando da gravação de para dizer adeus naquele LP que Bethânia gravou com Edu.
Ali tem tudo. Bethânia é uma beleza. E é terrível. E é assim mesmo. E aquela é
uma das mais lindas gravações existentes. No mundo.
Reouvindo João Gilberto sempre e
reaprendendo com ele a ouvir. Entre "bem, não vá deixar" e "sua
mãe aflita" há o abismo. E "o teu jeitinho é que me mata" vai
armando um encontro da voz violão com os outros instrumentos, em notas longas,
criando uma sonoridade redonda, morna, que estanca de repente para deixar
dançar a frase seguinte, "roda, morena cai, não cai / ginga, morena vai,
não vai". E em "clemência", a flauta, que já vinha driblando a
brasa, vem descansar junto da voz num intervalo de segunda maior tristíssimo.
Eu acho que a música foi gravada em lá maior e, nesse caso, a
"clemência" cai num si sétima e nona: a voz de João está na nona e a
flauta na terça do acorde. É incrivelmente simples e bonito. Como quando ele
diz “nas cordas do meu violão”. O bordão em “Maria Ninguém”. Tudo.
Caetano Veloso.
O PASQUIM, 19 DE JULHO DE 1970.
Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005.